A violência contra a mulher e o futebol gaúcho

Nos maiores clubes do Estado, ações para combater o machismo dentro e fora de campo caminham a passos lentos

Vitorya Paulo
Redação Beta
6 min readNov 9, 2020

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Times femininos do Grêmio e do Inter durante treinamentos. (Foto: crédito nas imagens)

Somente em 2019, segundo dados levantados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o Rio Grande do Sul registrou mais de 60 mil medidas protetivas de urgência, solicitadas pela Polícia Civil, a fim de tutelar vítimas de violência doméstica no âmbito da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006). O número fica em segundo lugar no ranking brasileiro, somente atrás do estado de São Paulo, com 66.675 pedidos registrados no mesmo período. Os números evidenciam o machismo enraizado na sociedade brasileira e a recorrente violência contra a mulher, mazelas profundas do país.

Mas e o que o futebol gaúcho tem a ver com isso?

Para a publicitária Patricia Ferreira, 43 anos, e para a jornalista Francine Malessa, 29 anos, o esporte é um dos meios em que o machismo se perpetua, como se fosse um espelho do que ocorre fora dos portões dos estádios. Líder do Coletivo Elis Vive, da torcida feminista gremista, Patrícia traz como exemplo o caso de homens que chegam em casa frustrados com o resultado dos jogos e agridem parceiras como um dos reflexos da cultura patriarcal.

Coletivo Elis Vive na Arena do Grêmio. (Foto: Arquivo pessoal/Coletivo Elis Vive)

Ao olhar para a responsabilidade dos clubes diante destas atitudes, ela indica a falta de medidas mais contundentes no combate à violência contra a mulher e da própria representatividade feminina na liderança tricolor. “Infelizmente, na Arena, a gente tem pouca atenção para casos que envolvam mulheres, especificamente. Diferente do Beira-Rio, que é bem mais avançado neste ponto”, evidencia. Além disso, Patrícia elenca que na composição dos conselhos e diretoria tricolores há presença majoritária de homens, com poucas mulheres em cargos de comando e com poder de decisão. “O diretor de futebol feminino do Grêmio é um homem. Majoritariamente, o conselho é masculino. As mulheres que têm, não se envolvem. São muito poucas”, denuncia. Nas arquibancadas da Arena do Grêmio o coletivo Elis Vive, criado em 2018, e que já conta com 60 integrantes, não possui um espaço exclusivo. A área ocupada pelas mulheres é dividida com homens da torcida antifascista.

Presidente da Força Feminina Colorada (FFC), Francine Malessa comenta que, mesmo tendo sido criada em 2009 e, portanto, com mais de 10 anos de presença no estádio, e possuindo local reservado na arquibancada, existem torcedores que não reconhecem o espaço do coletivo alvirrubro. “Já teve torcedor dizendo ‘vocês chegaram ontem e querem lugar para sentar?’. Assim como tem aqueles que não respeitam o lugar da nossa torcida e invadem. Geralmente, isso vem de torcedores comuns, que não estão acostumados a ir ao estádio”, relata. Porém, mesmo com os episódios descritos, a jornalista afirma que o Beira-Rio é um lugar privilegiado para as mulheres, com setorização e segurança.

A Beta Redação conversou virtualmente com as torcedoras. Confira trechos da entrevista no vídeo abaixo.

Entrevista com Patricia Ferreira e Francine Malessa (Imagem: Reprodução)

A percepção de maior segurança dentro do Beira-Rio para situações desconfortáveis ou preconceituosas que Francine sente advém de algumas pequenas medidas que o Internacional vem tomando ao longo dos anos para combater a violência contra a mulher, como a criação da Diretoria de Inclusão do clube. Najla Rodrigues Diniz é a diretora que comanda o trabalho e conselheira colorada. Ela explica que a diretoria em que atua foi criada com o intuito de combater preconceitos como o racismo, o capacitismo e a LGBTfobia. De sessões de cinema propondo debates sobre machismo, a um canal de denúncia via Whatsapp, o clube colorado criou ações para ajudar as torcedoras a se sentirem mais seguras no estádio. “Tivemos a repórter Laura Gross, em que um torcedor beijou ela à força, e a repórter Renata de Medeiros, que foi assediada e agredida. A partir dos dois fatos, criamos o canal Estaremos Contigo”, conta. Lançado em novembro de 2019, o canal permite que, mesmo durante os jogos, sejam relatados casos de agressões e preconceitos vividos nas arquibancadas, possibilitando uma tomada de decisões e ações imediatas.

