Apenas 5% das pessoas com deficiência têm emprego formal no RS

Beta Redação
Redação Beta
Published in
20 min readDec 13, 2020

Apesar da Lei das Cotas, especialistas ouvidos entendem que falta uma política de educação pública mais ampla para aumentar a inclusão

Por Guilherme Silva dos Santos, Lucas Girardi Ott e Régis Viegas

95% dos PcDs recorrem a trabalhos informais ou estão desempregados. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Segundo o IBGE, meio milhão de gaúchos em idade ativa (18 a 64 anos), tem alguma deficiência. Toda esta população conta com uma Lei de Cotas que regula a obrigatoriedade das empresas com 100 ou mais empregados a preencherem seus quadros com 2% a 5% dos cargos . A lei é importante, mas na prática, os números de gaúchos com deficiência que possuem vínculo formal é muito pequeno: pouco mais de 30 mil pessoas. A reportagem cruzou os dados. Uma consulta ao Radar SIT, que compila indicadores da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) e do Censo Demográfico do IBGE, aponta que o montante de vagas para PcD reservadas no RS é de 43.386. Mesmo tímido, este montante não consegue ser totalmente preenchido. 37% das vagas seguem abertas. Ao longo dos últimos três meses, a reportagem trabalhou com dados, ouviu pesquisadores, organizações e a fiscalização do trabalho. Os números e depoimentos apresentados nesta reportagem apontam que a Lei de Cotas para PcD por si só não é capaz de garantir mais oportunidades na inserção no mercado de trabalho para as pessoas com deficiência. Mais do que um acréscimo na fiscalização do trabalho para garantir que a legislação de fato seja cumprida, e que se atinja um nível ao menos aceitável de equidade de oportunidades, é preciso uma mudança comportamental e estrutural de toda a sociedade, passando por adaptações da educação básica à cursos profissionalizantes, de graduação e por fim do mercado de trabalho. Veja a seguir.

Estado possui um déficit de 36,6%. (Gráfico: Lucas Ott)

Um dos muitos casos que retratam a realidade de boa parte das pessoas com deficiência é o de Roberta de Matos, 34 anos, estudante de Análise e Desenvolvimento de Sistemas que está procurando uma recolocação no mercado de trabalho. Há dez anos, Roberta sofreu uma amputação traumática no membro superior esquerdo. Desde então, a estudante exerce o seu direito de se candidatar em vagas para pessoas com deficiência. Além de sua deficiência, Roberta é uma mulher trans. Ela acredita que falta sensibilidade por parte de algumas empresas para empregar pessoas com deficiência.

O inciso I do Artigo 2º da Lei de Acessibilidade nº 10.098 de 19 de dezembro de 2000, que acessibilidade significa: “possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, dos espaços, mobiliários e equipamentos urbanos, das edificações, dos transportes e dos sistemas e meios de comunicação, por pessoa portadora de deficiência ou com mobilidade reduzida”.

Roberta entende que não é fácil cumprir estes quesitos como conseguiu identificar na universidade em que trabalhou entre 2017 e 2018. “Lá, tínhamos que nos deslocar muito. Havia outras pessoas com mobilidade reduzida trabalhando lá e era necessário que essas pessoas se deslocassem até outros lugares da universidade, como ir ao financeiro por exemplo”, conta. “As empresas deveriam colocar as pessoas em ambientes de trabalho que a deficiência delas não causasse malefícios ou constrangimentos”, conclui Roberta.

Gráficos acima mostram as vagas ocupadas e os déficits nas empresas públicas, privadas e de administração mista. (Gráfico: Lucas Ott)

Quase vinte anos após a criação da Lei da Acessibilidade, o cenário, seja no setor público ou privado, está longe daquilo que é determinado por lei, conforme mostram os gráficos acima. Todas as informações contidas neles foram retiradas da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), disponibilizadas pelo Radar SIT.

