Arquitetura segrega e aumenta vulnerabilidades

Pessoas em situação de rua de Porto Alegre recebem apoio de entidades, mas ainda há muito trabalho pela frente

Lisandra Steffen
Redação Beta
4 min readJun 14, 2022

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Arquitetura higienista, ou hostil, impede que os indivíduos ocupem espaços públicos (Foto: Daniel Lobo/Flickr)

“Repúdio, aversão ou desprezo pelos pobres ou desfavorecidos; hostilidade para com pessoas em situação de pobreza ou miséria.” Essa é a definição de aporofobia, segundo a Academia Brasileira de Letras. O termo, cunhado pela filósofa Adela Cortina, ficou popular após o padre Júlio Lancellotti utilizá-lo para denunciar o descaso com a população em situação de rua.

Fobia é o medo irracional sobre situações que não necessariamente vão trazer riscos ou danos para a pessoa. Ao falar em aporofobia, entende-se que essa aversão aos pobres é irracional, pois não existem motivos concretos que demonstrem algum tipo de dano vindo dessa população.

Há, na verdade, situações no sentido oposto. Ações produzidas pela sociedade, voluntária ou involuntariamente, que prejudicam a população em situação de rua, por exemplo. Um desses casos é a arquitetura hostil ou higienista.

A doutora em Planejamento Urbano e Regional Izabele Colusso explica que a arquitetura hostil é a ideia de como o desenho urbano influencia no convívio de usuários em espaços públicos.

“Por trás desse conceito está a ideia de desencorajar o uso do ambiente público para fins que não foram os previamente concebidos”, comenta Izabele.

Izabele ressalta que espaços públicos devem ser democráticos e ocupados pela população (Foto: Izabele Colusso/Arquivo pessoal)

Em Porto Alegre existem cerca de 2.500 pessoas em situação de rua e de vulnerabilidade social, de acordo com um levantamento cadastral realizado pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS).

Alguns projetos de acolhimento são mantidos pela secretaria. Exemplo é o Ação Rua-Adultos, iniciativa que visa reduzir em até 80% o número de pessoas em situação de vulnerabilidade nas ruas da Capital pelos próximos quatro anos.

“Pelo programa deverão ser articulados ativos públicos estatais e comunitários, visando alterar as circunstâncias de pessoas adultas em domicílio nas ruas, como reinserção na família, de renda e na comunidade”, diz o secretário de Desenvolvimento Social de Porto Alegre, Léo Voigt. Para ele, nenhum gestor público é responsável por criar políticas que incentivem o ingresso de pessoas à vulnerabilidade das ruas.

“Não cabe a criação de espaços públicos para que pessoas se aquerenciem nas ruas. Nossa tarefa é transitar das ruas para o acesso aos direitos sociais básicos, com acolhimento, restauração de vínculos e inclusão social”, relata o secretário.

Entretanto, ainda que não seja desejo do poder público criar espaços que acostumem as pessoas a ficarem nas ruas, existem diversas medidas que segregam e impedem pessoas em vulnerabilidade de se protegerem — como é o caso da arquitetura higienista. Para a professora Izabele, uma maneira de combater esse problema social é ocupar os espaços com projetos urbanos que garantam acessibilidade e que sejam democráticos e não segregadores.

A arquiteta lembra do projeto da orla de Porto Alegre como um bom exemplo de uma arquitetura pensada para todos, uma vez que devolve o espaço às pessoas. “O projeto sinaliza a urgência que as pessoas têm de bons projetos urbanos, e que todos desejam ocupar as ruas, desde que se tenham projetos adequados e com boa estrutura”, finaliza.

Humanizar os espaços e devolvê-los ao público é um bom caminho para ocupar a cidade e auxiliar pessoas em situação de vulnerabilidade.

“Quando a presença humana passa a gerar conflitos sociais graves nas cidades, o problema muitas vezes não está relacionado ao espaço construído, mas às políticas sociais, que são muito mais profundas e complexas”, explica Izabele.

Sem políticas sociais que auxiliem, a população em situação de rua fica ainda mais vulnerável e acaba dependendo de projetos não governamentais.

Furando bolhas e misturando mundos

A Misturaí é uma Organização da Sociedade Civil (OSC) que auxilia, há quatro anos, pessoas em situação de vulnerabilidade social por meio do empreendedorismo, qualificação e mistura de classes sociais que pouco dialogam.

Desde 2020, por conta da pandemia, a Misturaí ganhou um novo projeto, o Amparaí, que tem o objetivo de fornecer quentinhas à população em situação de rua, além de distribuir agasalhos e cobertores. O propósito da OSC é furar bolhas e misturar mundos.

Cátia Chagas, responsável pela comunicação do projeto, explica que promover uma cidade inclusiva é buscar por qualidade de vida, igualdade, oportunidade de educação e emprego. “É preciso que as pessoas em vulnerabilidade não sejam mais invisíveis para o Estado”, completa.

A Misturaí e o Amparaí já distribuíram mais de 190 mil quentinhas com o auxílio de 127 funcionários e 25 prestadores de serviços. A população em situação de rua é grata pelo trabalho realizado pelo projeto, pois a Misturaí consegue amenizar a fome e o frio.

“Em parceria com o Cartório Civil da 4ª Zona (POA), conseguimos emitir mais de 300 certidões de nascimento para muitas pessoas que oficialmente não existiam”, explica Cátia sobre as ações prestadas pela organização.

Para a Misturaí, uma outra forma de auxiliar as pessoas em situação de vulnerabilidade é levar informação e formação para as comunidades.

“É preciso fortalecer as comunidades e prepará-las para reivindicar os serviços que são obrigação das políticas públicas”, comenta Cátia.

Para continuar auxiliando e levando formação para a população em vulnerabilidade social, a Amparaí precisa de doações. Desde o fim de 2021 houve uma queda brusca na captação de recursos e insumos. A organização trabalha, principalmente, com editais, parcerias e a plataforma Apoia.se. Para doar, é possível encontrar mais informações no site.

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Lisandra Steffen
Redação Beta

Às vezes, tiro fotos de passarinhos e escrevo (sobre outras coisas). Gosto muito de usar vírgulas (e parênteses).