Cidades do Vale dos Sinos investem menos de 1% do orçamento em acesso ao esporte e lazer
Dados obtidos via Lei de Acesso e Portal Transparência do Tribunal de Contas RS revelam que a maior parte destes recursos são para pagamento dos servidores
Por Gabriel Nunes, Ivan Júnior e Marcelo Janssen.
A Constituição de 1988 tornou o esporte e o lazer um direito a ser reivindicado por todos. O Estado, portanto, passou a ter a obrigação de promover políticas públicas para garantir possibilidades de desenvolvimento dos cidadãos. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), reforça este entendimento. De acordo com o Artigo 59, “os municípios, com apoio dos estados e da União, irão estimular e facilitar a destinação de recursos e espaços para programações culturais, esportivas e de lazer voltadas para a infância e a juventude”.
Contudo, se o parâmetro for as despesas orçamentárias dos municípios, pode-se afirmar que o investimento nesta área é muito baixo. No Vale dos Sinos, por exemplo, dos 14 municípios, entre os anos de 2016 a 2018, apenas a cidade de Portão teve um investimento médio de mais de 1% do orçamento anual para a pasta de Esporte.
As outras 13 investem menos de 1% do orçamento anual da Prefeitura para o fomento e administração da pasta de esporte. Além de baixo, outra preocupação é o destino dos recursos. Mais de 90% são direcionados para o pagamento de funcionários ou a manutenção de espaços mantidos pelas cidades, geralmente um ginásio poliesportivo. Além do investido pelo Executivo Municipal, especialistas apontam aqui, outras formas de angariar verbas para o incentivo da prática esportiva.
Ao longo de quatro meses, a reportagem levantou dados sobre as receitas e as despesas das prefeituras do Vale do Sinos por meio do Portal do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul (TCE-RS) e da Lei de Acesso à Informação (LAI).
No Brasil, o conceito de prática esportiva é intimamente ligado à Lei Federal 9.615, de 24 de março de 1998: a chamada Lei Pelé. A Lei estabelece quatro tipificações de manifestações do esporte: educacional, rendimento, formação e participação. Pesquisadores apontam que as atividades físicas são relevantes para o desenvolvimento humano, da infância até a terceira idade.
Cidades com maior orçamento são as que tem menos investimento
Conforme os números obtidos através do site do TCE-RS, a cidade do Vale que menos investe na pasta de Esporte, levando em conta o valor total do orçamento, é Novo Hamburgo. Segunda cidade com maior orçamento no Vale dos Sinos, com cerca de 246 mil habitantes, NH investiu em média apenas 0,09% de seu orçamento, entre os anos de 2016 e 2018. O valor total previsto no ano de 2019 para a pasta da Secretaria de Esporte e Lazer foi de R$6,5 milhões.
O diretor administrativo da SMEL Maximiliano Alberti admite que o valor é pequeno. “Nós aumentamos significativamente nosso orçamento (comparado ao da gestão municipal anterior), pela lista de atividades que colocamos e que queríamos desenvolver na secretaria, e mesmo assim orçamento ficou bem abaixo do penúltimo”, conta Alberti, que ainda ressalta a diferença entre o valor orçado e o arrecadado. “Não adianta fazermos planos mirabolantes se a arrecadação do município é pouca”.
O secretário da pasta, João Luís Ferreira da Silva, o Preto, contrapõe o baixo orçamento com os dados de adesão aos praticantes de esporte nos programas oferecidos pelo município, como o Programa de Iniciação Esportiva, e o Programa Melhor Idade (PMI), que atende idosos da cidade. “Para você ter ideia, hoje, em Belo Horizonte, são três milhões de habitantes, e existem 1600 alunos em um projeto com pessoa idosa, enquanto aqui são 230 mil habitantes e temos quase 1600 alunos”, revela.
Para o vereador e presidente da Comissão de Educação, Cultura, Desporto, Ciência e Tecnologia (Coedu), Felipe Kuhn Braun (PDT), fatores como a recente criação da Secretaria de Esporte do município, fundada em 2013, podem ser decisivos para o repasse do baixo valor. “Tens uma secretaria criada há 6 anos, dentro de uma época em que a população já não vê (o esporte) como algo tão relevante, mas também por um orçamento, hoje, apertado”, afirma Braun.
