Banalização da dor feminina atrapalha o diagnóstico de mulheres com endometriose

Doença afeta uma em cada 10 mulheres no Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde

Laura Rolim
Redação Beta
6 min readApr 5, 2023

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Exame de imagem que diagnosticou a endometriose de Daiana. (Fonte: Arquivo Pessoal/Daiana Schwengber)

A banalização da dor feminina é o principal obstáculo para o diagnóstico assertivo de endometriose. As cólicas menstruais são confundidas e normalizadas como um sintoma comum deste período, o que acaba dificultando o diagnóstico da doença — que pode levar de 7 a 10 anos, além de afetar 10% da população brasileira de mulheres, em idade reprodutiva, de 25 a 35 anos, segundo a Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Para a jornalista Alexandra Zanella, 41 anos, apesar do diagnóstico ter acontecido cedo, aos 14 anos, deixou traumas que ela trata até hoje. Ao consultar uma médica, que se dizia especialista em endometriose, recebeu o resultado da doença depois de levar os exames solicitados.

“Ela me deu o diagnóstico, então, de que provavelmente o que eu tinha era uma doença chamada endometriose. Eu nunca tinha ouvido falar. Ela falou que era uma doença grave, que matava, que eu não ia ter filhos, e que isso acontecia porque as meninas estavam transando muito cedo”. Alexandra conta que saiu chorando do consultório com medo de morrer. “Foi muito difícil para mim, muito, muito difícil”, desabafa.

De acordo com a jornalista, em 1990, quando foi diagnosticada, não se falava abertamente sobre a menstruação de uma menina. “A gente meio que escondia. Era tudo em segredinho. Então, você falar que estava com dor era uma coisa meio normal”, relembra. Porém, as dores foram intensificando, ao ponto de Alexandra desmaiar todas as vezes que estava menstruada. Não satisfeita com o tratamento recebido, ela procurou outro médico, que foi quem a diagnosticou, de fato, com endometriose, e que tratou Alexandra por muitos anos.

Alexandra foi diagnosticada com endometriose aos 14 anos. (Fonte: Arquivo Pessoal/Alexandra Zanella)

A médica especialista em endometriose Rafaela Donato, que atende no Hospital Fêmina, de Porto Alegre, explica que a endometriose é uma doença crônica que causa inflamação nos locais acometidos. Em alguns casos, ela tem capacidade de atingir órgãos como bexiga, intestino e ovários, e causar lesões, distorções da anatomia e cicatrizes. “Existem vários diagnósticos que precisam ser avaliados também nas pacientes com dores recorrentes, como fibromialgia, síndrome do intestino irritável, doenças inflamatórias intestinais, sequela de doença inflamatória pélvica, entre diversos outros. O importante é saber que dor tem tratamento, seja qual causa for”, garante a especialista.

Rafaela ressalta a importância de as pacientes estarem atentas aos sintomas. “Ter cólicas intensas durante o período menstrual, ou mesmo fora dele, que a afastem de suas atividades sociais, laborais e familiares, não é normal. Nem tudo é endometriose, mas essa doença precisa ser investigada”. De acordo com a médica, mesmo nos casos em que o diagnóstico de endometriose é descartado, a paciente precisa de tratamento para dor de qualquer maneira.

Os principais sintomas da doença incluem cólicas intensas, dor para ter relação sexual, sangramento nas fezes e distensão abdominal. “A partir desses sintomas e de um bom exame físico, solicitamos exames de imagem (ecografia especializada para endometriose ou ressonância magnética)”, explica Rafaela.

Endometriose causa infertilidade?

De acordo com a médica, endometriose e infertilidade são doenças frequentemente associadas, mas é importante salientar que isso não significa que pacientes com endometriose não possam ter filhos.

“Elas podem apresentar dificuldade para engravidar espontaneamente e terem necessidade de algum tratamento. Mas tratamentos existem. É por esse motivo que pacientes com endometriose devem realizar um planejamento reprodutivo, e isso começa com aconselhamento adequado por parte de um profissional qualificado”, assegura Rafaela.

Dos 14 aos 36 anos sentindo dores

Diferentemente de Alexandra, o diagnóstico da bióloga Daiana Schwengber, 38 anos, aconteceu somente há dois anos, depois de conviver com a dor por mais de duas décadas e passar por diversos médicos que afirmavam ser normal sentir cólicas no período menstrual. “Eu sentia muita dor na lombar e nas pernas. Tinha muita diarreia. Perdia sangue pelas fezes. Cólicas de ficar acamada, às vezes cinco dias, só levantando para ir ao banheiro. As vezes que eu ia ao banheiro, desmaiava no vaso, desmaiava no banho, de dor mesmo”, relata.

