As vivências que Ella trouxe para a música

Em entrevista, a artista gaúcha destaca sua trajetória e fala sobre como aborda violência doméstica em seus trabalhos autorais

Letícia Costa
Redação Beta
11 min readMay 29, 2021

--

Primeiro clipe de Ella foi sobre “Metade da Laranja é Só o Bagaço” (Foto: Ella/Arquivo Pessoal)

O talento que surgiu ainda na infância fez com que Mariana Bavaresco, 24 anos, ou simplesmente Ella — significado que vai do sagrado feminino até a inspiração em Ella Fitzgerald, cantora de jazz— realizasse o sonho de ser tornar cantora. A artista que no início de sua carreira, aos 16 anos, precisava cantar na noite acompanhada dos pais, hoje compõe e tem clipe próprio exibido no canal BIS. As cicatrizes e a vivência de uma mulher vítima de violência são tratadas nos singles autorais da artista, com o objetivo de que mais mulheres que enfrentaram — ou ainda enfrentam uma realidade semelhante, possam ser compreendidas através da arte.

No bate-papo, realizado a partir de uma vídeo-chamada, a artista detalhou as questões retratadas em seus trabalhos, adiantando ainda o lançamento de um álbum em novembro, composto por faixas que serão apresentadas ao público ao longo do ano, a começar pela primeira, no dia dos namorados, 12 de junho. Além disso, Ella também contou curiosidades sobre sua trajetória e adiantou quais serão os próximos passos para um futuro pós-pandemia.

Desde quando a música está na sua vida?

Eu comecei a cantar com quatro anos de idade e desde então eu digo que quero ser cantora. No começo, meus pais ficavam tipo: “ai que bonitinha, aham cantora”, que nem princesa, astronauta, sabe? Ao mesmo tempo, eles sempre incentivaram muito a arte na minha vida. Aos quatro, eu comecei a me interessar, e aos seis, eu entrei no coral na escola em que eu estudava na zona sul de Porto Alegre. Aos 12 anos eu comecei a fazer teatro e fui aperfeiçoando minha aptidão para música. Foi quando eu performei em uma apresentação que a minha mãe percebeu que realmente eu era bem talentosa e tinha uma facilidade para isso, foi então que ela passou a investir em mim.

Fiz sessões com fonoaudióloga, aula de canto, passei pela igreja, onde fiz parte de um coral. Tudo sempre envolvendo a música. De certa forma, ela está muito interligada com o quão diversa a minha família é: tem judeu, evangélico, pai de santo, então eu sempre bebi muito de fontes diferentes de pessoas bem diferentes, e isso me ajudou a construir o que hoje é a Ella, mas também a Mariana. Depois das aulas de canto vieram as coisas mais profissionais: eu comecei a tocar na noite com 16 anos, meus pais tinham que ir junto porque não podia entrar nos bares desacompanhada por ser menor de idade. A partir daí também vieram as composições, e é o que eu tenho feito até hoje.

A artista de 24 anos canta desde os quatro anos de idade. (Foto: Ella/Arquivo Pessoal)

Você se formou em jornalismo, né? Hoje você exerce a profissão ou abdicou dela para viver da música?

Eu encontrei uma forma de equilibrar os dois (a música e o jornalismo). Eu trabalhava em redação de oito a 10 horas por dia e não tinha tempo de me dedicar para a música. Para se ter uma ideia, eu tocava à noite e quase emendava um dia inteiro, 24 horas sem dormir. Percebi que isso estava me prejudicando e tentei achar uma alternativa, mas no fim, o melhor foi mesmo a minha demissão que a empresa concedeu. Atualmente eu trabalho como freelancer contratada para a Vulcabras, então hoje eu trabalho com as marcas Olympikus e Under Armour durante quatro horas por dia. E posso fazer isso, literalmente, de qualquer lugar do mundo.

Recentemente li uma matéria em que falavam sobre você ter começado a tua trajetória no slam (batalha de poesias faladas). Queria que você falasse um pouco mais sobre isso, como começou e como foi esse período.

O slam apareceu na minha vida por vias não muito boas. Eu fui vítima de violência doméstica, estive muito tempo sob o domínio psicológico de uma pessoa. Descobri o slam bem na época que eu tinha me libertado desse relacionamento e foi o que me ajudou a passar por cima dessa situação e a perceber que outras mulheres já tinham passado por coisas parecidas, que a minha situação não era nem única, nem exclusiva. Ao mesmo tempo, eu pude perceber que não existe uma regra para a violência, acho que as pessoas acabam enxergando-a como uma coisa vinda de uma classe só, uma cor só, mas na verdade todas as mulheres em todos os contextos sociais ou cores e raças estão sujeitas e podem ser vítimas de violência doméstica. Foi um divisor de águas, tanto psicologicamente quanto emocionalmente. Além disso, eu descobri um novo jeito de escrever música e compor, e de olhar também para a arte, principalmente para a escrita. É uma manifestação totalmente genuína, em que as pessoas encontram um espaço para se expressar de verdade. Realmente teve uma importância gigantesca para minha carreira, com certeza todas as coisas que estão acontecendo agora não aconteceriam se eu não tivesse passado por ali.