Por outro lado, Portão, que tem 28 mil habitantes (quase dez vezes menor que Novo Hamburgo) foi a que proporcionalmente a que mais investiu. Entre 2016 e 2018, aplicou 1,12% do orçamento no departamento de esportes, que está na pasta da Educação, Cultura, Desporto e Turismo. Em números absolutos significam R$2,4 milhões investidos no período analisado, de um total de 223,7 milhões do orçamento municipal, nos três anos analisados.
O gráfico abaixo revela o percentual do orçamento autorizado e direcionado ao departamento ou diretoria de esporte das cidades, para 2019. O valor autorizado é previsto durante a elaboração da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) dos municípios, e prevê o que pode haver de investimento máximo nas secretarias.
Também foi realizada a porcentagem média de investimentos relacionados ao esporte entre 2016 e 2018, como mostram os gráficos abaixo.
Baixas expectativas para Campo Bom
Vizinha da capital nacional do calçado, o município de Campo Bom possui 0,68% de seu orçamento anual autorizado destinado para a Secretaria de Esporte e Lazer. Esta porcentagem significa que o município avaliou cerca R$ 2,4 milhões para o esporte em 2019.
Segundo a vereadora Professora Sandra Orth (PSDB), líder da Comissão de Orçamento, Finanças, Educação e Bem-Estar, para o ano seguinte, a pasta contará com valores mais enxutos ainda. “É a secretaria (de Esporte e Lazer) com menos receita projetada para 2020. É a menor. É a que menos investimento tem”, ressalta.
A parlamentar ainda lamenta a falta de impulsionamento do poder público, lembrando o caso do clube de futebol 15 de Novembro, time campobonense que voltará aos campos das terceira divisão do futebol gaúcho após 5 anos inativos. “É a nossa cidade e nem sempre tem o amparo do poder público, o que poderia ter. Essa parceria poderia existir mais, beneficiaria não só as entidades, mas também o município”, completa.
Outra organização que ela acredita que carece de apoio é o projeto Moleques Bom de Bola. A iniciativa reúne mais de 100 meninos e meninas, entre 6 a 15 anos, para praticar futsal, de segunda a sábado. De acordo com Sandra, a única contribuição que o poder público municipal concede é a locação do Ginásio da cidade em alguns dias da semana.
De acordo com ela, está sendo solicitado junto à União uma verba para a construção de uma quadra poliesportiva coberta, o que auxiliaria tanto o Moleques Bom de Bola como o surgimento de outras iniciativas semelhantes. “Todos os vereadores buscam emendas pro seu município e algumas a gente tem direito de direcionar para onde a gente gostaria que fosse investido. Nesse primeiro ano estamos buscando essa emenda federal para Campo Bom, que é para a construção de uma quadra poliesportiva”, relata.
O presidente do projeto Moleques Bom de Bola, Fábio Heidt, conta que a ideia de criar uma escolinha de futsal surgiu “durante uma reunião de pais interessados em montar uma associação para os filhos poderem jogar e aprender mais sobre o esporte”. O custo mensal para manter o projeto é de R$ 4 mil, cujo valor é utilizado para pagamento dos professores, compra de material esportivo e custeio de participações em competições. Ele reconhece que a grande dificuldade é a falta de um local próprio da escolinha para os treinos e armazenamento do material de treino, pois quando há eventos no Ginásio Municipal eles não têm onde treinar.
Atualmente, dois professores ministram as aulas para os atletas mirins. “ A cada dia da semana treinamos uma categoria diferente, das 18h às 19h”, explica Heidt. Nos sábados, todas as categorias treinam, começando às 14h e encerrando às 18h, com a supervisão dos professores e acompanhamento da diretoria.
