Após dois anos, Carnaval de São Leopoldo está de volta
Com muita expectativa por parte dos organizadores e do público, a festa ocorrerá no dia 30 de abril, na avenida Dom João Becker
Por Amanda Bier e Mayana Serafini
Um evento popular que vai muito além de uma festa. Livre de amarras, é um movimento predominantemente político, um símbolo de resistência cultural e de luta contra o racismo. Feito pelo povo e para o povo. Em São Leopoldo, o Carnaval resiste. Com mais de 100 anos de tradição, a cidade é uma das poucas no Estado que se empenharam para a realização do evento este ano. Marcado para sábado, dia 30 de abril, o desfile acontecerá na avenida Dom João Becker, em frente ao Ginásio Municipal Celso Morbach, a partir das 21h.
No entanto, até o momento de adentrar na avenida, o trabalho é árduo. Após dois anos sem folia em função das restrições para evitar o contágio pela Covid-19, as escolas de samba estão retomando as atividades, com esforço e dedicação, para uma apresentação que promete muitas alegrias. De acordo com o coordenador do Carnaval de São Leopoldo, Neno Baz, a expectativa para esse retorno é grande.
“Como somos um dos únicos municípios do Rio Grande do Sul a realizar o evento, o público carnavalesco de toda a Região Metropolitana, inclusive de Porto Alegre, está se mobilizando para assistir o nosso Carnaval. A avenida, que sempre recebe em torno de 8 mil a 12 mil pessoas, pode chegar a mais de 20 mil este ano”, salienta Neno, lembrando que a festa seguirá o decreto vigente que inclui a recomendação de uso de máscaras em eventos de grande aglomeração.
Com o tema “Carnaval em alto Astral”, o evento fará ainda um tributo ao sambista e compositor Everton Bittencourt, conhecido como Tom Astral, que faleceu devido à Covid-19 em novembro de 2020. A passarela oficial também ganhou o nome do músico, que marcou a comunidade carnavalesca leopoldense e gaúcha. Segundo Neno, colocar o bloco na rua este ano representa a retomada da vida, mas sem esquecer daqueles que foram vítimas da doença. “A gente perdeu muita gente nessa pandemia, amigos do Carnaval. Por isso, vamos homenagear o carnavalesco Tom Astral, que levava o nome da cidade para todo o Brasil através do seu samba”, ressalta o coordenador.
Com acesso gratuito e sem classificação etária, a avenida do Carnaval 2022 contará com o desfile de seis escolas de samba: Imperadores do Sul, Estação Primeira de São Léo, Alambique Leopoldense, Acadêmicos Verde e Rosa, Leões da Feitoria e Império do Sol. Esta última não participará da disputa, pois estará representando São Leopoldo no Carnaval de Porto Alegre, sendo a quarta escola a desfilar na noite do dia 7 de maio, pelo Grupo Ouro.
Este ano, apenas três municípios gaúchos — São Leopoldo, Porto Alegre e Cruz Alta — irão realizar o evento. Para o secretário de Cultura e Relações Internacionais de São Leopoldo, Pedro Vasconcellos, além da insegurança devido à pandemia e à saúde pública, o racismo estrutural foi um dos grandes fatores que influenciaram o cancelamento da festa em diversas cidades do estado. “Existe um preconceito na sociedade gaúcha que adora a Festa da Uva, que adora festa alemã, mas quer cancelar e falar mal das festas da cultura afro e da cultura negra. No nosso estado, não podemos tapar o sol com a peneira e fingir que isso não existe”, destaca ele.
Em relação ao desfile das escolas de samba leopoldenses, Vasconcellos está confiante e acredita que a apresentação irá repercutir muito bem. Para a noite do dia 30 de abril, a expectativa é de que em torno de 20 mil a 30 mil pessoas estejam presentes na avenida Dom João Becker. “O fato de a cidade ter ficado dois anos sem Carnaval nos gera um certo receio de como vai ser a reação do público agora, mas a gente está imaginando que a reação vai ser positiva, pois muitas pessoas estão com vontade de ir para a rua de novo”, enfatiza Vasconcellos.
