O meio de locomoção também serve para compartilhar histórias.(Foto: André Cardoso/Beta Redação)

A vida como uma viagem de trem

Entre uma estação e outra estão abrigadas histórias que, muitas vezes, são desconhecidas pela população

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6 min readSep 4, 2019

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Com André Cardoso

Se você utiliza o trem, seja todos os dias ou esporadicamente, já deve ter visto alguém vendendo bala, pedindo ajuda, cantando ou apresentando os mais variados utensílios para comércio. Alguns passam e chamam atenção pela abordagem. Outros sequer são observados.

Embora essas pessoas façam parte do cotidiano e seus rostos sejam familiares por conta das viagens, seus nomes são desconhecidos, assim como suas histórias.

Cassia e Mateus estão iniciando as vendas nas estações. (Imagem: André Cardoso/Beta Redação)

O final de agosto veio acompanhado de calor em 2019, e, surpreendentemente, choveu pouco no período da Expointer, a maior feira agropecuária da América Latina. O Parque Assis Brasil era, provavelmente, o destino dos poucos estudantes da Ulbra Canoas e de alguns idosos que esperavam o trem em direção a Novo Hamburgo. Porém, na direção contrária, descia um casal jovem. Ele, Mateus Agliardi, com sua camiseta amarela e calça jeans rasgada. Ela, Cassia Tavares, com macacão também jeans e seu óculos redondo. No primeiro momento, pareciam estudantes a caminho da aula. Mas, junto a si, o casal carregava algo que os diferenciava: uma caixa pequena recheada de trufas.

Ao se aproximarem de um passageiro, Cassia e Mateus, timidamente, perguntam: “Você gostaria de comprar uma trufa nossa? Custa só R$2,50”. Entretanto, na maioria das vezes, tinham como retorno um “não” educado. A timidez na aproximação das pessoas na plataforma tem uma explicação: era o primeiro dia que vendiam seus produtos por ali. “Decidimos vender as trufas após ver alguns vídeos no Youtube e, hoje, é o primeiro dia que estamos aqui. A ideia das trufas veio da irmã do Mateus, que conhecia uma confeiteira muito boa”, comenta a mulher de 21 anos, natural de Carlos Barbosa.

A vinda de Cassia da Serra para a região metropolitana foi movimentada: primeiro morou com a avó, mas, pouco tempo depois, conheceu o namorado pela internet. Após os primeiros encontros começaram a namorar e passaram a morar juntos em Cachoeirinha, cidade de Mateus.

Com o tempo, uma série de problemas começou a atingir a vida do casal: antes funcionário terceirizado dos Correios, ele foi demitido após sua empresa se desvincular da instituição pública federal. Ela, por sua vez, teve problemas com o Programa Universidade Para Todos (ProUni) e precisou trancar a faculdade de Design de Moda.

Foi a partir destas dificuldades que a necessidade de gerar uma renda se apresentou. O que diferencia o casal em relação aos outros vendedores é o local onde negociam os doces: nunca nos vagões, somente nas plataformas. A explicação é simples. “Dentro do vagão as pessoas dão menos importância e estão mais fechadas. Aqui nas plataformas elas estão mais dispostas a ouvir”, enfatiza Mateus. O movimento, em uma tarde de fim de mês era fraco. O casal, porém, alimenta esperanças para os próximos dias.

“Sei que não tivemos muitos retornos hoje, mas precisamos continuar por mais uns dois meses e comparar ambos para ver o quanto podemos ganhar”, comenta Cassia.

No que depender do casal, a compensação para este árduo trabalho virá logo, já que ambos têm grandes objetivos para um futuro próximo. Além da paixão pela moda, demonstrada no seu look despojado, Cassia se expressa por outro tipo de arte, na qual demonstra talento: a tatuagem. “Eu já tatuo, mas preciso de uma máquina melhor para abrir meu estúdio. Esse é mais um dos motivos para eu vender as trufas”, pontua.

O desejo de Mateus não fica muito atrás. O estudante de Marketing demonstra conhecimento quando fala sobre as mudanças do mercado. “Amanhã pode surgir alguma coisa que todo mundo necessita e tu tens que ficar ligado nessas novidades”. Com essa confiança no futuro, ele mantém um olho na trufa e outro em seu negócio. “Esse aqui é só o começo”, sentencia.

