Arte para incluir e desenvolver
Projetos sociais estimulam habilidades de crianças e jovens com transtorno do espectro autista (TEA)
Por Luana Ely Quintana e Clarice Almeida
O sexto mês do ano é marcado por diversas datas importantes para o calendário da saúde, entre elas, o Dia do Orgulho Autista, celebrado em 18 de junho. A data foi criada com o objetivo de dar visibilidade às características únicas das pessoas diagnosticadas com algum grau do transtorno do espectro autista (TEA). Ou seja, trata-se de uma celebração da neurodiversidade e do reconhecimento de potencial em todas as pessoas.
Por isso a Beta Redação conversou com pessoas envolvidas em dois projetos artísticos voltados à crianças, jovens e adultos autistas que usam a arte para se encontrar e se expressar.
Musicoterapia: uma aliada para o desenvolvimento da expressão
O autismo, ou transtorno do espectro autista (TEA), é uma adversidade de desenvolvimento responsável pelo déficit em pelo menos uma das seguintes áreas: interação social, comunicação e comportamento. No Brasil, estima-se que há 2 milhões de pessoas com autismo, mas somente nos últimos anos esse público passou a ter seus direitos reconhecidos, já que apenas em 1993 a síndrome foi adicionada à Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Segundo dados publicados em 2021 pelo Center of Diseases Control and Prevention (CDC), dos Estados Unidos, o transtorno atinge de 1% a 2% da população mundial. Entre as crianças a proporção é de que uma a cada 44 seja diagnosticada autista.
Mas para a coordenadora do projeto Uma Sinfonia Diferente RS, Graziela Pires, “as intervenções terapêuticas são o que garantem uma melhora no desenvolvimento integral da pessoa com TEA e, consequentemente, uma melhor qualidade de vida para pessoa e toda a sua família”, explica a musicoterapeuta e pós-graduanda em Transtorno do Espectro Autista. O projeto nacional foca no desenvolvimento de habilidades de comunicação, linguagem e socialização, usando a música como ferramenta terapêutica.
Desde 2019, com o objetivo de promover um espaço terapêutico e artístico, que apoie o desenvolvimento das potencialidades das pessoas com autismo, a edição gaúcha do Sinfonia realiza atendimento exclusivo aos pais e responsáveis das 59 crianças e jovens que participam, através de rodas de conversa e troca de experiências, conduzidas por psicólogas e especialistas.
A musicoterapia direcionada ao autismo mostra grandes benefícios na melhoria da capacidade de resposta interpessoal. Os resultados foram observados mediante o desenvolvimento das áreas relacionadas à linguagem e comunicação, aumento da atenção compartilhada e estimulação das respostas de neurônios espelho. A musicoterapia proporciona prazer, promoção intelectual e emocional, interação com outras pessoas, treinamento de habilidades linguísticas e motoras, além de ser livre de efeitos colaterais.
“A música consegue acessar lugares que a palavra não acessa. Para muitos pacientes não verbais, a música se torna a única forma de estar com o outro no mundo. De se comunicar, se expressar e de existir. Com a musicoterapia consigo ampliar as potencialidades que cada um tem, consigo estimular habilidades que eles precisam desenvolver e principalmente criar um espaço de desenvolvimento onde o lúdico, o afeto e a alegria estão presentes”, explica Graziela Pires.
De acordo com a especialista, cada aluno ou aluna reage de um jeito. As sessões são estruturadas pensando nas características do TEA, isto é, existe uma rotina que, com o tempo, os praticantes vão entendendo e se sentindo seguros para se soltarem e desenvolverem. “Isso faz com que eles possam aproveitar cada sessão e estejam abertos a novidades e surpresas que vamos inserindo no processo terapêutico, como novas sonoridades, novas canções, novos sons”, complementa a profissional.
As sessões ocorrem semanalmente, coordenadas por uma musicoterapeuta e uma equipe multidisciplinar formada por diferentes profissionais da saúde. Em média, duram 45 minutos e acontecem por nove meses, com pequenos grupos que também são acompanhados por uma equipe de voluntários.
“Os alunos e alunas respondem muito bem ao trabalho, pois cada um interage com a música de uma forma: cantando, tocando, dançando, expressando seu corpo livremente”, diz a coordenadora do projeto. Ela ressalta que não é uma aula de música, então não existe um compromisso com um resultado musical estético. “O foco está no desenvolvimento de cada um e na sua capacidade de se expressar com e na música.”