O secretário de Cultura do município também destaca o apoio da prefeitura às agremiações de samba da cidade. Segundo ele, “cada escola recebeu R$ 15 mil no inciso II da Lei Aldir Blanc para a manutenção das suas quadras em 2020. Em 2021, elas também participaram de um edital de auxílio emergencial para que todas as escolas pudessem se beneficiar com algum recurso”. Neste ano, cada agremiação recebeu um cachê de R$ 20 mil, além da possibilidade de exploração de alguns pontos comerciais na avenida e nos camarotes. De acordo com Vasconcellos, cada escola deverá ter um caixa médio de R$ 25 mil, além dos recursos captados nos anos anteriores, o que reflete um bom apoio cultural às escolas de samba locais.
Para Neno, coordenador do Carnaval, todo esse apoio financeiro foi essencial, principalmente na pandemia. “Foi um alívio, porque muita gente não podia trabalhar, não tinha dinheiro, não tinha comida, muitos passaram fome. Nesse período, também realizamos campanhas de arrecadação de alimentos para ajudar os componentes das escolas de samba. Então, mais do que uma festa, o Carnaval também ajuda muitas pessoas e promove inclusão social”, aponta.
Um Carnaval feito com muito amor
Falta pouco para as escolas de samba tomarem conta da avenida. Para que tudo saia conforme o combinado, o trabalho está em ritmo acelerado. Segundo o atual Rei Momo de São Leopoldo, Ivo da Silva Júnior, de 39 anos, que está no comando da festa desde 2008, a emoção e a vontade de fazer acontecer estão tomando conta. “Tudo está sendo preparado com o máximo de amor, carinho e dedicação. Como estamos há dois anos sem folia, todo mundo está ansioso esperando por esse retorno e trabalhando com garra para fazer uma grande festa. Em 2022, vamos ter um dos mais belos carnavais que a cidade já viu. Queremos mostrar toda a nossa alegria e trazer a esperança de um povo feliz novamente”, salienta.
Para Ivo, a realização da festa, em pleno outono gaúcho, carrega uma responsabilidade a mais. “Este é um ano diferenciado para nosso Carnaval porque, além de ser fora de época, somos uma das únicas cidades da região que vai fazer o evento. Por isso, vamos redobrar os esforços para garantir que o povo da periferia, que é um povo discriminado e sofrido, aproveite e se divirta muito. Muita gente não tem capital para ir à praia, ir à serra, então dentro do Carnaval essas pessoas estão inseridas, e é isso que a gente quer, trazer momentos de felicidade através dessa cultura popular, que é a mais linda do Brasil”, comenta.
Para essa retomada do Carnaval, o Rei Momo conta ainda com a ajuda das integrantes da corte de 2019, que foram reconduzidas para 2022 devido à pandemia. A rainha Karolaine Marques e a princesa Brenda Santos estão participando ativamente dos ensaios das escolas de samba, das muambas e de outras atividades culturais para divulgar o desfile de São Leopoldo. Sobre a valorização do Carnaval na cidade, além do empenho da corte, Ivo destaca também o trabalho que vem sendo realizado pelo poder público.
“Porto Alegre vai ter Carnaval, São Leopoldo também, e as outras cidades da região, como Canoas, que tinha um belo desfile, não vão ter. Então, temos que olhar para essa situação e pensar o que está acontecendo. Na minha opinião, eu acho que isso é falta de pessoas competentes para trabalhar para aqueles que mais precisam, para o povo da periferia, que só tem este momento de felicidade durante o ano na vida. Por isso, valorizo muito as pessoas que estão à frente do nosso Carnaval, que é o caso do prefeito Ary Vanazzi, do secretário de cultura Pedro Vasconcellos e do coordenador Neno Baz. Todos estão sendo incansáveis para que essa festa popular aconteça”, destaca o atual Rei Momo.
