A responsabilidade do atual campeão gaúcho

Categorias de base do Esporte Clube Novo Hamburgo podem ser o futuro do time, que enfrenta dificuldades para fazer futebol no interior

Carolina Zeni
Redação Beta
13 min readOct 9, 2017

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ECNH comemora o título do Campeonato Gaúcho, conquistado este ano. (Foto: Juarez Machado)

O título do Campeonato Gaúcho, em maio deste ano, entrou para a história do Esporte Clube Novo Hamburgo (ECNH). Foi a primeira conquista do gênero em 106 anos de trajetória. Um mês depois, o clube atingiu a marca de 1 mil sócios. Chegar até o título estadual não foi tarefa fácil, e derrubar os grandes nomes do Rio Grande do Sul – Grêmio e Internacional – exigiu muito suor. Ainda mais difícil são as responsabilidades do atual campeão, motivo de orgulho para uma cidade inteira, que buscar realizar um bom trabalho nos próximos desafios que estão por vir.

Muita coisa aconteceu desde a maior conquista da história do “Noia”, da festa anilada, de uma grande e merecida comemoração. A campanha histórica atraiu o interesse de outros clubes, e muitos jogadores deixaram o Novo Hamburgo. Matheus Cavichioli, o melhor goleiro do campeonato, foi um dos que deixaram o Estádio do Vale, transferindo-se para o Juventude — assim como João Paulo e Juninho. Jardel foi para o Londrina (PR), que recém conquistou o título da Primeira Liga.

Além da remontagem do plantel, o clube também confirmou participação na Série D do Campeonato Brasileiro, mesmo com recursos escassos, intensificando os treinos. Apesar disso, teve péssimo desempenho na fase de grupos da quarta divisão nacional e encerrou na última colocação da chave A16, que tinha São Bernardo-SP, Inter de Lages-SC e Foz do Iguaçu-PR.

E as más notícias não pararam por aí. Pela primeira vez na história, o ECNH ficou sem futebol profissional no segundo semestre. O principal motivo foi a situação financeira delicada do clube.

Categorias de base podem ser um caminho

Se as barreiras parecem ser cada vez mais altas e as dificuldades muitas vezes fazem o time e a torcida desacreditar, o que pode ser uma boa resposta para o clube anilado é o trabalho feito com a gurizada das categorias de base.

O coordenador das categorias de base do ECNH, Eduardo Bickel, acredita nos atletas em formação e enxerga potencial neles. “Hoje, o clube é a oportunidade de se tornarem profissionais e realizarem seu sonho. Com isso, a cobrança pela dedicação integral em cada treino é grande por parte da comissão técnica”, afirma.

A gurizada das categorias de base. (Fotos: Elenise Martins/ECNH)

Preto: ídolo e exemplo da gurizada

Com o objetivo de ter uma base ainda mais fortalecida nos próximos anos, o Novo Hamburgo atua intensamente para alcançar resultados. E esse trabalho vem tendo o reforço do meia e capitão do título do Campeonato Gaúcho, João Luis Ferreira da Silva, o Preto, jogador que encarou o desafio fora das quatro linhas e é um grande espelho para a gurizada — tanto dentro como fora de campo. Ele assumiu a função de coordenador técnico, a fim de auxiliar os mais de 400 atletas da base anilada e mais de 20 profissionais envolvidos com essas categorias, que têm uma gestão financeira independente da profissional.

Aos 36 anos — são 18 de carreira — , Preto diz que ainda está aprendendo, dando aquele apoio, seja no vestiário ou colaborando no banco para organizar os guris da base. Mesmo tendo aceitado o desafio, há pouco mais de três meses, o meia não pendurou as chuteiras como atleta profissional. Ele está garantido no Gauchão e na Copa do Brasil do ano que vem, e, enquanto o departamento de futebol está fechado, ocupará a função de coordenador a convite do vice-presidente da base (e ex-presidente do clube). “Estou muito feliz, muito realizado”, resume o jogador. “Agradeço ao Schaidt (que fez o convite para Preto trabalhar com a base) e ao Bickel pela oportunidade”, frisa o jogador, que recebeu algumas propostas para sair do anilado, mas optou por permanecer, colocando em prática o que quer para sua vida: trabalhar com futebol, dando sequência fora de campo.