Luís Fernando Feijó, 31 anos, cadeirante há 14 anos, trabalha como auxiliar administrativo na Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Ele acredita que a lei é a grande responsável por estar podendo trabalhar. "Estamos ali pela cota e quando realmente mostramos nossa vontade e disponibilidade para o trabalho eles conseguem enxergar que somos aptos, independentemente da deficiência”, afirma Luís, que completa: “A lei é necessária, caso contrário, as pessoas com deficiência teriam ainda mais dificuldades no mercado de trabalho do que já tem hoje”.

Como a maioria dos cadeirantes, Luís enfrenta problemas para chegar ao trabalho — falta de ônibus com adaptação, veículos com a plataforma elevatória estragada e calçadas deterioradas. Para evitar essas barreiras, ele utiliza seu carro para fazer o deslocamento até o trabalho, pelo menos três vezes por semana. Luís considera a acessibilidade em seu local de trabalho boa, pois, o local conta com banheiro adaptado e rampas de acesso

“Da entrada na Universidade até minha área de trabalho, a acessibilidade é boa dentro do possível. Até o restaurante ou refeitório. A única coisa é que para eu ir até esses locais é porque eu percorro uma distância um pouco maior do que meu colegas sem deficiência, uma vez que o local onde estão os elevadores é no lado contrário de onde está o setor onde trabalho”, relata.

Luis chegou a fazer testes para uma vaga nas empresas Stihl e Gedore, mas não foi contratado. Ele disse à reportagem que o motivo para sua não contratação, repassado pelas empresas, era que o piso da fábrica não estava apto para um cadeirante. Para Luís, o que aconteceu foi a não contratação por conta de um preconceito, pois achavam que seria impossível uma pessoa na cadeira de rodas trabalhar entre as máquinas.

“Sou formado em Ferramentaria, Técnico em Mecânica incompleto e tento entrar na área há anos, mas a justificativa é sempre a mesma: que o setor não é apto para receber um deficiente com minha lesão. Porém, já fiz testes para área e consegui desempenhar as funções que me foram passadas e, ainda assim, a desculpa foi que seria inviável ter um pessoa com minha lesão naquele setor, mesmo eu provando o contrário e vendo os espaços que não me atrapalhavam em nada tendo como ir e vir sem ajuda de terceiros”, lamenta Luís.

Dentre os setores que mais oferecem vagas a pessoas com deficiência, é justamente o da Educação, como mostra o Radar SIT, que tem 82,% das vagas reservadas preenchidas. Porém, o grande contingente de trabalhadores PcDs no Estado está na Indústria de Transformação, com 12.250 trabalhadores no Rio Grande do Sul. Ou seja, quase metade dos gaúchos com deficiência que possuem emprego formal trabalham neste setor. Das vagas reservadas neste setor, 76,0% estão preenchidas.

Já a Administração Pública, Defesa e Seguridade Social (que compõe todos os órgãos públicos), é o setor econômico que menos emprega pessoas com deficiência, com apenas 11.6% das vagas disponíveis pela Lei de Cotas ocupadas. Na sequência, temos Atividades Administrativas e Serviços Complementares, com 15.6%, e construção, com 36.5% das vagas disponíveis ocupadas. Esses dados estão disponíveis no Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, também disponibilizado pelo Radar SIT.

Baixa escolaridade é apontada como um dos principais problemas para o ingresso de Pessoas com Deficiência no mercado de trabalho

Silvia Amaral, 54 anos, aposentada por tempo de contribuição, trabalhava como auxiliar administrativa. Por conta de sequelas da poliomielite, ela possui o membro inferior esquerdo quatro centímetros e meio menor do que o direito, além de ter pouca mobilidade nessa perna. A moradora de Sapucaia do Sul também não possui visão no olho direito.

“Eu nunca tive dificuldade para arrumar emprego, porém isso não significa que ela não exista. Há muitas dificuldades quanto ao ingresso de pessoas com deficiência no mercado de trabalho, pois muitos deficientes não são capacitados e as empresas buscam pessoas para produzir e não apenas para preencher a vaga de cota”, acredita Silvia.

