Cerca de 70 % dos menores abrigados não podem ser adotados

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11 min readJun 29, 2019

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Demora nos processos judiciais pela perda do Poder Familiar é uma das razões para que 3.184 crianças e adolescentes do Rio Grande do Sul não possam entrar na fila da adoção

Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. / Estatuto da Criança e do Adolescente (Foto: Tainah Gil)

Por Vanessa Fontoura e Tainah Gil

Era uma tarde de inverno, em algum final de semana entre 2004 e 2005. Fazia frio e a cerração caía forte quando a educadora social da SOS Casa de Acolhida, Lilhane Schmidt, recebeu a visita do Conselho Tutelar. Acompanhados, eles traziam duas novas crianças para o acolhimento: Pedro*, de cinco anos, e Lucas*, de três. Os irmãos, que foram retirados da convivência com o pai alcoólatra, chegaram ao abrigo em péssimas condições de higiene. Segundo ela, “cheiravam a urina, barro e bebida alcoólica”.

Quando as crianças e os adolescentes são recepcionados na instituição, a primeira coisa a ser feita pelos educadores é alimentá-los. Naquele dia, Lilhane e sua colega decidiram inverter a ordem. Levaram os dois meninos para realizar a higiene. “O que a gente ia fazer primeiro, dar comida ou banho? Decidimos alimentar depois porque eles estavam com a roupa muito úmida”, lembra.

Devido àquele dia gelado, Pedro e Lucas estavam cobertos de roupas, mas sem uma peça essencial para se aquecerem do frio: as calças. Lilhane retirou uma roupa, outra e mais outra. “Eles estavam com uns três ou quatros calções, várias meias e blusões. O pai deve ter pensado: — Vou colocar muitas roupas que daí esquenta as demais partes”, relembra, com tristeza, a educadora.

Os dois estavam muito nervosos, um sentimento muito comum entre os novos acolhidos. Percebia-se que o irmão mais velho protegia e cuidava do mais novo, e, juntos, os dois foram para o banho. E é desse momento que Lilhane relembra com muita emoção.

Quando ela abriu o chuveiro, Pedro chamou o irmãozinho:

“Lucas, vem ligeiro! Olha a chuva, tá caindo do telhado!”

Pedro se referia ao chuveiro, um objeto que, para ele e o irmão, não era tão comum. Talvez, nunca tivesse sido usado por eles. “Não sei como eles tomavam banho em casa. Eles não tinham o conhecimento da higiene, da água que caía do chuveiro”, conta a funcionária.

O caso dos dois irmãos teve um final que pode ser entendido como feliz: Segundo Lilhane, ambos foram adotados (juntos) por uma pedagoga menos de um ano depois de entrarem no abrigo. Infelizmente, o caso está longe de representar o retrato da adoção no país.

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. / Estatuto da Criança e do Adolescente (Foto: Tainah Gil)

Nem todas as crianças que estão em acolhimento institucional ou familiar podem ser adotadas. Dados de março deste ano, divulgados pelo Ministério Público do RS (contatado pela reportagem), informam que, no Rio Grande do Sul, existem em torno de 4.784 crianças e adolescentes em abrigos. Destas, 3.184 têm vínculos jurídicos com a sua família de origem e, por isso, não estão disponíveis à adoção. Segundo o Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Rio Grande do Sul é o terceiro estado com maior número de acolhimentos, atrás de São Paulo (13.252) e Minas Gerais (5.090). No Estado, existem 457 instituições de acolhimento.

Em 2002, o Código Civil optou por modificar o termo antes utilizado como “Pátrio Poder” para “Poder Familiar”, visto que a designação, etimologicamente, é remetida à figura do pai. Ambos os termos são utilizados para conceituar os direitos e deveres que os pais possuem em relação aos filhos menores de 18 anos.

Quando uma criança ou um adolescente sofre algum tipo de violência, maus-tratos ou abandono, há medidas legais e intervenções do Estado para que o menor seja afastado do agressor, destituído do poder familiar e encaminhado ao processo de adoção.