De acordo com Graziela, cada movimento musical é pensado para atingir os objetivos do projeto: o desenvolvimento de habilidades para comunicação, linguagem e interação social. “Ao final do processo terapêutico, vamos unindo os grupos e montamos uma apresentação pública intitulada Musical”, explica.
O preconceito precisa ser enfrentado com informação e com ocupação de espaços. Por isso é importante o estímulo das famílias para que saiam de casa, vão aos lugares e informem as pessoas sobre o autismo. Visando a inclusão, o Sinfonia está promovendo um musical para levar informação a comunidade.
“É preciso conhecer para derrubar estigmas e preconceitos. E a melhor forma de fazer isso é mostrando que eles são capazes de fazer um belo espetáculo, de se expressar, de serem artistas e protagonistas de suas histórias”, comenta Graziela.
O Musical do Uma Sinfonia Diferente RS será realizado do dia 16 de outubro no Teatro Feevale, em Novo Hamburgo. “Será um lindo espetáculo com uma banda ao vivo, com intervenções cênicas e muita emoção”, finaliza a musicoterapeuta.
Universo Atípico: inclusão através da arte
A arte também inclui pessoas diagnosticadas com TEA em outras regiões do Estado. Em Montenegro, na região metropolitana de Porto Alegre, a música desde cedo fez parte da vida de Bianca Leitão, a mamãe do pequeno Théo, de quatro anos. Na adolescência, Bibi, como é conhecida na cidade, levava a beleza da sua dança para festivais de grupos e eventos públicos. Apaixonada pela arte, ela fundou o Studio Bálance, no qual recebe dezenas de alunos que, assim como ela, compartilham esse sentimento.
Antes de se tornar mãe, Bianca já dizia que o Bálance era para todos, ou seja, qualquer pessoa que tivesse interesse em participar das aulas ministradas no local seria bem-vinda. Contudo, quando Théo foi diagnosticado com TEA, com apenas um ano e nove meses, Bibi passou a refletir mais sobre o que seria “acolher a todos”.
Bianca dedicou-se a buscar mais conhecimento sobre o autismo e a colocar em prática ações de estímulo ao desenvolvimento de seu filho. “Muita coisa que faço para estimular o Théo em casa está diretamente ligada a área que eu atuo. Sempre usei muito a dança com ele”, conta a mãe. “Após ver o quanto isso estava trazendo benefícios e o quanto ele estava evoluindo, vi que a gente tinha como ajudar outras pessoas, através do nosso trabalho no Bálance”, relata. “Existem muitas formas de se comunicar. Nos expressamos muito mais corporalmente que através da fala. Nossa comunicação pode ser através de um toque, de um movimento… tudo com muito respeito e amor”, explica a profissional.
Foi a partir do pensamento de compartilhar os bons resultados que percebia no dia-a-dia de Théo que Bianca passou a pensar em desenvolver um projeto de inclusão através da arte com uso da dança. Bianca apresentou a ideia para os professores do Studio que deram a maior força. Juntos eles buscaram ajuda de outros profissionais de diversas áreas até possuirem qualificação para finalizar a formatação do projeto que foi denominado Universo Atípico. “A partir do diagnóstico do Théo comecei a enxergar a vida de uma maneira diferente e a ver que a arte poderia transformar a vida de muitas pessoas”, comenta Bianca. “Minha experiência como mãe facilita muito ter esse acesso às outras mães. Minha fala, não é apenas como profissional, é da mãe de uma criança atípica”, explica.
A estruturação do projeto, através de um grupo de estudos formado para isso, levou em torno de cinco meses para ocorrer. Outro desafio foi encontrar parceiros interessados em colaborar para que as aulas pudessem ser oferecidas sem custos para as famílias dos alunos com TEA. “A gente sabe que as famílias têm muitos gastos. O nosso projeto é totalmente gratuito. Conseguimos apoio de empresas, pessoas jurídicas ou físicas, estamos sempre procurando quem possa abraçar esse universo com a gente e fazer a diferença na vida dessas pessoas”, justifica Bianca.