“Antes, o PcD geralmente era escondido, nem ao menos tinha aula regular na escola. Por conta disso, falta qualificação. Muitos dos PcDs, principalmente na minha idade, não cursam nem ao menos o ensino médio e isso torna-se uma dificuldade a mais”, completa.

A realidade a qual Silvia refere-se é reforçada pela procuradora do Ministério Público do Trabalho, Dra. Janilda Guimarães de Lima. “Um dos maiores obstáculos continuam sendo o acesso das pessoas com deficiência a cursos de qualificação que possam prepará-los de forma eficaz para o mercado de trabalho”, conta Janilda, que complementa: “A família é o primeiro obstáculo para a pessoa com deficiência, pois a superproteção e o preconceito fazem com que os pais e familiares tratem essas pessoas como incapazes, superprotegendo-as”.

Janilda conta que muitos familiares de pessoas com deficiência não acreditam que eles tenham ou possam desenvolver condições para trabalhar. “Muitas famílias não se esforçam para desenvolver os seus filhos ou colocá-los em terapias que possam lhes dar autonomia suficiente para trabalhar. Preferem mantê-las recebendo o Benefício da Prestação Continuada (BPC)”, conclui.

Apesar disso, o direito das pessoas com deficiência à matrícula em classes comuns do ensino regular é amparado no artigo 205 da Constituição Federal. Nele, está descrito que a educação é um direito de todos, dever do Estado e da família, com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Segundo dados do Censo Escolar 2018, no ano de 2014, haviam 886 mil estudantes com deficiência matriculados. Já no ano de 2018, o número de matrículas passou a ser de 1,2 milhão.

Falta investimento para uma educação inclusiva

Tatiana Takeda, 41 anos, é mestre e professora universitária de Direito na Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Membro de Comissões de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência da OAB Nacional, Tatiana é especializada na área de educação para PcDs.

Em entrevista por Whatsup, Tatiana aponta que o principal motivo para não haver a plena inclusão de pessoas com deficiência nas escolas é a falta de investimento. “Precisamos de investimento, pois a inclusão social se faz a partir da capacitação docente, dos demais funcionários da escola, do acompanhante de apoio escolar devidamente especializado em educação especial e, também, da adaptação de currículo. As pessoas com deficiência precisam ser enxergadas como seres únicos que são. Não podem ser comparadas com outras crianças e adolescentes. É preciso que exista um projeto pedagógico e medidas individuais para esses alunos”, afirma.

Apesar de ressaltar a importância de enxergar esses estudantes como diferentes, a advogada alerta que educação inclusiva é diferente de educar pessoas com deficiência em separado. O direito à educação não é simplesmente o aluno estar na escola, o objetivo é que ele participe e aprenda, de modo que se sinta incluído.

“O maior desafio que temos hoje é essa fuga do poder público em se responsabilizar financeiramente pela educação brasileira e pela inclusão escolar. Não tem como ter uma inclusão de verdade se nós não tivermos o investimento necessário, somente com as ferramentas apropriadas teremos a inclusão escolar que queremos”, comenta Tatiana.

Segundo o IBGE, a taxa de desemprego no Brasil atingiu o recorde de 14,4%. No Rio Grande do Sul, o número teve um aumento no segundo trimestre do ano, chegando a marca de 9,4% (no primeiro trimestre era de 8,3%). “Com a pandemia, houve um aumento geral de desemprego no Brasil. Como uma pessoa com deficiência que não teve acesso à educação vai ser inserida no mercado de trabalho, sendo que na fila do desemprego temos PhDs, mestres, doutores e especialistas em todas as áreas? Não tem como competir. Para isso, é necessário investir na inclusão escolar dessas pessoas, precisamos inseri-las juntamente com as demais para que elas sejam respeitadas, para que elas ensinem”, conclui Tatiana.

A falta de escolaridade de PcDs é um fator determinante para a exclusão destas pessoas do mercado de trabalho. Segundo dados do IBGE, apenas 8% das pessoas com deficiência estão cursando ou cursaram mais de 11 anos de estudo, o que equivale ao ingresso no ensino superior.