Apesar de terem o direito à uma vida digna instituído no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), muitos menores de idade vivem em casas de acolhida à espera da oportunidade de encontrar um lar e uma nova família. A demora nos processos de destituição familiar — medida judicial que determina que a família perca o poder sobre a criança — resulta na permanência em abrigos por longos anos, o que dificulta a possibilidade de adoção.

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária./ Estatuto da Criança e do Adolescente(Foto: Tainah Gil)

De casa ao acolhimento é um longo percurso

De acordo com o Art. 7º do capítulo um do ECA, “a criança e o adolescente têm direito à proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”. Na prática, muitas denúncias de negligência, abandono e maus-tratos são recebidas pelo Conselho Tutelar, principal órgão de atendimento a esses casos.

Segundo a promotora de justiça da Infância e Juventude de Porto Alegre, Cinara Vianna Dutra Braga, o conselheiro tutelar recebe a denúncia e identifica uma situação de menor em risco (abuso físico, sexual, psicológico), em abandono ou orfandade. O órgão realiza um ofício descrevendo o ocorrido e apresenta ao Ministério Público para que seja feito um pedido de acolhimento institucional.

Para o presidente da Associação dos Conselheiros Tutelares do Rio Grande do Sul (ACONTURS), Jeferson Leon, o Conselho Tutelar não é um agente de investigação, mas de execução de um serviço. “Ele acaba sendo um receptor da denúncia e ativador da rede/casa de acolhimento. O Conselho vai encaminhar o serviço para aquela criança, dependendo da violação que aconteceu. Ele é um órgão que fiscaliza a omissão ou excesso dos órgãos públicos, ou dos pais e responsáveis”, explica.

Conforme o ECA, é atribuição do Conselho Tutelar “representar ao Ministério Público para efeito das ações de perda ou suspensão do poder familiar, após esgotadas as possibilidades de manutenção da criança ou do adolescente junto à família natural”. Mas, segundo Jeferson, nem sempre foi assim. Antes da mudança da Lei, em 2009, era competência legal do Conselho Tutelar colocar e retirar uma criança ou adolescente do abrigo. “Hoje, a competência legal mesmo é do judiciário. É o juiz que determina se fica ou não fica dentro do acolhimento. O conselheiro conduz até esse momento, mas quem mantém lá é o juiz”, afirma.

Art. 7º A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. / Estatuto da Criança e do Adolescente (Foto: Tainah Gil)

Primeira tentativa é reconstruir o relacionamento familiar

Após serem encaminhados para um acolhimento institucional, a equipe técnica da Casa Lar (que inclui psicólogos e assistentes sociais) realiza um trabalho com a família para sanar os problemas de violência contra a criança ou o adolescente e para que se reconstrua o vínculo familiar. De acordo com Jeferson, em até três meses, a instituição deve enviar um documento relatando a situação dos acolhidos. “Depois de seis meses, a criança já tem que ter um planejamento, explicando se a família está visitando-a, se ainda há vínculo familiar”, relata.

De acordo com o Centro de Apoio Operacional da Infância, Juventude, Educação, Família e Sucessões (CAO- MP/RS), com relação à listagem de crianças/adolescentes que retornaram à família por decisão judicial, o sistema aponta que, em abril, existiam 61 registros. “Tudo vai depender do empenho dos familiares para resolver a situação. Se essa suspensão se mantiver porque os pais não aderem aos serviços, a criança vai ser colocada para adoção. Vai depender da família aderir e receber alta para estar apto a receber seu filho novamente”, afirma Jeferson.

Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis. / Estatuto da Criança e do Adolescente (Foto: Tainah Gil)

Destituição do poder familiar é a última medida a ser tomada

Depois de esgotadas todas as tentativas de reconstrução do vínculo e a família demonstrar não estar apta a receber a criança novamente, o Ministério Público ajuíza a ação de destituição do Poder Familiar, que segundo o ECA deve tramitar em 120 dias.