Segundo Preto, é uma grande responsabilidade trabalhar com a base do time, principalmente por ser sua primeira experiência como auxiliar. “De tudo aquilo que já vivi nesses meus 18 anos de futebol, eu vejo que, para o atleta chegar em algum lugar — eu digo o ‘atleta profissional’, não o jogador — , uma das principais coisas é o extracampo”, aconselha. “Tem que ser o mais simples, o mais humilde possível. Eu tento fazer isso no meu dia a dia com esses meninos, tento mostrar pra eles que tu pode alcançar os teus sonhos sendo simples.” Taticamente, os conselhos também não deixam a desejar, como técnicas de posicionamento e algumas orientações sobre os treinamentos.

Sobre a relação com Preto como auxiliar nas categorias de base, Bickel analisa: “Hoje o clube é o trampolim para quem quiser aproveitar a oportunidade. E com o Preto eles têm as ferramentas necessárias para se tornar atletas profissionais”.

Escolas de futebol começam aos cinco anos. (Fotos: Elenise Martins/ECNH)

Eles têm chance no profissional?

Preto salienta que o objetivo é aproveitar os meninos da base no time profissional do Noia. “A partir do momento que eles tiverem essa oportunidade, depende somente deles”, afirma, exemplificando um bom trabalho que está sendo feito com Marcio, da sub-19, e Edinho, da sub-17. Preto garante que, para 2018, haverá, sim, jogadores da base no profissional. “Eu acho que aí que é a sobrevivência do futebol, pois o dinheiro começa a aparecer, os clubes vêm de fora e as vendas de atletas conseguem manter um clube grande em alto nível. Eu não penso diferente para o Novo Hamburgo.”

Hoje, o ECNH tem as categorias sub 19/17/15, além das escolas de futebol que iniciam aos cinco anos. Bickel reforça que toda a garotada está sendo observada de perto e tendo um acompanhamento para o desenvolvimento. “Temos nossa metodologia de treino, que é implantada em todas as categorias. Sabemos que tipo de profissional queremos para o clube e também para negociar com o mercado.” Para Bickel, o projeto que o clube desenvolve visa a tornar as categorias de base a sustentação do clube no futuro. “O nosso projeto é para isso, e acreditamos que, pelo que já montamos e ainda estamos dando sequência, em quatro ou cinco anos seremos autossustentáveis”, declara Bickel.

Preto, com os “pés no chão”, entendendo as dificuldades do clube, acredita no potencial do time, relembrando o seu próprio caso. “Em 2005 eu surgi e fui vendido. Talvez eu tenha sido o último da história do clube, e já são 12 anos que a gente não vende um atleta. Então, o objetivo é esse, poder vender atleta, poder trazer esse dinheiro para o profissional ficar ainda mais forte”, complementa o jogador.

Depois do Campeonato Gaúcho, o que mudou?

Para Preto, depois do título, a cidade poderia ter ajudado mais o clube. “Foi só aquele momento de empolgação do começo e depois deu uma amornada”, observa. “Claro que o título ainda corre na veia do povo hamburguense, mas, talvez por tudo que aconteceu, se a cidade e as autoridades abraçassem o clube, as coisas seriam diferentes”, acredita.

Ele, que já jogou as séries A e B, avalia que o Novo Hamburgo tem uma estrutura para jogar uma Série B de Campeonato Brasileiro. Contudo, para isso precisa de pessoas que ajudem e que invistam no clube. “A gente não sabe como vai ser 2018. Temos uma expectativa boa. Talvez o povo, o pessoal, os empresários da cidade que têm mais condições de ajudar o clube possam aparecer no Estádio do Vale e abraçar o nosso time. Essa é a minha expectativa como atleta e como torcedor.”