Porcentagem da população com e sem deficiência, por anos de estudo no RS. (Gráfico: Lucas Ott)

Outro problema bastante presente são as barreiras causadas pela acessibilidade, como foi citado por Luís anteriormente. “Trabalhei num local que era muito grande e os lugares eram distantes. Então, para qualquer coisa que fosse preciso fazer, era necessário percorrer um enorme caminho. Um cadeirante para trabalhar num local, tem que ter um banheiro adaptado. Então, as empresas deixam de contratar, pois se não terão que reformar a estrutura para poder receber aquele funcionário. Essa falta de acessibilidade acaba barrando muita gente.”, conta Silvia, que acrescenta: “Acredito que essa seja a principal dificuldade encontrada, assim como a falta de treinamento dos colegas de trabalho em receber um PcD. Pois, as empresas não investem em instrução e cursos para os funcionários aprenderem como receber uma pessoa com deficiência”.

Associação de Canoas luta pela inclusão de pessoas com deficiência intelectual

Com 94 anos de atuação, a Associação Pestalozzi de Canoas segue lutando em defesa dos direitos das pessoas com deficiência intelectual. A organização atua nas áreas da educação, saúde, assistência social, esporte, lazer, cultura e trabalho, visando sempre o protagonismo e a autonomia de seus estudantes e aprendizes.

Há dois anos, a Pestalozzi Canoas iniciou um projeto de aprendizagem profissional para inserção de pessoas com deficiência intelectual no mercado de trabalho. Os aprendizes deste programa são capacitados, através de aulas teóricas e práticas, para participar do programa Jovem Aprendiz, quando é firmado um contrato de um ano e três meses, entre associação, aprendiz e empresa.

Turma do Curso de Auxiliar Administrativo da Associação Pestolazzi. (Foto: Acervo/Associação Pestolazzi)

Atualmente, existem dois cursos disponíveis: Atendente de Lojas e Auxiliar Administrativo. Antes de direcioná-los para o curso, os alunos passam pela “oficina do trabalho”, uma triagem que visa descobrir as aptidões de cada participante, buscando, também, conhecer melhor cada associado, tendo a certeza de que cumprirão com seus horários e se possuem autonomia para sair de casa sozinho. Somente assim, eles podem assinar um contrato como aprendiz com as empresas.

Após ter o contrato assinado, o aprendiz frequenta a associação quatro horas por dia, cinco dias por semana, durante dois meses. Neste período, ele realizará atividades relacionadas a área em que irá atuar. Cumprida essa etapa, o aprendiz passa a trabalhar na empresa quatro dias por semana e um dia na Pestalozzi. Esse processo é feito para que haja uma supervisão maior e um feedback mais preciso sobre a adaptação no local de trabalho.

“O trabalho precisa ser algo prazeroso para eles. Tem que ser produtivo para a empresa e prazeroso para o aprendiz, sem gerar um conflito dessas duas coisas, pois eles irão exercer as atividades práticas na empresa durante um ano, então eles precisam gostar daquilo. Se eles não conseguirem se adaptar, existe a possibilidade de, ao término do curso, iniciarem o outro curso disponível na Pestalozzi”, comenta a assistente social Daniela Seixas, que há três anos faz parte da equipe da associação.

Daniela ressalta que algumas empresas estão sempre em busca de mais aprendizes, assim como a Pestalozzi segue atrás de novos parceiros, para que conheçam o trabalho realizado por eles e, se possível, disponibilizar novos cursos.

Após a efetivação na empresa, o vínculo contratual deixa de existir junto à Pestalozzi, mas existe um programa chamado “Emprego Apoiado”, que teve início neste ano, com os aprendizes da primeira turma que se formaram em 2019. O objetivo é prestar suporte, realizando um encontro semanal para a pessoa com deficiência leve questões referentes ao trabalho, como relacionamento com colegas de trabalho, com seus superiores, explicações sobre questões trabalhistas e férias.