Porém, Cinara explica que o processo pode demorar mais. “Não tenho como precisar um número exato, mas tinham casos de crianças que entraram bebês e saíram adolescentes. Com 10, 15 anos de acolhimento. Mas isso era uma situação anterior a atual estrutura. A lei fala que o prazo máximo é de um ano e meio, mas isso de regra, não é observado, vai depender do caso concreto”.

Para a promotora, colocar a criança nesta situação é muito triste e pode apresentar traumas ao menor, por isso eles são acompanhados por psicólogos e psiquiatras. Contudo, a destituição do poder familiar é o caminho necessário para que os menores possam ser inseridos em famílias substitutas e, mais tarde, possam ser adotados. “Então, a sequela não é da destituição, mas sim, do acolhimento institucional. Essa é uma medida protetiva que deve ser utilizada em último caso, quando realmente não tem mais condição da família ficar com a criança”, explica Cinara.

“Todas elas (as crianças), quando a gente vai nas casas de acolhimento, dizem o mesmo: que querem voltar para a sua família ou que querem ser adotadas (quando não têm família). Então sempre é um trauma, não a destituição, mas o acolhimento propriamente. A destituição é só mais um detalhe dentro daquela medida protetiva”, continua a promotora.

Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. / Estatuto da Criança e do Adolescente (Foto: Tainah Gil)

Acolhidos dificilmente mantêm contato com a família

Matheus*, de 17 anos, há três se encontra acolhido no Abrigo José Leandro de Souza, em Porto Alegre. Diagnosticado com transtorno do espectro autista, o adolescente está sob a guarda da casa de acolhimento até que complete a maioridade e possa ser guardado pela Justiça.

O adolescente tinha em torno de seis anos de idade quando foi abandonado na casa de uma senhora que cuidava de crianças. A mãe biológica é detenta na Penitenciária Madre Pelletier por envolvimento com o tráfico de drogas. Após ter ficado com o menino por 10 meses, a cuidadora pediu ajuda do Conselho Tutelar pois o mesmo precisava de cuidados médicos. Ao verificar a situação de Matheus, o órgão o encaminhou ao Hospital São Lucas, que constatou maus-tratos e negligência, inclusive alimentar.

Logo após, o menor foi encaminhado para uma escola especial. Matheus ficou até os 15 anos na Clínica Esperança de Amparo à Criança (CEACRI), quando foi transferido para o atual abrigo no bairro Menino Deus. Por não ter o atendimento médico que precisava enquanto criança, o quadro de autismo de Matheus se agravou. O acolhido não fala e demanda muitos cuidados como a supervisão de um adulto para fazer as atividades básicas.

Hoje, Matheus possui uma madrinha através do Programa de Apadrinhamento Amigos de Lucas. Ela o visita mensalmente, leva para passear em sua casa, em shoppings e em praças. Segundo o diretor do Abrigo, Lucas Capitão, a madrinha sinaliza que tem vontade de adotar o menino quando se aposentar. “Essa é a possibilidade mais provável de que, um dia, o Matheus consiga sair do abrigo”.

A casa conta atualmente com 53 acolhidos com idades de 17 a 42 anos, que possuem algum tipo de deficiência intelectual. Para Lucas, a dificuldade no processo de adoção está na dedicação exclusiva que o acolhido demanda por sua condição de saúde. “Pra cuidar de uma pessoa que necessita de cuidados 24 horas, sozinha tu não consegue. Tem que ter mais uma ou duas pessoas pra te auxiliar, porque é manhã, tarde e noite”.

O Abrigo José Leandro de Souza conta com uma equipe técnica de 90 funcionários formada por agentes educadores — que cuidam diretamente da rotina dos acolhidos — e profissionais que prestam atendimento conforme a necessidade, entres eles fisioterapeuta, psicóloga, assistente social, educador físico, enfermeira, neurologista, nutricionista e pedagogo.

