A rotina de uma escola especial

Recanto da Alegria, na Vila do Iapi, em Porto Alegre, tem 139 alunos, todos com algum tipo de deficiência

Matheus Miranda
Redação Beta
6 min readSep 27, 2018

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Emir, um dos alunos da escola, sorrindo e mostrando que mesmo diante às dificuldades, é possível aprender e ser feliz (Foto: Matheus Miranda/ Beta Redação)

U m prédio comprido, de dois andares e com tijolos à vista rompe o padrão residencial daquela quadra da rua Valentim Vicentini, na tradicional Vila do Iapi, Zona Norte de Porto Alegre. O número 225 abriga a Escola Estadual Especial Recanto da Alegria, que atende 139 alunos com algum tipo de deficiência. As salas de aula recebem no máximo oito alunos que são divididos de acordo com as suas capacidades de aprendizado.

“É muito gratificante estar com eles, pois me passam uma paz e o verdadeiro amor. O verdadeiro sentido da vida, que é tu olhar para o outro de uma forma igual”, afirma a psicopedagoga e diretora da escola, Isabel Rodrigues da Silva, 66. Para ela, o trabalho desenvolvido junto a alunos com deficiência traz grande significado e aprendizado a sua vida. “A gente percebe o quanto se pode acrescentar na vida pessoal e passamos a enxergar o mundo de uma forma diferente. Muita vezes, quando estamos na superfície, olhamos para o outro de uma maneira preconceituosa”, lamenta.

Há 20 anos atuando no campo da educação especial, a professora Iara de Fátima, 54, ressalta que trabalhar com inclusão é oferecer oportunidade para as pessoas que antes não eram devidamente incluídas. “As pessoas com qualquer deficiência permaneciam em casa, isoladas, e hoje elas têm a oportunidade de inclusão, de terem uma qualidade de vida melhor, principalmente nas escolas”, comenta.

Com uma proposta pedagógica diferenciada das escolas regulares, as professoras da Recanto da Alegria buscam desenvolver capacidades básicas de socialização entre os alunos. Entre as práticas executadas estão as aulas de culinária, nas quais os alunos desenvolvem outras habilidades através do contato com os alimentos, como a matemática. Dança e atividades de educação física também fazem parte do cotidiano escolar. “Aqui na escola nós trabalhamos mais com o concreto. Temos a sala de informática, a mesa alfabética e a brinquedoteca. O português e a matemática são desenvolvidos dentro do tempo deles. Nada é cobrado antes disso. Até lá vai se trabalhando aos poucos e, assim, se adquirindo a aprendizagem”, comenta Isabel.

Para a diretora, o aluno com deficiência só aprende se ele estiver bem socializado. “A partir da socialização é que eles aprendem a conviver e se autoconhecer, ganhando autonomia. Após essa etapa é que vem o aprendizado”, complementa Isabel.

A professora Iara e seus alunos do turno da manhã (Foto: Matheus Miranda/Beta Redação)

Raquel Silveira, 51, é mãe de Emir, 22, um dos alunos da Recanto da Alegria. A escola, segundo ela, fez e faz uma diferença significativa na vida do filho. “Faz cerca de cinco anos que ele estuda na escola. Antes disso, ele fazia fisioterapia. Na escola ele sempre aprende algo novo. Nas aulas de culinária aprendeu a reconhecer alguns alimentos e a pedir algumas coisas nas refeições. Depois que ele entrou na escola aprendeu a pedir as coisas, a se comunicar melhor com a família, a andar com mais segurança dentro de casa e na rua”, ressalta. Emir tem autismo e deficiência visual.

A professora Iara destaca que a participação da família no processo de adaptação e desenvolvimento do aluno com deficiência é fundamental. É a partir dessa parceria que, de acordo com ela, se consegue um avanço cognitivo para o estudante. “Neste ano estou trabalhando com um aluno com deficiência visual, que é o Emir. Ele possui estímulo familiar bem consistente, com uma mãe sempre presente em suas atividades. Procuro sempre recursos para poder dar uma qualidade melhor de ensino a ele”, destaca. Junto à professora, Emir conta que gosta de ir à escola, além de gostar de pizza, shopping e praia. “Ele tem muita sensibilidade, porque todos os nossos sentidos são uma coisa complexa. Ele não enxerga, mas tem um sensor muito grande. Eu não preciso falar que ele já consegue me identificar”, complementa Iara.