Antes de entrarmos nas tuas composições, queria falar sobre uma outra ação: quem escuta rádio provavelmente já deve ter escutado a sua voz em uma inserção que fala sobre violência doméstica, recentemente, inclusive, você fez uma postagem no Instagram com a mesma música e os dizeres daquela inserção. Como isso se construiu? Tem alguma relação direta com a tua vivência?

Depois que eu descobri o slam, na época que terminei o meu namoro, eu publiquei uma poesia no meu Facebook e uma juíza de Vara de Família de Porto Alegre que é mãe da melhor amiga da minha irmã, viu e ficou muito mexida, tanto pela idade que eu tinha na época — 18, 19 anos — quanto pelo fato de eu já ter passado por uma situação de violência. Foi então que ela me chamou para um projeto que seria uma apresentação na Feira do Livro, em que nós falaríamos sobre violência doméstica com algumas convidadas. Esse projeto, no entanto, acabou se transformando em um sarau, em que a Juíza Márcia Kern, uma das organizadoras, a partir da sua especialização em Literatura Brasileira aborda a violência na literatura a partir de histórias de autoras brasileiras. Essa campanha do rádio surgiu com as juízas, e se chama Respeita as Gurias. Elas já conheciam essa música — que inclusive vou lançar no dia 12 de junho, chamada Desfecho — porque eu canto ela no sarau, e então pediram pra que fosse a música da campanha. É incrível! Eu sinto que a minha música realmente está sendo usada para uma coisa que é muito transformadora e a gente sabe do potencial de alcance do rádio, então é muito necessária.

Como é a sua rotina de composição, aliás, você tem uma? Você reserva um tempo no teu dia para trabalhar nisso?

Nossa, eu amaria ter um tempo pra me dedicar à escrita! (risos). Mas esse ano eu estou muito sem inspiração. Nos primeiros dois meses tivemos um grande amigo da família internado por conta da covid-19. Realmente não tinha nem cabeça pra pensar em escrever alguma coisa, mesmo que fosse algo triste. Normalmente, tenho gatilhos de inspiração: às vezes eu escuto uma música que me dá muita vontade de escrever, ou assisto um filme que também me desperta essa vontade. Eu não tenho um processo único, às vezes vem uma melodia muito forte na minha cabeça, às vezes eu chego a cantarolar e gravo no meu gravador às três da manhã. Às vezes vem um refrão de pronto, ou uma poesia — como a Metade da Laranja, que é uma poesia, e quando eu vi imaginei que poderia adaptar e transformá-la em uma música -, então realmente é muito individual cada música, até que é bom, mas seria interessante ter uma rotina.

Falando em Metade da Laranja é Só o Bagaço, você esperava que ela fosse ter um alcance tão grande? Como foi essa adaptação de poesia para a música?

Essa música foi 100% uma surpresa. Acho que das que eu ia lançar ela era a que eu menos achava que teria potencial de realmente bombar. Porque eu acho que ela tem muitas palavras por segundo, muitos pensamentos, eu não sabia se ia ressoar para as pessoas, se ia ter uma identificação. Aliás, isso é o mais louco sobre Spotify e outras plataformas: a gente nunca sabe o que pode acontecer. Às vezes, a música que tu menos coloca expectativa vai ter um super boom, e por exemplo, a música Inércia, que eu achava que teria um grande alcance, tá caminhando mais devagar. Acredito que, durante a pandemia, as pessoas estão repensando algumas coisas de valores, prioridades e tem se falado muito de amor próprio e formas de fazer isso e acho que a música trazia essa conversa.

Além disso, eu fiz uma super ação de lançamento, eu tive bastante tempo pra pensar na ação, uma questão visual bem estabelecida, acabou que várias coisas aconteceram: eu consegui, inclusive, uma pessoa que me ofereceu um ensaio à distância, teve outra, que fez a capa— inclusive foi a minha xará, Mariana Bavaresco – Tudo caminhou muito nessa música de um jeito inexplicável, prefiro acreditar em destino, era pra ser, sorte, essas coisas. (risos)

Qual trabalho você destacaria como o mais marcante até hoje na tua carreira?

Eu prefiro pensar que o meu melhor trabalho não saiu ainda, porque eu sempre vou ter um desafio pela frente. Eu acho que o que vai ser muito legal é o lançamento do meu álbum e trazer esse assunto tão importante que é a violência. Acho que rola muito um lance de romantizar, no sentido de “te liberte”, “vamos nos libertar”, mas ninguém fala do processo dolorido da mulher depois que ela sai do relacionamento e toda a recuperação, o processo de se apaixonar por alguém de novo e os medos que isso traz de passar pelas mesmas coisas, enfim.

