Manifestação de apoio ao árbitro Márcio Chagas, em 2014, antes do início da partida entre Grêmio e Passo Fundo. (Crédito: Confederação Brasileira de Futebol/Divulgação)

Casos de racismo no futebol brasileiro aumentam 43% em 2019

Conforme dados do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, houve um total de 63 denúncias, 19 a mais do que no ano anterior

William Martins
Redação Beta
Published in
9 min readJun 15, 2020

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Apesar das manifestações pelo mundo pedindo pelo fim do racismo, a discriminação racial não dá trégua no Brasil. Conforme o antropólogo Roberto DaMatta, o futebol é veículo para uma série de dramatizações da sociedade brasileira. A partir da modalidade, a população se apresenta e se revela. O ano de 2019, por exemplo, foi recorde de práticas racistas no meio futebolístico do país. Segundo dados do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, houve um aumento de 43% nos casos durante a temporada passada.

O Observatório da Discriminação Racial, que publica anualmente — desde 2014 — os números de racismo e injúria racial no futebol brasileiro, ainda não lançou oficialmente o balanço do ano passado. Entretanto, a Beta Redação apurou que, em 2019, houve 63 casos de racismo no futebol, 19 a mais do que em 2018. Além disso, foram registradas 43 denúncias a mais do que há cinco anos, data de início da contagem.

Confira os números no gráfico:

Crescimento dos casos de racismo no futebol brasileiro. (Arte: William Martins/Beta Redação)

Para o diretor executivo do Observatório, Marcelo Carvalho, há dois motivos para o constante aumento de casos de racismo. “Nós temos um discurso de ódio dito abertamente por governantes no Brasil e no exterior, o que deixa as pessoas racistas e preconceituosas cada vez mais a vontade para expressarem esses discursos”, aponta. Por outra ótica, Marcelo afirma que “há uma maior conscientização de jogadores, de torcedores e de jornalistas. Percebemos também um crescimento de grupos de torcedores que se organizam para combater o racismo, a LGBTfobia e o machismo”, afirma.

Confederação Brasileira de Futebol (CBF) atualizou o Código de Conduta no último ano. (Crédito: Ricardo Stuckert/CBF)

Código de Conduta da CBF

Em 2019, a FIFA divulgou um novo Código Disciplinar que oferece mais poder aos árbitros para atuarem em situações de racismo. Seguindo a mesma linha, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) também publicou uma versão atualizada do seu Código de Conduta, dando mais poderes ao juiz do jogo. Com isso, o profissional pode, inclusive, suspender a partida se achar necessário, diante de situações racistas.

Para Márcio Chagas, ex-árbitro gaúcho, que deixou os campos após sofrer injúria racial e racismo enquanto apitava, em 2014, a decisão tira a responsabilidade da entidade e coloca sobre os árbitros, que em sua maioria são brancos e não compreendem o que é o racismo. “Só tirou uma responsabilidade que a entidade maior do futebol teria de agir nas situações de racismo e transferiu para os árbitros. Como é que eu vou abordar uma questão de racismo se não tem representatividade negra no comando maior arbitragem?”, questiona.

Além disso, Marcelo Carvalho pontua a falta de diálogo da CBF com os árbitros após a publicação do novo Código. “A CBF não conversou com os árbitros. Como um árbitro identifica o que é racismo e qual a posição dele quando identificar um ato racista?”, pergunta. O diretor executivo do Observatório ainda diz que é preciso dar segurança para os profissionais. “Deem a eles a segurança de que, ao identificarem a situação racista, possam interromper a partida ou terminar a partida se os atos continuarem. Porque simplesmente no colo dos árbitros é delegar a responsabilidade para alguém e lavar as mãos”, opina.

Campanha da CBF pede pelo fim do racismo em campo. (Crédito: CBF/Divulgação)

Racismo institucional

Historicamente, o racismo vem ceifando vidas no Brasil. Ainda assim, muitas pessoas têm resistência em admitir que ele existe no país. Contudo, para Francisco Éboli, mestre em Comunicação e pesquisador sobre futebol, essa questão está enraizada à formação social brasileira. “A questão racial faz parte da formação da nossa sociedade. Por isso, não é de se estranhar que ela apareça com tanta força no futebol e no esporte. A sociedade brasileira é machista, racista e homofóbica, e o estádio de futebol é um território minado para esses públicos”, destaca.