Daniela ressalta a importância deste trabalho, pois mesmo os alunos estando há um ano e três meses em atividade constante na instituição e, posteriormente, dentro da empresa, às vezes, a Pestalozzi segue sendo suas referências. O “Emprego Apoiado” presta este apoio, pois há casos em que a família não possui o entendimento sobre as questões relacionadas ao ambiente de trabalho.

“A grande maioria dos nossos aprendizes estudam aqui desde sempre, então o vínculo com a Pestalozzi é muito grande. Então, eles confiam muito e a família também confia”, comenta Andrieli Rodrigues, psicóloga há 11 meses na instituição.

O capacitismo, termo que define atitudes preconceituosas e discriminatórias de quem enxerga a pessoa com deficiência como inapta para o trabalho e incapaz de cuidar da própria vida, se manifesta, também, nas empresas. “As empresas estão perdendo deixando de contratar pessoas com deficiência. Elas nos ensinam muito. No caso do autista, por exemplo, ele é muito criterioso. A qualidade do trabalho deles é excelente e é isso o que as empresas não enxergam e não valorizam. A sociedade ainda vê muita limitação em uma pessoa com deficiência, então a gente busca empresas que realmente investem na inclusão de verdade, da mesma maneira que nós investimos na Pestalozzi”, conclui Andrieli.

Daniela, a segunda da direita para a esquerda, com as aprendizes Simeia, Sara e Alissia, que hoje é funcionária da Pestalozzi. (Foto: Arquivo Pessoal/Daniela Seixas)

Fiscalizações e multas parecem ainda não ter grande efeito quanto à efetiva empregabilidade de PcDs

Em 2018, ano da pesquisa mais recente disponibilizada pelo Radar SIT, foram 604 fiscalizações realizadas referentes ao cumprimento das cotas para Pessoas com Deficiência e Reabilitados. Naquele ano, 172 autos de infração foram lavrados no estado. No Brasil, o Rio Grande do Sul é o 6º em número de fiscalizações realizadas e o 9º em infrações impostas.

Auditor fiscal do trabalho desde 2010, Rafael Guiguer, 34 anos, atua exclusivamente na fiscalização de Cotas para Pessoas com Deficiência, de acessibilidade e combate à discriminação nas empresas. Ele também atuou na elaboração de normas regulamentadoras e outros dispositivos normativos.

“Eu percebo que, infelizmente, a lógica das empresas é aguardar chegar a fiscalização para iniciar o seu processo de inclusão de pessoas com deficiência, apesar de existir uma legislação há 29 anos, elas não estão fazendo a sua parte. Sendo assim, aguardam uma penalização ou uma fiscalização para iniciar o processo. Isso já denota um pouco do que chamamos de barreira atitudinal, que seria justamente este preconceito com as pessoas com deficiência, de não compreender a importância do direito delas e do direito às adaptações”, comenta Guiguer.

Atuando diretamente na fiscalização das empresas, Rafael constatou que a maioria delas busca, em primeiro lugar, aquelas pessoas com alguma deficiência leve, que, na prática, não geram nenhuma necessidade de adaptação por parte da empresa ou de acessibilidade dentro do ambiente de trabalho. Guiguer acredita que somente quando não encontram pessoas com deficiência leve, é que as empresas começam a pensar na criação de um programa efetivo de inclusão, compreendendo que as pessoas com deficiência, seja ela física, intelectual, sensorial e/ou mental, tem o direito à dignidade, ao trabalho e que cabe ao empregador adaptar sua empresa e rotinas a diversidade das pessoas. Toda essa situação, segundo o auditor, ocorre devido à falta de compreensão do empregador.

Rafael conta que é realizada uma pesquisa na base de dados do E-social Rais e no Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), para que sejam definidas quais empresas serão fiscalizadas. As fiscalizações também podem ocorrer após a Superintendência do Trabalho receber alguma denúncia.

Durante as visitas para verificar se a empresa está cumprindo todas as normas definidas em lei, os auditores exigem que seja apresentado um programa de inclusão onde haja uma auto avaliação da empresa para promover adequação de acessibilidade. Se encontradas irregularidades, são lavrados autos de infração, que se convertem em multas ou é firmado um termo de compromisso, concedendo um prazo para regularização em casos especiais. Caso seja aplicada a multa por descumprimento, ela equivale a R$5.000,00 por empregado não contratado.