Em maio de 2021, a iniciativa foi colocada em prática e pouco mais de um ano depois já conta com 30 alunos — e uma fila de espera — , entre crianças, jovens e adolescentes, cada um com suas características e necessidades singulares. “Mesmo eles tendo o mesmo diagnóstico, são completamente diferentes. As abordagens nas aulas são diferentes para cada aluno dentro da mesma turma. Por isso que precisamos de vários monitores, porque são trabalhos, muitas vezes, individuais que a gente vai fazendo para termos essa conexão dentro de sala de aula”, conta Bibi sobre o método praticado. “Se a gente pensar que a maioria dessas pessoas não se comunica de forma verbal, mas sim corporal, temos que estar atentos e observar muito cada aluno para poder estabelecer essa comunicação”, completa.
Bianca afirma que as mudanças no comportamento dos alunos e alunas são visíveis e aumentam a cada dia. “É muito desafiador e ao mesmo tempo já percebemos tantas evoluções que me emociona muito falar sobre isso. Esses alunos e o meu pequeno nos dão a oportunidade de viver uma experiência única”, diz Bibi sobre a vivência nas salas de aula do Bálance.
“O projeto, para nós, vai muito além da prática da dança. Uma frase que usamos muito é sobre ver o mundo com um olhar diferente. É isso que esse projeto nos proporciona, ter mais empatia, mais respeito e buscar sempre melhorar, não só como profissional, mas, como pessoa”, conclui Bianca.
A importância da inclusão
Elias Machado Bernardes, de 11 anos, foi diagnosticado com autismo de grau severo com apenas um ano e meio de idade. “Quando o Elias ainda era bebê, a gente começou a perceber que algumas coisas estavam estranhas no desenvolvimento dele. Por exemplo, ele não fazia contato visual conosco, quando a gente chamava pelo nome ele não nos olhava e também não falava”, conta a mãe do menino, Michele Regina Machado.
Depois de procurar vários médicos, foi confirmado o diagnóstico de autismo severo. A falta de entendimento da família sobre o TEA gerou uma situação bastante complicada de ser administrada, relata Michele. “Comecei a pesquisar e ver vídeos sobre o autismo. Depois de ler muito, a gente foi se adaptando a essa nova rotina. Mas desde o primeiro momento a gente aceitou essa condição do Elias e eu e o meu esposo, juntos, fomos buscar recurso pra ajudar no desenvolvimento dele”, conta a mãe.
Para Michele, a inclusão das pessoas com TEA na sociedade vem ocorrendo de forma bastante lenta, mas já é possível ver avanços importantes. Para ela, ainda faltam atividades e recursos direcionados para as crianças com TEA. “Eu percebo que a gente precisa ter mais atividades para as crianças e que falta muito pra estarmos 100% plenos na conscientização. Mas hoje a gente já tem algumas coisas importantes aqui na cidade, como o projeto Universo Atípico, do Studio Bálance”, aponta Michele.
A mãe de Elias também fala sobre a importância das políticas públicas de inclusão. Em Montenegro, por exemplo, a secretaria Municipal de Educação e Cultura (Smec) conta com um Núcleo Cultural de Educação Especializada. O setor possui psicopedagogas e psicólogas que trabalham diversas atividades e oficinas educacionais para as crianças com TEA.
Elias utiliza as salas de recursos especializados desde que começou a frequentar a escola. “Esse é um momento que ele tem para fazer uma atividade diferente, mais dirigida e adaptada pra ele”, conta Michele. O Núcleo também dá suporte para as famílias e para os demais educadores da sala de aula regular.
Outra iniciativa destacada por Michele, realizada em Montenegro, é a atuação da Associação Ser Autista, que congrega famílias e pessoas com TEA. “Hoje existe esse grupo que trabalha conscientizando a sociedade e trazendo apoio para as famílias. Isso é importante, porque a sociedade precisa entender que existem essas crianças e que elas pensam diferente e que olham o mundo de forma diferente”, explica a mãe.
Quer saber mais sobre os projetos?
O Stúdio Bálance fica localizado na Rua Próspero Mottin, 33, em Montenegro. Para mais informações contate-os pelo número (51) 9 9179.7988.
Já o Sinfonia Diferente RS pode ser contatado pelo telefone da coordenadora no (51) 9 9137.8522 ou pelo email do projeto: sinfoniadiferenters@gmail.com