João Luis Ferreira da Silva, o Preto, assumiu como coordenador técnico da base. (Foto: Juarez Machado)

Quem é o Preto…

Ele é hamburguense, nascido no Hospital Municipal. Começou a trabalhar novinho, logo aos 11 anos, com seu pai, sapateiro desde o antigo Calçados Erno, em Novo Hamburgo. Na verdade, a família toda era composta por sapateiros. Preto estudava e ajudava na preparação do sapato para ir para a montagem. Seus irmãos — eles são em três — colavam a sola, limpavam, retocavam e colocavam o sapato para venda. Prontinho. Sapateiro, profissão de toda sua família, e motivo de orgulho para o jogador. Mas o destino o quis no futebol. Desde menino, sempre jogou futsal, e um amigo o levava para os campeonatos.

Sua experiência sempre foi nas quadras, até completar 18 anos, quando teve uma oportunidade de jogar na Alemanha, onde ficou por três anos. Quando retornou ao Brasil, um empresário o levou para a Polônia, onde permaneceu por seis meses e teve a sua primeira desilusão no futebol, à época com 22 anos. “Voltei com uma mão na frente e outra atrás”, lembra. Depois disso, parou por 10 meses com os treinos, momento em que voltou a trabalhar no calçado com seu pai. Foi quando, em 2004, fez um teste no Esporte Clube Novo Hamburgo, que abriu as portas, dando início a sua carreira futebolística no Brasil. Não é à toa que Preto valoriza, admira e gosta tanto de estar junto com o ECNH, nas alegrias e nas tristezas.

Preto levantando a taça do Campeonato Gaúcho 2017. (Foto: Juarez Machado)

… e a sua realização como profissional

Questionado sobre a sua realização como profissional do futebol, Preto já tem uma resposta pronta: “Se tu for me perguntar, é claro que eu queria jogar num time maior, na Seleção, claro! Mas eu sempre falo que Deus dá pra gente o que é pra ser, né? Nada mais e nada menos”.

Preto admite que dificilmente vá atuar novamente em um clube maior, pela idade. “Eu entendo isso perfeitamente, mas sou muito realizado”, confirma o jogador. Nos clubes onde jogou, fez história, obtendo o carinho dos torcedores e podendo transmitir para a família todo esse orgulho e admiração. “Eu estou muito feliz de a escolinha, a categoria de base, ter me abraçado, me acolhido. Eu sei que eu tenho a minha história dentro do clube e tenho essa visão dos meninos, dos professores. Mas em momento algum eu pisei lá na base querendo ser mais que qualquer um.”

Preto conta que na primeira reunião que teve com os professores deixou bem claro que estava ali para aprender. Tanto que pretende estudar para seguir trabalhando com futebol. “Não se cai de paraquedas nos lugares. Todos os professores que estão ali no clube são estudados, e eu vou correr atrás de coisas melhores para a minha vida. Enfim, eu estou muito feliz e espero crescer muito nessa profissão.”

“Só com Campeonato Gaúcho não se vai a lugar nenhum”

Vice-presidente de futebol do Noia, Everton Cury fala sobre as lições aprendidas após o título, a dificuldade de fazer futebol no interior e as aspirações do clube para o futuro. Confira a entrevista:

Qual a maior responsabilidade que o Noia vai ter no próximo Gauchão, justamente por ser o atual campeão?

Cury — A gente sabe que a conquista de um campeonato estadual aqui no Rio Grande do Sul por um clube do interior é algo bem improvável. Foi uma surpresa para todos o Novo Hamburgo ter chegado onde chegou, mas isso se deveu a todos os critérios, à forma que se conduziram as coisas, porque eu sempre digo que a gente não chega a um objetivo através de um único acerto. Assim como a gente não deixa de atingi-lo porque cometeu apenas um erro. Então, quando a gente atinge um objetivo como esse, é porque a gente acertou em muitas coisas: na qualidade do grupo, nas pessoas, no comprometimento e assim por diante. Para este ano a responsabilidade é a mesma. Com certeza a gente sabe que os nossos adversários vão buscar “tirar uma lasquinha” do Novo Hamburgo. (O time) vai ser a atração, e em função disso nós temos que nos preparar pra fazer um bom papel. Nosso objetivo é o mesmo de quando iniciamos no ano passado, que era ser, pelo menos, campeão do interior. É difícil, porque nós temos o Brasil de Pelotas numa Série B, Juventude, Caxias, além do poderio econômico e da dupla Gre-Nal. Mas esse é nosso desafio, e nós estamos prontos pra ele.