“A lei de cotas é fundamental, pois sem ela — as estatística mostram isso — as pessoas com deficiência não trabalhariam. As empresas só contratam se são punidas ou se são fiscalizadas”, conta o auditor que, com isso, credita às empresas a situação de milhares de pessoas com deficiência ainda estarem fora do mercado de trabalho formal. Para ele, o grande problema é o não cumprimento da legislação por parte dos empregadores. Guiguer afirma que pessoas com deficiência só passaram a ser contratadas depois do ano 2000, quando se iniciaram as fiscalizações por parte do Ministério do Trabalho — vale lembrar que a Lei de Cotas foi sancionada no ano de 1991.

Rafael afirma que 93% dos trabalhadores que possuem alguma deficiência estão empregados em empresas que, por lei, são obrigadas a ter cotas. Mas a maioria dos postos de trabalho se encontram em pequenas e médias empresas, onde não há obrigatoriedade de cotas para PcDs.

Rafael é auditor fiscal desde 2010. (Foto: Arquivo Pessoal/Rafael Guiguer)

O auditor Rafael Guiguer é deficiente visual. Com o avançar dos anos, ele foi perdendo a visão devido a uma doença degenerativa na retina. Foi alfabetizado quando ainda enxergava e conta que, após a perda total da visão, sua escola recebeu treinamento através de um programa pedagógico gratuito do governo do estado, que ajudou a determinar as adaptações necessárias para que ele pudesse exercer todas as atividades escolares.

Guiguer é formado em Engenharia de Materiais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde encontrou muita dificuldade pela falta de estrutura disponível para alunos cegos. Além das barreiras físicas, Rafael diz ter tido que enfrentar o preconceito por parte de dois professores que teriam, inclusive, solicitado que ele abandonasse a faculdade, pois acreditavam que uma pessoa cega não teria capacidade de concluir o curso.

Mesmo após ter concluído sua graduação, Rafael nunca conseguiu uma vaga de trabalho formal na área em que se especializou. Devido a esta situação, se dedicou a procurar por vagas no serviço público através de concursos, onde tornou-se, posteriormente, auditor.

Quanto aos tipos de deficiência, quase metade (42.37%) da população com deficiência entre 18 e 64 anos no Rio Grande do Sul possui deficiência visual, sendo que destes, menos de 2% possuem vínculo empregatício. Já quem possui deficiência física é quem tem mais empregabilidade. Eles compõem 25,23% do total de pessoas com deficiência no RS e representam 38% do total de trabalhadores com deficiência do Estado.

As pessoas com Deficiência que mais atuam no Mercado de Trabalho formal possuem deficiência física. (Gráfico: Lucas Ott)

Estudo também indica que a realidade dos PcDs no mercado de trabalho está longe do ideal

Um estudo conduzido pelas Professoras e pesquisadoras da UFRGS, Ana Cypriano e Liliana Passerino, publicado na 18º edição da Revista Brasileira de Educação Especial, fez uma análise do perfil das pessoas com deficiência inseridas no mercado de trabalho através de um análise realizada no Rio Grande do Sul. Na pesquisa, elas afirmam que, do ponto de vista das empresas, o cumprimento da Lei de Cotas enfrenta uma série de resistências. “A difícil relação que se estabelece entre produtividade e responsabilidade social ainda não obteve respostas ou resultados satisfatórios para nenhuma das partes envolvidas nesse processo”, afirmam.

A pesquisa foi realizada no âmbito de uma organização de grande porte (mais de 1001 funcionários), do ramo de alimentação, com presença em todo o Brasil e também no Rio Grande do Sul, local do desenvolvimento do estudo. Por lei, pelo menos 5% do quadro de funcionários da empresa deveriam ser pessoas com deficiência, número muito distante do 1,1%, cujo foi o montante apurado.

