Capoeira transforma a vida de jovens em comunidades carentes

Projetos no Vale dos Sinos impactam a trajetória de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade

Tainara Pietrobelli
Redação Beta
7 min readSep 13, 2021

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Por se tratar de um esporte que se origina de uma herança cultural e manter relação direta com a promoção da educação, a capoeira foi declarada patrimônio imaterial da humanidade pela Organização das Nações Unidas (UNESCO), em 2014.

A prática carrega consigo as lembranças de um tempo cruel, marcado pela escravidão, exploração e falta de liberdades. Nesse contexto, a capoeira funciona, atualmente, como uma forma de preservar a memória social do povo e dos países originários, como detalha a pesquisa produzida no contexto do Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade Católica de Brasília (UCB).

Segundo a professora de Educação Física e capoeirista Ana Carolina da Silva, o esporte remete a um estilo de vida, uma vez que fez parte de uma guerra. “A capoeira foi utilizada em situações de guerra inúmeras vezes e ganhou ainda mais força no período dos Lanceiros Negros. Esse contexto histórico, além de ser uma luta, uma arte que também é resistência, vem se reforçando ainda mais ao longo do tempo”, afirma.

Foi por meio da capoeira que, muitas vezes, escravos conseguiram se defender dos temidos capitães do mato. Eles eram proibidos de praticar qualquer tipo de luta, e, por isso, a musicalidade presente na capoeira disfarçava o real motivo da “dança”.

Desde 2016 a capoeira deixou de ser considerada arte, sendo reconhecida como esporte. No entanto, ainda antes desse marco histórico, ela já impactava a vida de milhares de crianças e adolescentes no Brasil, principalmente os que vivem em comunidades carentes.

Instituto Capoeira Social e o impacto nas comunidades

Em Sapucaia do Sul, o Instituto Capoeira Social é um exemplo de projeto que auxilia não só crianças e jovens, mas famílias inteiras em situação de vulnerabilidade. A ONG foi fundada em 2016, mesmo ano em que a capoeira passou a ser considerada esporte, pelo professor e CEO Elias Tom, praticante da atividade desde os 6 anos.

Em 2014, Elias decidiu largar o trabalho no Colégio Marista, de Porto Alegre, para ministrar aulas de capoeira na escola Alfredo Juliano, em Sapucaia do Sul, através do programa Mais Educação. No entanto, os recursos acabaram e foi necessário encontrar formas alternativas para amparar a comunidade em relação à oferta de práticas esportivas.

Devido à falta de incentivos públicos, Elias criou o Instituto Capoeira Social com o intuito de materializar aquilo que sonhava quando menino. "Hoje as crianças têm a oportunidade de comemorar seu aniversário no projeto. Eles têm eventos de capoeira e qualificação profissional. Tudo o que eu não tive, eles têm dentro do projeto”, explica.

Até o momento, o Capoeira Social já beneficiou nove municípios, atendendo mais de 1.5 mil pessoas. Atualmente, as cidades atendidas são Sapucaia do Sul, Taquara e Portão. O projeto é voltado para crianças a partir dos 7 anos, mas já existem iniciativas voltadas também para a primeira infância. “Nosso objetivo é atingir a criança que não está matriculada na escola. As que estão inseridas na escola são uma ponte para chegar naquelas que não estão. Entendemos que há alunos na linha da pobreza, mas os da linha de extrema pobreza são os mais vulneráveis. Nosso foco são os que não podem pagar por uma aula de capoeira”, destaca.

A capoeira impacta os resultados dos alunos no âmbito escolar, ampliando os índices de aprovação em até 80% e reduzindo a evasão. Atualmente, o projeto incentiva também um programa de desenvolvimento sociemocional, com trilhas técnicas de qualificação profissional, para jovens de 14 a 21 anos.

Oficinas feitas com os recursos da Lei Aldir Blanc no Instituto Capoeira Social. (Foto: Reprodução/Facebook)

Parceria com a Gerando Falcões reforça o projeto

Buscando alternativas para manter as atividades durante a pandemia e se qualificar na administração da ONG, Elias Tom descobriu a Gerando Falcões, uma faculdade para lideranças sociais de todo o Brasil nascida em regiões de periferia. “Eu participo de um projeto chamado Falcons University, onde adquiri mais conhecimento de gestão, metas, indicativos e tive aulas com grandes empresários da Ambev, Bradesco e Itaú. Hoje temos o projeto mais organizado com indicativos e números. É algo que faz diferença”, relata.

A partir da formação, Elias ampliou o time de voluntários do projeto, que atualmente conta com designer gráfico, pedagoga, psicóloga e alunos multiplicadores. Essas parcerias beneficiam cerca de 500 famílias carentes na região de Sapucaia do Sul, Portão e Taquara, através da entrega de Cestas Básicas Digitais — espécie de ticket — , que garantem a alimentação dos moradores em situação de vulnerabilidade.