O racismo institucional está presente em diversos clubes brasileiros. Muitos são os jogadores negros que compõem os times, ainda que as pessoas negras estejam pouco representadas entre dirigentes, conselheiros e presidência destas mesmas instituições. Para avançar nesta questão é necessário que os clubes reconheçam suas estruturas racistas e estejam dispostos a revê-las.

Para Éboli, o racismo delimitou os espaços em que os negros poderiam estar. Isso se reflete ainda hoje nos clubes de futebol. “O protagonismo negro vem sempre como uma atração. Os negros nunca aparecem como alguém que gerencia os negócios. Muitos clubes de massa, quando permitiram a entrada de negros, permitiam apenas que eles jogassem. Não se vê eles nas sedes sociais dos clubes e em posições de comando”, pontua.

O caso Márcio Chagas

Márcio Chagas, ex-árbitro de futebol. (Crédito: Arquivo pessoal/Divulgação)

Em 2014, na cidade de Bento Gonçalves, Márcio Chagas apitou o jogo entre Esportivo e Veranópolis. Neste dia, o árbitro sofreu ofensas racistas registradas na súmula da partida. Mas além de xingamentos, os torcedores também depredaram o carro de Chagas e o cobriram com cascas de banana. Na volta da partida, o juiz optou por denunciar o caso à imprensa. O posicionamento de Márcio, contudo, foi repreendido pela Federação Gaúcha de Futebol.

Com uma carreira em ascensão, Chagas decidiu por encerrá-la no final do Campeonato Gaúcho daquele ano. Segundo ele, desde 2014 nenhum outro árbitro negro entrou nos gramados gaúchos apitando a primeira divisão. Depois desempenhar também a função de comentarista de arbitragem do Grupo RBS, hoje Chagas decidiu apostar na vida política e é pré-candidato a vice-prefeito de Porto Alegre.

Confira a entrevista que a Beta Redação realizou com o ex-árbitro, que comenta como o racismo se intensificou em seu dia após deixar o apito e passar a ocupar as cabines de transmissão, como comunicador.

Em 2020 você completa seis anos longe do apito e dos campos como árbitro profissional. O futebol gaúcho, em relação ao racismo, evoluiu?

Não, ele continua cada vez mais evidenciado como um esporte elitista. E falo elitista nas posições de poder. Os negros que fazem parte do contexto do futebol são protagonistas somente nas quatro linhas. Quando eles saem das quatro linhas ficam invisibilizados, não ocupando posições de poder como treinadores, preparadores físicos, dirigentes do futebol, presidentes dos clubes ou presidentes das federações. Eles não ocupam cargos significativos dentro da modalidade. Então ele é muito caracterizado por essa questão racial. Eu tenho abordado seguidamente que, para mim, o futebol é uma representação contemporânea da escravatura. Onde se fala, inclusive, termos escravocratas como a “compra e venda de jogadores” ou sobre a divisão de um ser humano, na qual “50% do jogador é de um dono, 20% é de um outro dono, 30% é de um outro dono”. O futebol é uma representação contemporânea latente da escravatura.

Em 2019 houve um aumento, segundo o Observatório de Discriminação Racial no Futebol, de 43% nos casos de injúria racial nos gramados brasileiros. Foram 63 casos no total. De que forma enxerga esses números?

Para mim não surpreende. As pessoas até perguntam muitas vezes: “Tu acha que diminuiu? Aumentou?”. Eu acho que há um encorajamento dos próprios jogadores que passaram a denunciar casos de racismo. Mas isso não retrata o que realmente acontece. Muitos também se calam por medo de represálias. Se todos os jogadores que passam por essa situação de racismo tivessem coragem de denunciar, os registros aumentariam. Mas como é um ambiente extremamente opressor e racista, que joga com a questão de abafar a situação para que não seja veiculado, não seja denunciado, muitos casos ficam abafados e esquecidos. Isso porque há uma chantagem emocional no jogador que tenta se pronunciar. Há sempre um contexto dos comandantes, de quem dirige a modalidade, para que isso fique abafado. Então não retrata a realidade.

Ser o único negro a apitar jogos do Campeonato Gaúcho é reflexo e consequência de uma sociedade e de um estado racista, como o Rio Grande do Sul? De que forma podemos mudar isso?