Já em relação à trajetória no meio carnavalesco, Ivo conta que desde pequeno acompanhava os pais nos desfiles das escolas de samba. Quando criança, para ficar no meio da bateria fazendo um som, começou a tocar um repenique improvisado feito com uma lata de Nescau e uma caixeta em cima. Com o tempo, conforme foi crescendo, Ivo passou a se envolver cada vez mais em atividades dentro da escola de samba como, por exemplo, na preparação e montagem de carros alegóricos.
“Eu fazia esse serviço bruto antes do desfile que muita gente nem sabe que existe. Antes do espetáculo, sempre tem todo o trabalho dos soldadores, das pessoas que dobram ferro, das costureiras e do pessoal que desenha e elabora as fantasias. É um trabalho manual, onde mostramos o lado artístico do nosso Carnaval. Muitas pessoas criticam, mas nunca entraram dentro de uma escola de samba para ver como ela impacta positivamente uma comunidade”, frisa.
Outra questão lembrada por Ivo é o trabalho social desempenhado pelas escolas. Esse, inclusive, foi o motivo pelo qual ele escolheu se tornar Rei Momo. “Uma vez o coordenador do Carnaval de São Leopoldo chegou para mim e falou que eu devia concorrer à faixa porque eu me encaixava muito no perfil. Sempre fui uma pessoa espontânea, feliz, que gosta de ajudar e de ver todo mundo sorrindo. Então, a partir desse momento, me preparei, fiz o concurso e conquistei o cargo de Rei Momo”, conta Ivo, que — além de animar e levar felicidade para as pessoas — ainda participa, dentro da escola de samba, de projetos sociais voltados para crianças.
Contudo, por mais que essa celebração seja um momento de ajuda ao próximo, de boas ações e de manifestações culturais coletivas — especialmente do povo preto, pobre e periférico —, o preconceito com o Carnaval, por parte de uma parcela da população, ainda é algo comum. Na visão de Ivo, essa discriminação muitas vezes está disfarçada em falas como “podiam deixar de realizar o Carnaval para colocar o dinheiro na saúde”. “Nesses casos, é importante reforçar que os recursos destinados a um setor não podem ser empregados para outro fim. A legislação não permite. O dinheiro da cultura só pode ser destinado para o Carnaval, para a São Leopoldo Fest, entre outros eventos e atividades culturais da cidade”, salienta.
Ainda, segundo o Rei Momo, todo esse preconceito pode ser sim superado, talvez não aos olhos dos outros, mas no coração de cada um que está dentro das escolas de samba. “Essas pessoas que fazem e vivem o Carnaval não têm que se preocupar com quem vai discriminar e falar mal. O preconceito está enraizado, assim como todas as coisas ruins que existem no mundo. E isso só vai acabar se a gente fizer a nossa parte, mostrando todo o amor e o carinho que temos uns pelos outros. É isso que a gente precisa, porque as coisas ruins já existem em todos os lugares. Então o preconceito tem, o Carnaval tem também, e a gente vai seguir feliz tocando a nossa vida e fazendo maravilhosamente essa festa”, finaliza Ivo.
De acordo com a rainha Karolaine Marques, de 25 anos, o racismo está presente em todos os lugares, independentemente de estado, classe social e religião. “Hoje ainda temos muito o que brigar para sermos ouvidos e respeitados, mas nunca deixamos a peteca cair. Estamos sempre mostrando que o nosso Carnaval tem uma grande trajetória e que não começou do nada, muito menos ontem”, pontua Karolaine.
Nas visitas feitas pela corte às agremiações, a rainha comenta que todas estão muito bem preparadas e com vontade de Carnaval. Quanto às expectativas para a folia, a soberana destaca: “as melhores sempre, positividade, esperança, saudades, energia acumulada… Este ano será um Carnaval diferente de todos os outros, pois estamos loucos para retornar à normalidade, inclusive os espetáculos como o Carnaval, mostrar a nossa cultura e viver a felicidade que ela pode nos transmitir”.
