(Arte: Deivid Duarte/Beta Redação)

Ambiente escolar deixa os jovens à vontade para falar de sexualidade

Mesmo sem formação específica, professores buscam alternativas para orientar, enquanto país carece de legislação

Beta Redação
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8 min readJun 26, 2019

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Sala cheia, início de aula. A professora de ciências pede para os alunos abrirem o livro no capítulo sobre corpo humano e reprodução. Chegou o tão esperado momento de explicar as gravuras que ilustram os órgãos sexuais que atiçam a curiosidade de todo jovem. Entre o silêncio constrangido e as risadas abafadas da turma, a professora pergunta se alguém sabe como são feitos os bebês. Um engraçadinho grita: “transando, professora”. Todo o mundo ri. Logo, a discussão envereda pelas dúvidas dos jovens em relação ao sexo e a sexualidade.

A cena descrita é bastante comum quando o tema discutido é educação sexual, mas a professora Luciane Debastiani Flech, supervisora da Escola Municipal Santa Marta, de São Leopoldo, cometa que o assunto não é exclusividade da aula de Ciências. “Tu pode estar falando sobre qualquer coisa, sobre o clima, por exemplo, mas se eles querem saber sobre algo, fazem perguntas mesmo. Até os mais envergonhados, ainda que separados da turma”, relata.

Nesse sentido, Luciane, que leciona Geografia, explica que, na Escola Santa Marta, a educação sexual não é trabalhada como uma única disciplina, mas em abordagens transdisciplinares. “Se ocorreu alguma dúvida na minha aula, eu não digo para o aluno procurar outra professora. Aqui a gente para e intervém. Os professores de filosofia e sociologia também conversam muito com eles. Acredito que não temos nenhum tabu ou problema quanto a isso”, declara.

Localizada em uma comunidade carente de São Leopoldo, na Escola Municipal de Ensino Fundamental Santa Marta o assunto educação sexual é tratado desde cedo. Segundo a supervisora Luciane, os professores da instituição perceberam que não existe idade para falar sobre o tema e, assim, passaram a abordá-lo tentando adequar para cada faixa etária.

“Não tem aquela história de ‘ah, só a partir do 7° ano que a gente pode falar sobre isso, se tu está no 6°, vai ter que esperar até o ano que vem’. A hora que o adolescente ou o pré-adolescente tem a curiosidade, tu tens que intervir, porque se tu não matar essa curiosidade, ele vai descobrir de algum jeito”, declara.

A psicóloga clínica Thais Blankenheim, que desenvolve pesquisas nas temáticas relacionadas à diversidade sexual e de gênero, reforça que a educação sexual deve estar incluída na vida da criança desde sempre. “A sexualidade abrange enormes questões e não só o ato sexual. Então, pensando a educação sexual dessa forma, ela está presente em todas etapas da nossa vida, de formas diferentes”, garante.

Sobre o momento certo para começar a conversa sobre sexualidade nas escolas, a indicação é de que as crianças recebam informação sobre o assunto assim que demonstrarem interesse.

“Quando a criança pergunta sobre alguma coisa, ela está preparada para saber sobre aquilo. A gente vai explicar conforme a idade, de acordo com o que ela tem condições de entender, mas é uma informação importante. Quando a criança pergunta sobre as coisas, quer dizer que ela está tentando descobrir como funciona e saber sobre o mundo”, explica Thais.

Em 2014, A Organização das Nações Unidas (ONU) lançou um documento com recomendações para a aplicação de educação sexual nas escolas brasileiras. O material orienta que as crianças e adolescentes aprendam e discutam sobre a temática ao longo de todas as fase escolares.

As orientações da ONU estabelecem objetivos específicos de aprendizagem para cada faixa etária, a começar pelos cinco anos de idade. Nas turmas iniciais, por exemplo, o foco é estabelecer os princípios da família e o entendimento das premissas biológicas. O conteúdo avança até os 18 anos, fase em que o jovem deve compreender a complexidade social das questões sexuais que envolvem gênero e Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), além de conhecer o tratamento correto para cada situação.

Thais destaca que é só na fase da adolescência que os alunos vão receber informações sobre o comportamento sexual. “Aí, sim, entra uma questão mais relacionada ao ato sexual, as relações, o comportamento e a saúde sexual. É a hora de reconhecer e reduzir o risco de infecções sexualmente transmissíveis e falar sobre alguns tipos de tratamento”, explica.

(Arte: Murilo Dannenberg/Beta Redação)

Apesar da facilidade dos docentes da Escola Santa Marta em lidar com o tema, não há indicação de disciplina específica nem treinamento para os educadores. A única definição sobre o ensino sexual nas escolas brasileiras está na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que padroniza as competências a partir das quais todos os colégios deveriam ensinar. Porém, o documento não define, por exemplo, os conhecimentos que o docente precisa ter para lecionar sobre o tema sexualidade.

Por conta disso, muitas escolas não conseguem abordar o assunto de maneira adequada. Aliás, em muitos casos, as instituições educacionais não conseguem incluir a temática no plano de ensino. Segundo pesquisa realizada em todo o país pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), 33% das mulheres entre 16 e 25 anos dizem não ter tido aula de educação sexual.

O artigo Educação sexual em escolas brasileiras: revisão sistemática da literatura, publicado em 2018, aponta que “no ambiente escolar, os professores de Ciências e Biologia têm sido os principais responsáveis pela educação sexual”. Eles atuam em 16,6% do ensino da temática em todo o Brasil, mas o assunto também é abordado por docentes de áreas diversas, como Educação Física e, até, Geografia. Por outro lado, em intervenções externas, que desenvolvem ações temporárias na escola, o cenário muda: o estudo indica que os profissionais da Enfermagem se destacam em 37,5% dessas iniciativas.