O estudo desenvolveu-se através dos dados coletados disponibilizados pelo Setor de Recursos Humanos da empresa (cujo nome não foi divulgado), e documentos dos funcionários. Após a coleta, os dados obtidos foram tabulados e analisados estatisticamente, além de confrontados com os indicadores nacionais. As conclusões da pesquisa você confere nos próximos parágrafos.

Um dos problemas apontados pela pesquisa é a influência do Benefício da Prestação Continuada — um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência que comprove não possuir meios de prover a própria manutenção — no processo de inclusão do mercado de trabalho, principalmente, para as pessoas com menor escolaridade. Muitas vezes, a opção pelo emprego formal pode significar uma remuneração idêntica ou muito próxima ao valor de benefício assistencial. O trabalho e principalmente a ameaça do desemprego não compensariam o risco de trocar a assistência do Estado, um direito para a vida toda. Apesar de ser possível a recuperação do benefício, caso a pessoa com deficiência opte por trabalhar formalmente por um período, caso uma demissão ocorra, o trâmite não acontece de forma automática.

As pesquisadoras afirmam, no estudo, que não há qualquer juízo de valor ou crítica nessa constatação, ao contrário. “Ao se considerarem as dificuldades sociais que a pessoa com deficiência passa ao longo de sua vida — discriminação social, dificuldade de acesso e participação nas instâncias sociais e, muitas vezes, dificuldades econômicas por conta do custo da deficiência — esta opção não só é compreensível como também razoável”. Além disso, o exercício laboral também gera custos diários como alimentação e transporte.

Cypriano e Passerino concluem o estudo afirmando que, embora seja urgente a educação e qualificação das pessoas com deficiência, isto, apenas, não é suficiente. “É preciso educar também a empresa para a inclusão, enquanto não se estabelecer esta meta as organizações ainda verão a lei de cotas como um problema intransponível ou uma arbitrariedade das políticas públicas. A sociedade precisa pensar verdadeiramente a diversidade humana no sentido mais profundo. Somente assim poderemos viver numa sociedade verdadeiramente inclusiva”, sentenciam.

Gráfico mostra a porcentagem total de PcDs empregados por estado. (Gráfico: Lucas Ott)

Fundação Estadual responsável por fomentar políticas de inclusão para pessoas com deficiência aponta baixa escolaridade e falta de envolvimento da sociedade como os principais motivos da baixa empregabilidade de PcDs

Em 1973, em uma iniciativa do movimento apaiano (APAI), através da Lei Estadual nº. 6.616, foi criada a FAERS — Fundação Rio-Grandense de Atendimento ao Excepcional, vinculada e supervisionada pela Secretaria da Educação e Cultura. Em 1999, a entidade foi renomeada como FADERS — Fundação de Articulação e Desenvolvimento de Políticas Públicas para PCD e PCAH no Rio Grande do Sul. “Nossa missão institucional é desenvolver e articular políticas e ações visando a promoção e concretização da equiparação de oportunidades e a afirmação dos direitos e conquistas das pessoas com deficiência”, afirma a entidade.

Para a instituição, a baixa taxa de empregabilidade das pessoas com deficiência se deve aos seguintes fatores: O Benefício de Prestação Continuada (BPC), já que uma grande parcela das pessoas com deficiência usufrui deste benefício; falta de acessibilidade (inclui-se aqui arquitetônica, comunicacional, metodológica, instrumental, programática e atitudinal), a baixa escolaridade e falta de qualificação profissional — o que vai ao encontro dos estudos das professoras da UFRGS Ana Cypriano e Liliana Passerino. “Parte da responsabilidade também é de alguns empregadores, que não apostam nas potencialidades da PcD”, afirma Thiago Busatto, chefe de comunicação da FADERS.

Mais uma vez, o baixo índice de escolaridade das pessoas com deficiência, segundo Thiago, também explica o baixo número de PcD trabalhando no serviço público (atualmente, apenas 24% das vagas reservadas pela cota PcD nas repartições públicas do estado estão ocupadas), já que a maioria dos concursos públicos exige um nível maior de ensino. “Em contrapartida, a alta taxa de empregabilidade para esta população na indústria da transformação também pode ser justificada pelo mesmo fator, já que os empregos neste setor exigem um nível de formação e qualificação menor”, aponta Thiago.