É assim que o casal seguirá seus dias nos próximos meses: descendo de estação em estação à procura de clientes para seus produtos. Afinal, são eles que alimentam seus sonhos.

Com as vendas no trem, Dionatan garante seu sustento. (Imagem: Tamires Souza/Beta Redação)

Encontrar diferentes caminhos. Encontrar pessoas e, também, se encontrar. Dionatan Silva, 20 anos, decidiu há um tempo que tentaria vender balas e chocolates no trem para se manter. Por conta da timidez, os primeiros dias não foram fáceis. Hoje, bem mais desinibido, o jovem mostra um pouco do seu cotidiano em sua página do Facebook: Diony O vendedor. Nela, ele compartilha posts incentivando a busca por trabalhos dignos.

Embora acreditasse em seu potencial para as vendas, Diony sentia vergonha de trabalhar no trem. Tinha receio da aceitação, principalmente dos amigos. Mas seguiu. Nessa caminhada, dois anos já se passaram desde a primeira tentativa.

Morando com uma amiga e sua família, Diony se mantém com a renda que garante diariamente vendendo balas no trem. A decisão de iniciar nesta área veio como uma rota de fuga para o que ele chama de “caminhos mais fáceis”. Aos poucos, foi criando sua rotina de trabalho, que hoje consiste em seis ou sete dias trabalhados, 12 horas por dia.

Entre as inúmeras viagens, muitas histórias inusitadas aconteceram. Até mesmo um namoro já surgiu durante a rotina de trabalho. Amizades também, o que acabou gerando uma rede de apoio. Hoje, a vergonha foi superada. Apesar de acreditar e vivenciar o preconceito pelo que faz, tenta não dar bola para olhares maldosos ou perguntas não respondidas.

“A gente não sabe o dia que aquela pessoa está tendo. Pode ser o melhor ou o pior dia. Por isso, sempre tento tratar todos com muita educação”, comenta.

Os obstáculos do dia a dia e o esforço em trabalhar tantas horas são recompensados. Em dias de movimento, Dionatan consegue faturar entre R$100 e R$150. Mas não é a vida que quer ter para sempre. A página, que em 20 dias alcançou 1.5 mil curtidas, além de milhares de visualizações e compartilhamentos, representa uma perspectiva de que Diony consiga visibilidade e, talvez, algum emprego que goste, assim como o trem.

O Coletivo Rima na Estação trabalha de segunda à sexta fazendo apresentações nos vagões. (Imagem: Tamires Souza/Beta Redação)

Sòliff, Fidelix e Delgado. Você já deve ter ouvido esses nomes. Talvez até já tenha dito uma palavra para um deles. E, nos instantes seguintes, ouviu aquela simples palavra ser apresentada em uma narrativa construída somente com elementos presentes dentro do trem.

Desde 2017 os dias tem sido assim. O trio, que forma o Coletivo Rima na Estação, iniciou o projeto com o objetivo de levar arte para um maior número de pessoas. Hoje, se tornou o trabalho deles, com direito a jornada organizada por turnos e até uniforme. A aceitação ao coletivo sempre foi boa e, inclusive, se estendeu além das estações. Atualmente, o Rima na Estação também é Rima nas Escolas. Com agenda cheia, o coletivo realiza apresentações e palestras em colégios da Região Metropolitana.

Vídeo feito pelo integrante do Coletivo Rima na Estação, Sòliff, para a Beta Redação. (Vídeo: Sòliff)

Do outro lado, a Trensurb

Em nota, a Trensurb pontua que, a partir do lançamento da campanha “Sem compradores, sem vendedores, sem pedintes”, realizado no final de novembro de 2018, as ações de combate à comercialização de produtos nos trens foram intensificadas. Durante o mês de agosto deste ano foram registradas 42 ocorrências de comércio indevido e 25 de mendicância.

As campanhas contra a prática buscam cumprir o regulamento da empresa, além de garantir o bem estar dos usuários do trem, tanto para quem está viajando, quanto para quem está comercializando algo. Em caso de flagrante, a pessoa é convidada a se retirar e fica sujeita a perder a sua mercadoria.

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