Art. 19. É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral. / Estatuto da Criança e do Adolescente (Foto: Vanessa Fontoura)

As estatísticas no estado e na capital

No Rio Grande do Sul, 1.600 crianças e adolescentes estão em processo de adoção — 954 já estão vinculadas com alguma família e 646 ainda estão disponíveis — segundo dados do Cadastro Nacional de Adoção (CNA), datados do mês de junho. Enquanto isso, 5.460 pessoas que pretendem adotá-las aguardam a decisão da Justiça.

Em Porto Alegre, 215 estão disponíveis, mas não ainda não estão em processo de aproximação com nenhuma família. Dentre os acolhidos, 55% são do sexo masculino enquanto 45%, do sexo feminino. A faixa etária que conta com menos abrigados — talvez por ser o perfil mais desejado pelos adotantes, onde a preferência é por recém-nascidos — é de 0 a 5 anos (3%), e a que mais contabiliza é a de 16 a 18 (34%).

Art. 19 § 1º Toda criança ou adolescente que estiver inserido em programa de acolhimento familiar ou institucional terá sua situação reavaliada, no máximo, a cada 3 (três) meses, devendo a autoridade judiciária competente, com base em relatório elaborado por equipe interprofissional ou multidisciplinar, decidir de forma fundamentada pela possibilidade de reintegração familiar ou pela colocação em família substituta, em quaisquer das modalidades previstas no art. 28 desta Lei. / Estatuto da Criança e do Adolescente (Foto: Tainah Gil)

Adoções têm ocorrido de forma mais rápida

Apesar das dificuldades com o processo de adoção, houve um avanço recente no sistema. Segundo Cinara, há três anos atrás, uma criança não poderia entrar em processo de adoção sem a decisão do Tribunal, pois a Defensoria Pública sempre recorria. Somente após esta decisão sobre o recurso, a criança estava apta para adoção. “Hoje não é mais assim. Quando 99% das informações nos autos indicam que essa criança não vai permanecer na família, o juiz já defere a liminar e a criança é desacolhida. Com isso a gente conseguiu mais do que dobrar as adoções aqui em Porto Alegre”, expõe.

“Então, eu penso que nós estamos em um outro cenário. Felizmente essa área teve uma atenção importante por parte do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública e hoje não vejo mais como sendo necessárias críticas. O fluxo tem acontecido. Nós temos quatro juízes, mas vamos ter, a partir do dia 1º de junho, sete”, continua. Segundo a promotora, as instituições estão mais voltadas a resolver os problemas dos acolhimentos institucionais e das adoções, em especial as adoções tardias.

De acordo com dados do CNA, o panorama de adoções tem se mostrado favorável no Rio Grande do Sul e na capital. No ano de 2015, 143 crianças e adolescentes gaúchos foram adotados. Três anos depois, em 2018, o número chegou à quase o triplo, registrando 419 adoções no estado. De janeiro até junho de 2019, o cadastro aponta que 137 menores já deixaram o acolhimento e agora possuem uma nova família.

O ano de 2018 foi o que mais registrou adoções, tanto no estado quanto na capital gaúcha. (Arte: Tainah Gil e Vanessa Fontoura)

Em contraponto, o conselheiro tutelar Jeferson Leon explica que existem diversas políticas públicas, porém nenhuma de prevenção. “O Conselho Tutelar não tem atuação na situação preventiva descrita em Lei. Obviamente que o órgão faz isso com palestras, levando profissionais para trabalhar essa questão nas escolas, mas os programas vêm mais a nível do executivo”, explica. Segundo ele, o próprio Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) é um órgão que trabalha muito dentro das famílias e consegue fazer a identificação de algo que vá acontecer.

  • Os nomes de todas as crianças e adolescentes acolhidos citados nessa reportagem foram alterados.

Confira abaixo os depoimentos das repórteres sobre o processo de produção da matéria:

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A Beta Redação integra diferentes atividades acadêmicas do curso de Jornalismo da Unisinos em laboratórios práticos, divididos em cinco editorias.