Elias também é membro do Conselho Municipal da Criança e do Adolescente, o que traz mais visibilidade para as ações. Além de incluir crianças nas atividades, ele tem a intenção de aproximar as famílias. “Queremos conectar essas pessoas aos próximos projetos de empreendedorismo, empregabilidade, esporte e cultura. Cadastrá-las no CadÚnico, trazendo-as para os grandes centros. Nossa missão é, junto com a Gerando Falcões, botar a atual favela no museu! É isso que vamos fazer, ter uma favela mais digna, com cidadania e atividades desde a primeira infância”, ressalta.

O CEO Elias Tom em uma entrega de cestas básicas digitais. (Foto: Reprodução/Facebook)

Crianças da Feitoria também participam de projetos

Ana Carolina é professora de Educação Física e mais uma figura central para mudar a vida das crianças do bairro Feitoria, em São Leopoldo. Ela começou a praticar o esporte aos 4 anos, mas perdeu o contato com a capoeira ao se mudar para a Serra, onde a atividade não era comum.

A história do projeto começou de forma despretensiosa, enquanto Ana treinava capoeira na praça do bairro. “Eu levava meus primos pequenos e eles ficavam me imitando. Um dia, quando me dei conta, havia seis crianças tentando me imitar. Logo já eram 10, aí eu e minha tia sentamos e decidimos que era necessário marcar uma hora e uma data para ensinar aquelas crianças. Um pouco antes da pandemia eu estava com 26 alunos entre 3 anos e 16 anos”, explica.

Uma das primeiras fotos, quando crianças da comunidade iam à praça para imitar Ana Carolina. (Foto: Ana Carolina/Arquivo Pessoal)

A relação de Ana com a capoeira era tão forte que até o seu trabalho final de curso abordou os benefícios do esporte que, além de fazer bem para o corpo e a mente, é símbolo de luta e resistência. Mais do que apenas ensinar a jogar, o projeto “Café com Capoeira” buscava proporcionar alimentação para as crianças integrantes das atividades. Após as aulas, todos iam para a garagem da tia de Ana para o momento do lanche.

Entrega de presentes para as crianças do projeto no Natal de 2020. (Foto: Ana Carolina/Arquivo Pessoal)

A pandemia gerou impacto nos treinos de capoeira das crianças do bairro Feitoria, porque tudo era realizado na praça, a céu aberto, nas sextas-feiras à tarde. No inverno o frio atrapalhava os treinos, e até mesmo a grama crescida prejudicava o desempenho das crianças que, muitas vezes, não tinham nem um tênis apropriado para usar.

“Nós demos uma pausa, e, agora, queremos arrumar um lugar fechado. Ainda trabalho na comunidade Feitoria, mas as crianças continuam nas praças. Estamos avaliando como continuar. O ideal seria atender dentro das escolas, por isso tentamos conseguir o contraturno, porque elas já estão ali. Irei para a Serra levar essa proposta para as crianças, porque quando eu fui criança perdi o acesso à capoeira”, explica.

Roda de Capoeira desenvolvida pelos capoeiristas do Grupo Ararirê Oxossi, com a presença do mestre Pombo de Ouro. (Foto: Ana Carolina /Arquivo Pessoal)

Roda de capoeira é lugar de mulher, sim!

Nas rodas de capoeira a presença das mulheres é muito importante. Embora episódios de machismo possam acontecer, o respeito é o ponto principal. Além disso, quem pratica capoeira com seriedade sabe que se trata de uma questão de escolha de vida. “O capoeirista não é capoeirista só uma parte do dia, mas já acorda capoeirista. Como aprendiz do meu mestre Pombo de Ouro, como aluna, oficineira, professora, ou até no âmbito de estar ao lado das crianças e aprendendo com as crianças, tudo vai te induzindo mais a viver essa filosofia”, ressalta Ana Carolina.

Pelos valores envolvidos no esporte, a capoeira apresenta benefícios para as crianças, tanto no desenvolvimento físico quanto cognitivo. É por isso que projetos sociais como estes têm resultados tão bons e impactam fortemente a vida da comunidade, conforme destaca a professora Ana Carolina. “Quando estou com uma criança sempre faço aquela conversa de que o menino tem que respeitar a menina. Se um menino diz que é mais forte que elas, eu faço uma pausa para conversarmos e explico que a capoeira não exige força, mas sim técnica, e que isso todos podem desenvolver da mesma forma”, explica.

O trabalho de Ana Carolina é reflexo da rotina de grande parte das mulheres, que se desdobram entre os cuidados com a família, a vida profissional e a educação dos filhos, sem deixar de lado a satisfação pessoal e os sonhos. Mas a escolha de viver dessa forma causa questionamentos vindos de muitas pessoas, principalmente de outras mulheres.

“Eu escuto de muitas mulheres ‘como tu consegue treinar capoeira, cuidar da casa, do filho, do marido e ainda fazer a janta?’ Mas eu não preciso conseguir fazer tudo. A capoeira é meu âmbito profissional, hobby, é meu modo de ver a vida. O que tu és na roda, tu és na vida. Se tu tens movimentos sorrateiros, tu tens coisas para trabalhar na tua vida. Por isso mesmo que gosto de trabalhar com mulheres. Eu vejo mulheres rompendo barreiras no jogo”, completa.

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