Para a psicóloga e especialista em sexualidade Tatiane Dias Scotta, as instituições educacionais precisam investir na preparação dos professores, pois é um conteúdo que os jovens vão levar para a vida. “Acredito que a abordagem nas escolas está, sim, evoluindo, mas ainda são aqueles professores mais preparados e preocupados com o saber dos alunos que estão fazendo a diferença por conta própria”, opina. Segundo ela, o papel das instituições de ensino é repassar as informações certas no momento certo para os jovens, além de sanar qualquer dúvida que eles venham a ter.

No colégio Santa Marta, as abordagens de educação sexual contam com o apoio do Núcleo Interdisciplinar de Saúde na Escola (NISE), no qual docentes podem discutir as melhores formas de abordar o tema. Além disso, Luciane relata que a instituição recebeu materiais de apoio pedagógico do Programa de Saúde da Escola (PSE) .

Com verba da prefeitura, escola disponibiliza materiais sobre sexualidade, mas a falta de legislação específica sobre o tema prejudica o ensino da educação sexual. (Foto: Pâmella Atikinson/ Beta Redação)

“Aqui, se o professor se sente apto, ele pode parar a aula e fazer essa intervenção com a turma. Se o professor acha que não poderá responder as perguntas dos alunos ou que não tem abertura com a turma para tratar do tema, ele encaminha para mim. Mas, normalmente, eu não preciso interferir, pois o pessoal dá conta”, explica a supervisora.

Luciane conta, ainda, que todos os materiais pedagógicos sobre educação sexual ficam disponíveis aos educadores na biblioteca. “ Não são apenas cartilhas sobre sexualidade. Temos sobre vários outros temas à disposição dos professores que podem ser usados para consulta no local ou para levar para as aulas”, relata.

Para Carmen Eli Alves, professora de Educação Física na rede municipal de Novo Hamburgo e técnica de enfermagem, o melhor é responder a todas as perguntas com naturalidade: a dica é ir direto ao ponto.

“A criança ou adolescente quer saber se sim ou não. O adulto dá voltas e aí complica. Lembro de uma professora do curso técnico que nos dizia: ‘melhor ter muita informação do que nenhuma’. O profissional deve usar de habilidade para despertar curiosidade nos alunos”, resume Carmen, que atua em campanhas sobre sexualidade e prevenção de ISTs.

A orientadora Elisa Souza, do Colégio Estadual Augusto Meyer, localizado no bairro Tamandaré, em Esteio, acredita que os professores que lecionam educação sexual têm dificuldade de tocar em alguns assuntos com os jovens. “A discussão da sexualidade liberou o empoderamento das meninas, mas estão esquecendo dos cuidados básicos. O contágio de sífilis, gonorréia, AIDS aumentou. Para ela, a questão do prazer e da sexualidade, que também é importante, está dominando as aulas. “Os professores esquecem de ensinar a importância da camisinha”, desabafa Elisa.

Nesse sentido, a sexóloga Tatiane Dias Scotta esclarece que a educação sexual deve proporcionar conhecimento e esclarecer dúvidas sobre temas relacionados a sexo, sexualidade e relacionamentos. “Ela empodera as pessoas para viverem relacionamentos saudáveis, com felicidade e, acima de tudo, com respeito. Significa cuidar de si, do próprio corpo e do corpo do outro”, salienta.

A psicóloga Aline Daniela Gonçalves de Oliveira Farias, coautora da pesquisa Diálogos sobre sexualidade na escola: uma intervenção possível, destaca que a questão da sexualidade é muito ampla. “Envolve relações de gênero. Não é apenas o sexo. São questões de respeito a diferenças, promoção do cuidado, seja clínico ou pessoal, sempre buscando entender o limite do outro”, reitera.

Aline aponta que o preconceito também influencia na educação sexual. “O jovem tem acesso à informação, seja na internet ou pelos amigos, mas não se tem uma reflexão em cima disso. Então, são produzidos muitos tabus e preconceitos, levando esses jovens a comportamentos de risco, seja com a transmissão de doenças ou uma gravidez não desejada”, explica.

Apesar das dificuldades, a professora Luciane Debastiani conta que, muitas vezes, os alunos se sentem mais seguros para fazer perguntas sobre sexo para os professores do que para os pais. Segundo a docente, às vezes, os jovens não encontram abertura para tratar o tema em casa, ou os pais não se sentem à vontade ou capacitados para conversar sobre o assunto. “Aí entra aquela discussão ‘não seria a família que teria que abordar esse assunto?’. Mas eu acho que a escola acaba sendo um local em que eles têm mais abertura do que com os pais”, acredita.

Para Luciane, os jovens sentem vergonha de falar sobre esse tema com a família, especialmente as meninas. “Elas não conseguem ter essa conversa com os pais e trazem para a escola. Os pais até conversam, mas existe uma dificuldade do jovem se abrir. Eles têm vergonha de perguntar coisas meio óbvias”, pondera.

Segundo a psicóloga Thais Blankenheim, a escola oferece maior segurança aos jovens porque, em casa, a discussão sobre sexualidade pode ser marcada por conflitos emocionais. “Os pais vão responder para os filhos de acordo com o que eles aprenderam. Muitas vezes, eles não tiveram educação sexual nenhuma e outras vezes essa informação vai estar influenciada por questões emocionais dos familiares”, explica.

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A Beta Redação integra diferentes atividades acadêmicas do curso de Jornalismo da Unisinos em laboratórios práticos, divididos em cinco editorias.