A FADERS também destaca que apoia diversas medidas para a inclusão da pessoa com deficiência no mercado de trabalho. Elas incluem cursos de qualificação profissional em instituições profissionalizantes e desenvolvimento de programas de inclusão laboral. “Também é importante lembrar das ações realizadas pelo Sine/RS e outras agências de emprego, conjunto de Leis, programas e ações que visam assegurar direitos para as pessoas com deficiência no acesso ao trabalho. Porém, estas medidas só serão mais efetivas quando toda a sociedade se envolver, propiciando a este segmento uma equiparação de oportunidades e plena inclusão e permanência no mundo do trabalho”.

Levantamento com as cinco maiores empresas do RS em número de funcionários revela baixo número de processos trabalhistas referentes ao descumprimento da Lei de Cotas

A partir dos dados divulgados pela revista Exame, em 2017, selecionamos as cinco maiores empresas gaúchas em número de funcionários, PCDs. Juntas, elas somam 56.048 funcionários, que somados, se a lei de cotas para PcD fosse seguida, resultaria em um montante de 2.802 trabalhadores com algum tipo de deficiência. Para identificar como as grandes empresas se organizam para este cumprimento, a reportagem apurou o número de processos trabalhistas que constam no portal da Secretaria de Inspeção do Trabalho, por descumprimento da Lei de Cotas para Pessoas co Deficiência nos últimos dez anos. O cruzamento mostra que foram 23 processos desta natureza na última década.

A rede de vestuário Lojas Renner, com 24.162 funcionários, era a maior empresa do Rio Grande do Sul em número de colaboradores em 2017. No balanço anual de 2019, a empresa afirma ter 1.015 empregados com deficiência ou com necessidades especiais, número abaixo dos 5% do total do quadro de funcionários previstos em lei para empresas com mais de mil empregados. Se a cota fosse integralmente cumprida, seriam 1.208 trabalhadores com deficiência. Vale ressaltar que, das cinco maiores empresas gaúchas pesquisadas, a Renner é a única que divulga o balanço completo destas informações de forma online e aberta para consulta.

Dispensa imotivada foi a infração mais registrada

A infração mais registrada foi a do § 1º da Lei nº 8.213/91, que prevê que a dispensa imotivada da pessoa com deficiência em contrato por prazo indeterminado somente poderá ocorrer após a contratação de outro trabalhador com deficiência ou beneficiário reabilitado da Previdência Social. Já o Art. 93 da Lei nº 8.213/91, que diz respeito à obrigação legal das empresas com mais de 100 empregados a preencherem o quadro de funcionários com a respectiva porcentagem destina para as cotas PcD, foi pouco acionada para estas empresas nos últimos dez anos, apenas oito vezes. Procuradas pela reportagem, as empresas afirmaram que não comentam questões relacionadas a processos trabalhistas de qualquer natureza.

Essas empresas deveriam empregar 2.802 trabalhadores com algum tipo de deficiência. (Gráfico: Lucas Ott)

Não é apenas a população com deficiência que acaba sofrendo com as restrições no acesso a um direito fundamental que é o trabalho, mas a própria cadeia produtiva também, que deixa de aproveitar todas as potencialidades que esta população pode oferecer, perdendo a oportunidade de diversificar a visão de mundo dentro das próprias organizações em nome de uma resistência à adequações estruturais e comportamentais que mais cedo ou mais tarde terão que acontecer. O direito ao trabalho é uma condição básica do desenvolvimento humano, e é por isso que a imprensa e a sociedade devem ficar atentas às discrepâncias de oportunidades como essa que afetam a vida de milhares de gaúchos e se replica em todos os cantos do país.

--

--

Beta Redação
Redação Beta

A Beta Redação integra diferentes atividades acadêmicas do curso de Jornalismo da Unisinos em laboratórios práticos, divididos em cinco editorias.