Para Karolaine, o Carnaval vai além de uma festa. É cultura, é história, além de influenciar a economia do município na criação de empregos para muitas famílias. A soberana ressalta a importância da festa popular, que ajuda desde o catador de latinha ao empresário. Depois de dois anos sem o evento, a vontade, segundo a rainha, é de viver o tempo perdido e de ver o povo vibrando novamente nas arquibancadas. Para ela, a noite será de muita celebração, dança e samba.
A espera pela festa
Quem também vive momentos de expectativa para o desfile das escolas de samba de São Leopoldo é Renan Silva Neves, de 25 anos. Desde 2017 o jornalista e amante do Carnaval realiza a locução oficial do evento. Para ele, a folia deste ano será de muita emoção. “As escolas ainda estão enfrentando dificuldades financeiras e fazer um desfile é algo que envolve custos. Além disso, também já estamos fora de época, é mês de abril, está frio, e isso dificulta tanto para o público quanto para os desfilantes. Então, acredito que teremos um Carnaval de muita garra, mas também de muita alegria, muita gente matando a saudade de desfilar. São Leopoldo é uma cidade que vive de forma sanguínea essa paixão pelo Carnaval, dá pra ver que toda a comunidade é muito apaixonada pelas escolas de samba locais”, aponta.
Segundo Renan, transmitir emoção para as pessoas é uma tarefa fundamental na função de locutor. “Isso é de grande importância, pois todo mundo que está ali fica ansioso para ver as escolas de samba na avenida. Depois, anunciar as notas e conferir quem foi o grande campeão, é outro momento de pura emoção”, conta. Este ano, a apuração ocorrerá no domingo, dia 1º de maio, a partir das 14h.
Um pouco da história do Carnaval leopoldense
O Carnaval é, sem dúvidas, uma parte importante da cultura de São Leopoldo. Os primeiros registros da festa no município são de 1893 e estão expostos no Museu Histórico Visconde de São Leopoldo. As fotografias mostram desfiles de carros alegóricos e pessoas fantasiadas na Rua Independência, evidenciando a inspiração do Carnaval português dos entrudos, certamente uma tradição trazida pelos portugueses para a localidade, visto que São Leopoldo, desde sua fundação, sempre teve uma proeminente presença portuguesa e açoriana.
A festa popular esteve presente em 129 dos quase 200 anos de história leopoldense. Durante esse tempo, o Carnaval municipal passou por diversas transformações. Em meados dos anos 20, com o surgimento de blocos, cordões e eventos carnavalescos na sociedade, os desfiles na Independência passaram a ganhar um caráter popular, contando com a participação da população negra.
Diante dessa influência, no final dos anos 70, surgiram as primeiras escolas de samba municipais. Pedro Vasconcellos, secretário de Cultura e Relações Internacionais de São Leopoldo, destaca que a partir dos anos 80 a comunidade negra passou a exercer uma importante presença no Carnaval da cidade, o que marcou a diversidade da festa.
Contudo, foi apenas nos anos 2000 que o Carnaval do município passou a ter o formato que perdura até os dias atuais. Saindo da Rua Independência, os desfiles se estabeleceram na avenida Dom João Becker, onde serão realizados neste ano. Vasconcellos ressalta o comprometimento da gestão pública em apoiar o evento. “São Leopoldo tem compromisso político, tem compromisso histórico e cultural com o Carnaval.” O secretário reconhece que o comprometimento do município com a festa popular é antigo, porém aponta que a atual administração não mede esforços para fortalecer o evento.
O Carnaval 2022 de São Leopoldo ocorrerá no sábado, dia 30 de abril, a partir das 21h, na avenida Dom João Becker, em frente ao Ginásio Municipal Celso Morbach. O acesso ao evento será gratuito e não possui classificação etária.