Quando o entendimento da família é de que a criança ou adolescente está doente, há uma dificuldade de se trabalhar a autonomia dela. Em muitos casos, quando esses alunos com algum tipo de deficiência ingressam na escola regular ou na educação especial, já conseguem exercitar habilidades que, segundo a professora Iara, a família entendia que eles não possuíam. “Aqui a nossa missão é justamente trabalhar as competências e habilidades de cada um”, explica a professora.

Trabalhos feitos pelos alunos e expostos nos corredores da escola (Foto: Matheus Miranda/Beta Redação)

Na hora do recreio, os alunos se entusiasmam. Cumprimentam cada um que passa e interagem entre si. Antes da merenda, uma oração. A merendeira Clarice Rosa Blanco, 54, é a responsável pelo preparo do almoço. “Eu gostaria que as pessoas tirassem apenas cinco minutos do dia para observar o comportamento e o modo como eles sorriem para a vida. Na hora da merenda eu sempre ouço ‘prof., eu te amo’, ‘prof., que vai ter de merenda hoje’, e tem alguns que não falam, mas com o gesto eu já compreendo o carinho. Eu amo o que faço”, afirma emocionada.

A vida da merendeira Clarice Rosa mudou depois que começou a trabalhar com pessoas com deficiência (Foto: Matheus Miranda/Beta Redação)

Para as professoras da escola, é gratificante ver os alunos tendo avanços no desenvolvimento escolar, acrescido de aprendizagens para a própria vida pessoal. Talentos são descobertos na escola, como uma aluna que, aos poucos, perceberam que tinha grande capacidade para cantar.

Mesmo com escolas especiais, é comum que pessoas com deficiência ainda tenham que se matricular em escolas regulares. Nestes casos, segundo a diretora da Recanto da Alegria, o aprendizado ocorre, também, em função das trocas possíveis entre alunos com deficiência e sem. “Aprender a conviver com as diferenças é muito importante e sempre será. Isso é um aprendizado para eles e, ao mesmo tempo, os alunos de inclusão aprendem a conviver socialmente”, destaca Isabel. Quanto às questões cognitivas, também existe aprendizado. O aluno que não tem nenhuma deficiência geralmente se preocupa muito com o outro. “Ele passa a ser, na sala de aula e na escola, muitas vezes, um superprotetor daquele colega com deficiência. Às vezes eles nem percebem essa diferença, porque nós adultos é que temos esse olhar crítico acerca disso”, complementa.

Professora da Escola Recanto da Alegria há 18 anos, Ana Paula Medeiros, 48, ressalta a importância de valorizar as potencialidades de cada aluno e de buscar métodos alternativos de ensino para cada tipo de deficiência apresentada. “Não adianta trabalharmos o pedagógico, ensinar o dois mais dois, se ele tem complexidade na matemática. Então trabalhamos com outras formas para que o aluno também desenvolva seu interesse”, destaca a professora. O estabelecimento de uma rotina diária é importante para o aprendizado, segundo ela. Por isso, há uma organização para a chegada à escola, o aguardo dos demais colegas, as aulas, recreio, merenda e demais atividades. Ana Paula entende que com isso eles aprenderão a se organizar.

Recanto da Alegria é umas das três escolas públicas de educação especial em Porto Alegre (Foto: Matheus Miranda/Beta Redação)

Educação especial ainda carece de investimentos

A diretora Isabel destaca avanço acentuado dos alunos de inclusão, principalmente nas questões pedagógicas. Durante seus cinco anos trabalhando com educação especial, ela percebeu um considerável desenvolvimento de alunos autistas que foram alfabetizados. “Eu venho de uma escola regular onde trabalhava na Sala de Recursos com as crianças de inclusão. Percebi, ao longo de três anos de trabalho na sala de recursos, que o professor ainda não está preparado numa sala de aula regular para atender alunos com deficiência, diferente da escola especial, que possui professores mais especializados para atendê-los”, afirma.

A falta de investimento na formação de professores para atenderem alunos com deficiência é ressaltada pela diretora. Segundo ela, tanto o Estado como o magistério precisam entender a importância da qualificação diante da dificuldade de se receber alunos com deficiência em escolas regulares. Em Porto Alegre, há três escolas estaduais que atendem exclusivamente alunos com deficiência. Nas regulares, as Salas de Recursos, com material pedagógico adequado para a educação especial, tentam cumprir este papel.

Se a Escola Estadual Especial Recanto da Alegria é diferente das escolas regulares em muitos aspectos, ela se aproxima em outros tantos. A busca pelo aprendizado e pela evolução pessoal de cada aluno é incessante. Na educação especial, as individualidades são respeitadas ao máximo e os ensinamentos se moldam de acordo com as capacidades das crianças e jovens.

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