Por ser uma doença silenciosa e invisibilizada, o quadro costuma se agravar com a demora dos médicos em diagnosticar as pacientes. Durante muito tempo, Daiana mascarou a dor através da pílula de uso contínuo, porque os hormônios ajudavam a amenizar as cólicas intensas. Aos 30 anos, decidiu que não queria mais fazer o uso da pílula.

Com o acompanhamento de outra médica, optou pela colocação do Diu Mirena, um dispositivo que realiza a liberação do hormônio progesterona. No entanto, o método não foi suficiente e Daiana continuou sentindo dores insuportáveis, que resultaram em uma lesão e no agravamento da doença. Quando foi diagnosticada, já estava em nível quatro de endometriose severa.

Daiana, que atualmente fala sobre a endometriose nas redes sociais, teve seu diagnóstico negligenciado por 22 anos. (Fonte: Arquivo Pessoal/Daiana Schwengber)

Para a médica Márcia Mendonça Carneiro, representante da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), conscientizar a população sobre os principais sintomas e educar os ginecologistas e demais profissionais de saúde sobre a doença são pontos vitais para tornar os diagnósticos mais ágeis. “É importante treinar médicos na avaliação e tratamento da endometriose, assim como disponibilizar a realização de exames de imagem (ultrassonografia e ressonância) com profissionais adequadamente treinados”, analisa.

Em 2022, foi sancionada a Lei 14.324/2022, que declarou a data de 13 de março como o Dia Nacional de Luta contra a Endometriose e criou a Semana Nacional de Educação Preventiva e de Enfrentamento à Endometriose. Iniciativas como esta promovem o acesso a informações e incentiva mulheres a buscarem o diagnóstico.

De acordo com Márcia, cerca de 8 milhões de brasileiras são atingidas pela endometriose e sofrem com atrasos no diagnóstico e com tratamentos ineficazes e/ou inadequados. “O desenvolvimento de centros de excelência para o tratamento da endometriose é essencial para assegurar que estas mulheres recebam tratamento adequado, com otimização dos recursos disponíveis no sistema de saúde. Para tanto, é preciso investir no treinamento dos profissionais de saúde, assim como na implantação de centros especializados de tratamento da doença”, reitera.

“Cobram valores em cima de um sofrimento”

Um dos recursos utilizados em casos severos da doença é a cirurgia de retirada da lesão, método indicado para Daiana. Ela relata que, dos nove médicos consultados, oito disseram que fariam a cirurgia com a retirada do útero, ovários e parte do intestino.

Para a bióloga, a pré-cirurgia foi muito triste, desgastante e frustrante. Ela reclama da falta de sensibilidade dos médicos em relação à situação que enfrentava. “Era uma coisa meio linha de produção. A gente chega com uma dor e eles banalizam. Falta olhar a gente como uma pessoa única, olhar cada caso. A endometriose é uma doença muito negligenciada”, expõe Daiana, que ainda critica os valores cobrados pelo procedimento cirúrgico e que oscilam entre 20 mil e 30 mil reais.

Da mesma forma, Alexandra também sofre de endometriose severa e já passou por diversas cirurgias de videolaparoscopia para a retirada das aderências, por conta do refluxo de sangue. Nestes anos todos, muitos médicos foram consultados para melhorar o tratamento. Hoje, quem a acompanha é um especialista em região pélvica, que não tem um olhar intervencionista e entende o corpo como um todo.

“Estou livre de hormônios desde 2018. Nosso tratamento é uma mistura de cuidar do corpo e da cabeça. O que está sendo decisivo para eu conviver com a endometriose de uma maneira melhor é a mistura da terapia com o exercício físico. Os sintomas são infinitamente menores e consigo suportar sem precisar me medicar”, explica a jornalista.

Busque o diagnóstico

A médica Rafaela Donato enfatiza a importância do tratamento. “O mais importante de tudo é que tem tratamento. As pacientes não devem se rotular como pessoas que vivem com dor e que não conseguem ter filhos”, alerta.

Alexandra aconselha as mulheres que sentem muitas dores a procurarem ajuda e insistirem na investigação. “Não acreditem no discurso de que é normal e natural a gente sentir uma dor absurda no período menstrual. É, de novo, uma invisibilidade. Isso é uma negação dos nossos direitos. Force o médico a investigar. Temos direitos de ter dignidade enquanto seres humanos”, finaliza.

Para Daiana, é urgente falar mais sobre a doença e levar informação para outros espaços. “Não desista de dizer o que sente até encontrar um diagnóstico. Não podemos aceitar o que o primeiro médico diz. Precisamos falar mais sobre isso, levar para outros espaços, criar mais políticas públicas. Temos pouco espaço de fala. É uma doença muito negligenciada, por isso não temos acesso ao serviço que a gente deveria ter para uma qualidade de vida melhor”, manifesta.

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