Considero que tive muita sorte e, claro, a terapia — a minha terapeuta diz “não é sorte, é tu que fez isso” — pude viver outro amor depois de ter passado pela violência, pois não é a minha única referência de relação, então o meu álbum fala sobre isso, primeiro essa dor, esse medo de se relacionar, seguido também por essa leveza quando tu descobre que o amor não é essa coisa ruim, negativa, e até por isso que vai ser lançada a música no dia 12 de junho. Em um momento que se fala tanto sobre amor, eu quero que a gente reflita sobre o que definitivamente não é, e fazer com que as pessoas que estão vivendo um relacionamento violento possam refletir. Talvez essa música traga a possibilidade. O álbum vai ser lançado em novembro, que é o mês de combate à violência contra a mulher.

Como você avalia seu trabalho na pandemia? Você chegou a se apresentar em drive-in, né? Como foi essa experiência?

É muito louco (risos). As duas maiores oportunidades que recebi na minha vida em termos de show ao vivo foram durante uma pandemia que está trazendo resultados horríveis, quando o Brasil tá lascado. Esse convite do drive-in partiu da Moovin, que é uma das agências que marca os meus shows. Abri este em tributo à Adele, que é um dos maiores da América Latina e é incrível. Foi muito divertida a experiência de cantar para uma fila de carros e as pessoas estarem te ouvindo no rádio delas, totalmente inusitado, algo que eu realmente nunca pensei que fosse fazer. Além disso, fazia bastante tempo que eu não subia no palco. Já o Araújo Vianna, bom, dispenso comentários, né? É o Araújo Vianna! Nossa senhora! Posso dizer que cantei no Araújo Vianna, uma coisa que poucos artistas independentes hoje podem falar. Foi incrível, abri o show simplesmente do Serginho Moah, foram duas super oportunidades.

Apresentação da artista no Drive-in abriu o show do tributo da Adele. (Foto: Ella/Arquivo Pessoal)

Agora você tem um clipe exibido no canal BIS. Me conta, como que você está vivendo esse momento? Está preparada para a fama ainda maior? (risos)

Não estou preparada para nada! (Risos) Essa história foi uma loucura. Uma amiga minha conseguiu um contato — ela namora um menino de uma banda independente aqui do RS, é produtora cultural, mandou meu clipe e eles falaram “vamos tocar o clipe dela no canal BIS”, eu fiquei “como assim?” Isso foi em fevereiro, mas eu não tinha uma documentação específica que precisava pro vídeo tocar na TV. Então a plataforma que eu lanço minhas músicas e esse clipe foi atrás para resolver, e eu estou desde fevereiro segurando essa notícia, foi muito difícil! (risos) Mas agora eles conseguiram confirmar eu estou, simplesmente, no Instagram do Canal, tô me sentindo muito chique.

Além do lançamento do seu álbum em novembro e da sua música agora em junho, vai ter algum outro lançamento no restante deste ano?

Com o álbum “A Parte que Falta”, eu vou ter lançamentos até setembro. Vou falar justamente sobre essa parte que falta da história e começar pelo final — com o lançamento de Desfecho em junho — e terminar pelo Epílogo, realmente para contar sobre essas partes e criar um limbo sobre as histórias das mulheres. Algumas coisas já estão prontas. Vou ter também um lançamento em julho com “Não tô Pronta”, que é a música que foi semifinalista no Festival de Música de Porto Alegre de 2019, para agosto e setembro estamos analisando o que vamos lançar. Além disso, está para sair um novo clipe, que é da música Inércia.

E os seus planos pós-pandemia? Você já consegue imaginar como vai ser, se pretende viajar para se apresentar?

Ano que vem vai sair um ep em inglês, porque eu estou me mudando para a Austrália no segundo semestre do ano que vem. Vou sozinha, não conheço ninguém. A cidade que eu vou, se não me engano, é a que mais tem bares de música ao vivo no mundo, então eles incentivam muito a cultura, inclusive que cantores e musicistas vão para lá. A ideia é lançar o ep próximo da viagem para que eu tenha um trabalho para divulgar quando chegar na Austrália. Vamos ver o que vai acontecer.

Nós começamos a conversa falando sobre família, você citou que seus pais achavam aquela fase bonitinha, mas no fim, te ajudaram e investiram nesse sonho. Como é hoje? Eles já se acostumaram com a ideia de que você vai viver da música?

Ep em inglês será lançado no próximo ano. (Foto: Ella/Divulgação)

Os meus pais sempre me apoiaram, e quando viram que eu tinha potencial realmente investiram, e isso abriu várias portas pra mim, inclusive por ter um bom networking. Eles levam muito a sério a minha carreira. Minha mãe sempre fala que acha muito massa o fato de eu ir atrás das coisas, eu não fico esperando a oportunidade chegar. Claro que em uma posição de privilégio, no lugar social que ocupo e pela minha cor, pela escola que estudei, oportunidades que tive — eu tenho um diploma então se tudo der errado eu tenho outra saída. Mesmo sendo privilegiada, eles não bancam a minha carreira, eu trabalho desde os 16 anos. Enfim, é claro, sou sustentada por eles ainda, mas quando se trata da minha carreira e coisas pessoais eu que costumo bancar até porque hoje trabalho em um lugar que me possibilita administrar.

Confira os trabalhos da artista neste link.

--

--