Caso Carol Solberg expõe a complexa relação entre política e esporte

Especialistas defendem o direito à liberdade de expressão de atletas

ângelo gabriel santos
Redação Beta
6 min readOct 30, 2020

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Carol Solberg durante a final da primeira etapa do Circuito Brasileiro Open de Praia, no dia 20 de setembro de 2020. (Imagem: Wander Roberto/Inovafoto/CBV)

Saquarema, Rio de Janeiro. Final da primeira etapa do Circuito Brasileiro Open de Vôlei de Praia. Talita Antunes comemora a medalha de bronze em entrevista para o canal de televisão fechada, SporTV. Carol Solberg, sua dupla, retira o microfone da sua mão e fala: “só para não esquecer… Fora Bolsonaro!”. O posicionamento da atleta gerou amplo debate nas redes sociais, tornando-se o assunto mais comentado no Twitter horas após o ocorrido.

Pessoas contrárias ao governo federal parabenizaram a jogadora pela fala, mas os apoiadores do Presidente da República, Jair Bolsonaro, criticaram a atitude. Muitos pediam o cancelamento do patrocínio do Banco do Brasil para a dupla de atletas, embora elas não sejam individualmente patrocinadas pela entidade. O debate foi imediato.

Carol Solberg foi condenada com uma advertência com base no artigo 191 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), que penaliza os atletas que deixam de cumprir o regulamento da competição. Carol também foi julgada com base no artigo 258, que prevê penalidade aos atletas que “assumirem qualquer conduta contrária à disciplina ou à ética desportiva não tipificada pelas demais regras do código”. A penalização foi convertida em uma multa de 1 mil reias com base no primeiro artigo. Em relação ao segundo artigo ela foi absolvida. Carol decidiu recorrer da decisão. O caso nos leva a questionar: afinal de contas, esporte e política podem ou devem se misturar?

O jornalista e comentarista esportivo da Rádio Guaíba, Carlos Guimarães, encara os dois assuntos como temas que se misturam. “O esporte é feito através de políticas e tirar isso de uma manifestação pública é tentar colocar o esporte num patamar que ele não tem, de algo separado da sociedade”, explica. Guimarães também questiona a alienação do público ao assistir ao acompanhar diferentes modalidades. Segundo ele, esse comportamento “retira do esporte um pouco da sua razão de ser e da sua relevância”.

Produtor e repórter de GaúchaZH, Saimon Bianchini vê a situação da mesma forma, e acrescenta: “futebol é sim um meio facilitador na compreensão do público em geral, só que se tem, no Brasil, muito essa ideia de que o esportista não deve se manifestar.” Bianchini vê os atletas como livres, formadores de opinião e exemplo para as outras pessoas.

Carol Solberg e Talita Antunes comemoram a conquista da medalha de bronze no Circuito. (Imagem: Wander Roberto/Inovafoto/CBV)

O jornalista também destacou o projeto de lei apresentado no Congresso Nacional pelo ex-jogador de futebol e atual senador Romário (Podemos-RJ), que visa incluir um novo artigo na Lei Pelé. Este artigo pretende estabelecer que nenhum atleta poderá ser punido ou enquadrado caso se manifeste politicamente, exceto em casos de ofensa direta e expressa durante uma competição a um dos participantes, patrocinadores ou organizadores.

Saimon Bianchini também chama a atenção para o desinteresse dos atletas em relação a questões políticas. “São poucos os jogadores que têm este discernimento. E quando se manifestam, acabam sendo perseguidos, não só pelos outros jogadores, mas também por pessoas da imprensa. Ele é um ser humano. Ele tem que se preocupar com o todo, ele é um reflexo. Quantos garotos não se espelham nele para ascender?”, questiona.

Em entrevista ao programa Papo de Segunda, do canal de televisão fechada GNT, Carol Solberg explicou o motivo do posicionamento após a disputa. “Eu não usei aquela entrevista como palanque, ou fiquei fazendo propaganda de determinado candidato. Eu manifestei a minha indignação por esse governo que mata a população preta, pobre, que está destruindo o nosso meio ambiente, que faz apologia a torturadores.” A jogadora ainda afirmou que isso não foi política, mas sim, uma questão de direitos humanos.

Carol Solberg, Francisco Bosco e Fábio Porchat conversam sobre a liberdade de expressão dos atletas durante o programa Papo de Segunda, do canal de televisão fechada GNT. (Imagem: Reprodução/GNT)

O esporte, lembra Carlos Guimarães, sempre teve envolvimento com a política. O boicote aos Jogos Olímpicos de Verão, em 1980, por exemplo, foi um dos casos citados pelo jornalista. Na ocasião, os Estados Unidos lideraram um movimento de protesto contra a invasão da União Soviética ao Afeganistão. Outro exemplo foi o da Copa do Mundo de 1942, cancelada em função de uma situação de guerra. “A Segunda Guerra é desencadeada por um motivo político, então não existe isso. Não são coisas separadas”, explica.