Eu sempre fui tido como a regra da exceção. O que simboliza o determinado negro que atingiu aquele patamar estabelecido pelo branco de conquistar um espaço. Eu era o preenchimento da cota para dizer que não existia racismo. Eu era o exemplo: “Se esse aqui chegou, outros podem chegar”. O que aconteceu comigo em 2014, a represália que deveria acontecer comigo, em termos de abafar a minha carreira, acabou não acontecendo. Mas, aconteceu com um coletivo de negros que não tiveram mais a oportunidade de apitar. Desde 2014, nenhum árbitro negro entrou nos gramados gaúchos apitando a primeira divisão nos jogos televisionados. Vão dizer: “Mas e na segundona? Lá na categoria de base tem”. Realmente tem um ou dois. Mas são os que não aparecem. O quadro regional de árbitros da CBF, que é um grupo seleto, só tem um assistente negro que é o Elio Nepomuceno de Andrade Junior. Os outros que fazem parte do quadro são todos brancos. O que demonstra o racismo estrutural dentro da Federação Gaúcha de Futebol e da modalidade em si. Mesmo que não seja um árbitro que está no centro do campo, ele ainda é uma referência de tomada de decisão. E só tem um. Então ele é a regra da exceção, que se torna sempre a cota para dizer que “nós temos um, isso significa que os outros também têm a possibilidade de ocupar uma cadeira”. A arbitragem representa muito bem esse contexto racista que se tem dentro do futebol.

Tu acha que eles estão abertos a reconhecer e repensar isso?

Não. Ainda esse ano foi feita uma campanha institucional dentro da Federação Gaúcha de Futebol abordando a questão do preconceito e da discriminação. Não abordaram a questão do racismo. São termos completamente diferentes. Quando uma entidade não assume que tem uma estrutura extremamente racista, ela não está disposta a abordar o assunto. Eu vejo que eles não têm interesse em avançar nessa temática.

Em 2019, a CBF, com orientações da FIFA, implantou um Novo Código Disciplinar que dá mais poder aos árbitros atuarem em situações de injúria racial e racismo. Como esses profissionais devem se portar nestes casos?

Na realidade foi uma determinação que veio da FIFA. Sinceramente só tirou uma responsabilidade que a entidade maior do futebol teria de agir nas situações de racismo e transferiu para os árbitros. Como é que eu vou abordar uma questão de racismo se não tem representatividade negra no comando maior arbitragem? Porque um branco não sabe muitas vezes o que é racismo e o que é injúria. São duas definições completamente diferentes. Se não tem negros atuando e que tenham voz ativa para, inclusive, explicar como funciona e como difere uma ação da outra, não tem como dar sequência. Outro ponto é: qual árbitro vai estar resguardado se porventura acontecer um ato racista, uma injúria racial durante uma partida, tendo em vista que tem patrocinadores, tem bilheteria, tem interesses de televisão? Qual será o árbitro que irá paralisar e encerrar uma partida sabendo que tem todo um aparato por trás? Nenhum árbitro vai correr o risco de paralisar um jogo ou encerrar uma partida, porque a sua carreira vai ser encerrada no mesmo momento em que ele tomar uma atitude coerente e correta. As comissões de arbitragem não bancam uma decisão dessas. Por isso que no Brasil sempre se adotou esse discurso de democracia racial para tentar mascarar um convívio harmônico entre negros e brancos. Algo que nunca aconteceu. Vivemos um apartheid racial muito forte, onde há espaços de negros e espaços de brancos. E os espaços de brancos, normalmente, são os espaços de poder, e os espaços dos negros são os espaços de subalternidade e de obediência às ordens.

Do campo para a TV: o racismo cessou?

Muito pelo contrário. Aumentou pelas redes sociais. Todas as transmissões tinham algum comentário racista. Eu recebia mensagens racistas pelo Twitter e pelo Instagram, fora as outras plataformas e outras formas de comunicação, de redes sociais que eu não tenho, mas que acabavam chegando a mim de alguma maneira. Na verdade, o lugar do negro é preestabelecido pelo branco. E o fato de ter um negro na televisão causa mais revolta. Porque é um negro que está opinando sobre uma decisão durante uma partida. Isso, para o racista, é uma afronta. O racista não quer ver o negro comentando, ainda mais quando é um negro que denuncia, um negro que tem uma voz ativa, que não é de se calar.

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