O que se tira de aprendizado de uma participação ruim na Série D do Brasileiro e, depois, de ainda ter o departamento de futebol fechado no segundo semestre pela primeira vez na história do clube?

Cury — Na verdade foi uma imposição da situação financeira que a gente herdou quando assumiu o Novo Hamburgo. Nossa diretoria procurou honrar com todos os compromissos, e isso tem acontecido até agora. E o que faltou na Série D foi planejamento, nós apenas tivemos uma participação porque montamos um grupo em 48 horas, até para não tomarmos as punições de estarmos alijados por dois anos de participar de competições promovidas pela CBF. Faltou planejamento, tudo o que sobrou para a conquista do título (gaúcho). E este ano a gente vai começar bem cedo, acho que o ponto alto vai ser o planejamento, que foi o que faltou e uma lição que foi tirada.

Há alguma ideia de investimento em jogadores nesta temporada, já que o calendário está cheio em 2018, com Série D, Gauchão, Copa do Brasil?

Cury — Os investimentos na temporada são aqueles que a direção vai definir e em função das receitas que nós estamos projetando ter, e temos algumas já confirmadas. Eu creio que vamos ter um investimento na ordem de 20%, 25% superior ao que nós tivemos na temporada passada.

O técnico campeão com o Noia, Beto Campos, foi para o Criciúma. Assinou com o time até o final da Série B e pode voltar ao Noia após o término da competição (para o Gauchão). Quando, exatamente, ele deve voltar? Quem vai ficar responsável pelas atividades com os jogadores até lá? Vai ter um tipo de contrato que “garanta” a volta de Beto para o time?

Cury — Ele só tem comprometimento com o Novo Hamburgo a partir de 16 de novembro. O que nós acordamos: que ele se apresente no dia 27. Enquanto isso, o Rafael, que é da comissão técnica, preparador físico, já está trabalhando comigo. O Darlei, que foi junto para Criciúma, vai ser liberado 11 dias antes. Nós temos tudo isso em contrato e com multa rescisória.

Supondo que ele faça uma boa campanha e siga no Criciúma, não seria a hora do ECNH ir atrás de outro treinador?

Cury — Evidentemente que se, por ventura, acontecer de ele permanecer no Criciúma, a multa é bastante interessante para o Novo Hamburgo e eu já teria uma segunda opção engatilhada e conversada. Eu estou absolutamente tranquilo e tenho 99,9% de certeza que o Beto continuará conosco.

É difícil fazer futebol no interior?

Cury — É muito difícil fazer futebol no interior, principalmente com a proximidade que nós temos de Porto Alegre, onde o foco é a dupla Gre-Nal. Além disso, o pessoal pode, em 40, 45 minutos de trem, estar dentro da Arena do Grêmio, e em uma hora estar no Beira-Rio, podendo escolher jogos de Série A, Série B. É uma concorrência bem complicada. Mas acho que se o Novo Hamburgo conseguir atingir os objetivos propostos para a próxima temporada, que é fazer um Campeonato Gaúcho forte, um bom papel na Copa do Brasil e conseguir o acesso à Série C do Brasileiro, passando pela D, nós vamos estar dando um passo importante para conquistar mais adeptos. Nós somos poucos, e acho que só os resultados vão dar a condição de evoluir. Mas, por outro lado, se a gente não fizer isso, os clubes do interior que não buscarem participar de série C e B do Campeonato Brasileiro estão fadados a este problema. Porque só com Campeonato Gaúcho não se vai a lugar nenhum, não se consegue torcida, nem idealizar nada.

Hoje, quais são as principais dificuldades e desafios do atual campeão gaúcho?

Cury — É justamente o que se espera dele. Com certeza aqueles fiéis torcedores do Novo Hamburgo aspiram coisas maiores. Mas essa é uma dificuldade boa, na verdade é um desafio. Dificuldade maior é se conseguir recursos, organização, planejar uma temporada seguinte para que a gente não frustre aqueles que nos apoiam e que esperam algo mais da gente. Mas nenhum desafio que não possa ser enfrentado com força e com bastante critério de escolhas. Não nos assusta, é uma dificuldade, mas também uma oportunidade.

(Fotos: Juarez Machado)

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