Anderson David Gomes dos Santos, doutorando em comunicação pela Universidade de Brasília (UnB)e autor do livro “Os direitos de transmissão do campeonato brasileiro de futebol”, enxerga outro problema no posicionamento de atletas brasileiros. “Talvez seja um problema do esporte no Brasil esse medo de ter posicionamentos políticos claros, especialmente quando está no decorrer da carreira”, conta. O pesquisador explica que existe um certo receio dos atletas em defenderem posicionamentos políticos, mas que talvez no vôlei isto pese mais por conta do financiamento e da manutenção salarial. Muitos atletas, inclusive, esperam a carreira acabar para falar abertamente sobre esse assunto.

Isabel Salgado e Carol Solberg. Mãe e filha dividem o amor pelo vôlei. (Imagem: Carol Solberg/Arquivo Pessoal/Reprodução)

Isabel Salgado, ex-atleta da seleção brasileira de vôlei e mãe de Carol Solberg, manifestou apoio ao candidato Fernando Haddad (PT) nas eleições de 2018. Em um vídeo publicado nas redes sociais, ela afirma ter votado no candidato do Partido dos Trabalhadores num gesto de defesa da democracia e da liberdade e contrário à violência.

Outro exemplo é o do treinador da seleção de vôlei, Bernardinho, que flertou com a política em 2018, quando afirmou que iria disputar as eleições. No ano seguinte, entretanto, disse que poderia contribuir para a política de outras maneiras e que não tinha mais pretensão de disputar um cargo público.

A repercussão do “Fora, Bolsonaro” de Carol Solberg também pode ser analisada como uma questão sexista. “O principal motivo é a divergência do ponto político, mas também entendo que é mais fácil, hoje, do jeito que a sociedade está estruturada, criticar uma mulher por causa do machismo oculto que existe”, afirma Saimon.

Anderson Santos também enxerga no caso uma problemática de gênero. “Talvez a gente possa apontar que, por ser uma mulher tomando um posicionamento político, para essa sociedade ainda seja algo estranho. Houve uma presidente mulher em mais de 140 anos de história de Brasil em processo democrático e, ainda assim, essa mulher sofreu o impeachment com um discurso muito machista”, reflete. O pesquisador acrescenta que algo assim pesa muito: Carol é contra o governo federal e grita que ele deveria ser colocado para fora.

Em 2018, a manifestação a favor do atual presidente foi aceita

Ao tratarmos de posicionamentos políticos no esporte, não podemos esquecer também de movimentos favoráveis ao governo, como o caso dos jogadores de vôlei Wallace e Maurício Souza, que, em 2018, apareceram em uma foto no Instagram da Confederação Brasileira de Vôlei fazendo o número “17” com as mãos, remetendo ao número do candidato à presidência Jair Bolsonaro. Na época, a CBV apagou a publicação e emitiu uma nota dizendo “acreditar na liberdade de expressão”.

Carol Solberg e Talita Antunes durante a final da primeira etapa do Circuito. (Foto: Wander Roberto/Inovafoto/CBV)

Tal liberdade de expressão não foi aplicada à Carol, mencionada em uma nota de repúdio publicada pela mesma Comissão Brasileira de Voleibol. No texto, a CBV afirma que a primeira etapa do Circuito Brasileiro de Vôlei de Praia “não poderia ser manchada por um ato totalmente impensado praticado pela referia atleta”. A entidade conclui o texto afirmando que “tomará todas as medidas cabíveis para que fatos como esses, que denigrem a imagem do esporte, não voltem mais a ser praticados”.

Carlos Guimarães entende que, se Wallace e Maurício podem apoiar um político, Carol também pode ser contra ele. “Eu acho que a liberdade tem que ser de todos os lados. Liberdade para quem apoia e liberdade para quem critica. Liberdade só de um lado, é, no mínimo, desonesta”, reflete.

Anderson concorda e ainda explica: “A liberdade de expressão é uma cláusula constitucional, e por conta disso, está acima de qualquer outra forma de legislação que se venha a fazer, por mais que as associações, como a Confederação, tenha a autonomia também gerada pela Constituição. Mas é uma cláusula pétrea da Constituição, ela é superior a qualquer outro tipo de lei estadual, municipal ou de uma associação privada”, conclui.

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ângelo gabriel santos
Redação Beta

aspirante a escritor e jornalista; escrevo sobre o que eu sinto e depois me arrependo.