Força Feminina Colorada no Beira-Rio. (Foto: Max Peixoto/Facebook)

A preocupação com a violência contra a mulher é recorrente, também, dentro do gramado. No Centro de Treinamento (CT) de Alvorada, na Região Metropolitana de Porto Alegre, os jovens jogadores colorados contam com psicólogas e assistentes sociais. Estas profissionais abordam, principalmente, questões familiares, de violência doméstica, e atitudes em redes sociais. “Não podemos admitir que um atleta nosso tenha comportamento agressivo contra mulheres”, pontua Najla. Para ela, casos como o do jogador Robinho, atleta condenado por estupro ocorrido na Itália, em 2009, e que teve contrato suspenso poucos dias após o anúncio de sua contratação pelo Santos, mostram a força da mobilização de movimentos de mulheres. “O que moveu os patrocinadores [que cancelaram verba destinada ao Santos após a contratação do agressor] foram os coletivos”, esclarece.

Apesar da forte pressão exercida no caso, principalmente pelas mulheres através das redes sociais, Francine e Patrícia afirmam que as mudanças precisam ser estruturais, a começar pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF). “A própria CBF é machista e isso nunca foi segredo pra ninguém”, diz a colorada. A Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) também é alvo de críticas das torcedoras. O órgão exigia investimento dos clubes em equipe femininas afirmando que, a partir de 2019, os times que não tivessem a modalidade do futebol feminino estariam fora da Libertadores. “Não basta a Conmebol dizer que os clubes têm que combater o machismo e a violência, tem que ser mais que isso. Tem que ter mecanismos reais, que funcionem no Amazonas e aqui em Porto Alegre”, reivindica Patricia.

Dentro de campo, o desafio é provar ter conhecimento

Maíra é árbitra desde 2013. (Foto: Arquivo pessoal/Maíra Moreira)

Se as decisões tomadas por um árbitro dentro de campo já são alvos de críticas e xingamentos por parte dos torcedores, essa desconfiança se intensifica quando uma mulher comanda o apito. As dificuldades de fazer valer o próprio conhecimento são relatadas por Maíra Moreira, 27 anos, que atua como árbitra assistente de futebol desde 2013. Credenciada pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e pela Federação Gaúcha de Futebol (FGF), ela afirma que “existe um ponto de interrogação em relação às mulheres no futebol" e que, constantemente, precisam provar que realmente têm competência.

Ela enfatiza nunca ter sido vítima de assédio ou casos de violência direta, mas conhece casos de colegas de profissão que enfrentaram esse tipo de agressão. “São situações lamentáveis, principalmente no cenário amador. Mas as competições estão coibindo isso, com exclusão de atletas e equipes”, destaca. Para ela, as agressões devem ser punidas com, no mínimo, a expulsão do jogador que comete agressão nos campeonatos. “Hoje, os atletas não são só atletas. Para ser bem sucedido, tem de ser um ser humano do bem”, sentencia.

Nesse cenário, para combater o machismo e o preconceito, na opinião da árbitra, é necessário que os clubes reforcem a máxima do ideal de respeito com seus times. “Uma clube que tenha equipes masculinas e femininas tem que tentar igualar ao máximo os benefícios. Punições não deveriam ser necessárias mas, infelizmente, as pessoas parecem aprender muito mais na dor. Acredito que, junto disso, é necessário um suporte psicológico que realmente faça a pessoa entender o que está fazendo, porque o que se percebe é que quem tem preconceito não acha que está errado”, opina.

Até a finalização desta reportagem, o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense não retornou aos pedidos de entrevista da Beta Redação.

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Vitorya Paulo
Redação Beta

Jornalista, nascida no Rio Grande do Sul mas com sotaque indefinido. Apaixonada por cachorros, gastronomia italiana, maquiagem, bom senso e empatia.