Além de buscar patrocínios para manter o projeto, são realizados bailes beneficentes, assim como venda de pastéis, galetos e cachorros quentes. Para poder pagar os professores, também é cobrado um valor simbólico dos alunos que participam. Eles também buscam o apoio de empresas da cidade e região para a manutenção dos materiais esportivos e dos uniformes.
90% da receita para pagamento de funcionários
Assim como em Novo Hamburgo, a Secretaria de Esporte e Lazer de São Leopoldo é um órgão recente da prefeitura. Criada há 10 anos, a divisão é a responsável pelas ofertas de práticas esportivas para a população leopoldense. O secretário de Esporte e Lazer Rogério de Brito, entende que o esporte é um dos principais colaboradores para o desenvolvimento de uma qualidade de vida para a população, e admite que o volume é pequeno. “O valor repassado é muito baixo, dado a importância que se tem no município. É através do esporte que você educa, socializa e combate doenças”, lamenta Brito.
Segundo o secretário, além dos recursos repassados pelo Estado e pela União serem escassos, o município prioriza investir no Hospital Municipal Centenário, mantido com verba do orçamento municipal. “Com o valor que é transferido, os principais usos são para o pagamento dos servidores, para manter os projetos sociais e realizar a manutenção de servidores”, conta.
Dados obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) sobre os gastos da SMEL de São Leopoldo revelam que a folha de pagamento dos servidores consome, em média, 90% da receita para o órgão, enquanto os outros 10% se dividem entre obras e manutenções de ginásios e da própria Secretaria.
Especialista aponta ferramentas para implantar políticas públicas para o esporte
“Mapear recursos financeiros que os municípios destinam ao esporte e lazer é um dos temas mais polêmicos na área de política de esporte”, afirma Ednaldo Pereira da Silva Filho, coordenador do curso de Educação Física da Unisinos, e pesquisador acerca do tema Políticas Públicas de Esporte e Lazer.
Como destaque, Ednaldo cita a Conferência Nacional do Esporte, evento instituído pelo Decreto Presidencial de 21 de janeiro de 2004. A Conferência, que ocorreu pela última vez em 2010, reuniu pesquisadores, poder público e atletas para discutir o esporte no Brasil, e apresentava o caminho das reivindicações para fomento de políticas públicas de esporte. “Esporte e lazer é um direito social, por isso há a necessidade de se ter conferências, de se ter elaboração de políticas públicas. Porque o esporte é considerado constitucionalmente um direito social”, afirma.
Em conferências, as políticas públicas são reivindicadas em quatro segmentos: a necessidade de um órgão gestor executor; recursos humanos para organização, desenvolvimento e implementação; recursos financeiros; e controle social.
A existência de um órgão executor é o primeiro passo necessário para fazer política pública de esporte e de lazer. Como exemplo, o pesquisador descreve que, em nível federal, é necessário que haja um Ministério, enquanto que nas esferas estaduais e municipais existam secretarias.
“Historicamente, é muito comum nos municípios você não ter uma órgão responsável exclusivamente pelo esporte. Em geral, essa pasta está sempre vinculada às secretarias de educação, cultura ou lazer”, exemplifica. É o caso das cidades de Sapiranga, Dois Irmãos, Portão e Ivoti, em que o setor responsável pelo esporte faz parte da Secretaria de Educação.
Conforme Ednaldo, para organizar e implementar as políticas públicas, o segundo passo é possuir recursos humanos, com profissionais capacitados para difundir e qualificar os projetos de esporte e lazer. Na terceira etapa, estão os recursos financeiros, uma cobrança antiga de quem discute a temática e questão central discutida na reportagem. “Se analisar rigorosamente os recursos das prefeituras, Estado ou União, é destinado menos de 1% do orçamento ao esporte e lazer. A reivindicação é que, ao menos, ao menos, seja repassado esta porcentagem”, explica.
O último elemento para fazer política pública de esporte e lazer é o controle social. Nesta esfera, será deliberada as prioridades da aplicação de recursos, e quem deve definir as prioridades é a população, ou seja, a sociedade civil. “É fundamental para que as políticas públicas sejam de fato destinadas para o esporte e lazer”, resume.
Como mostrado, Portão é o único município cujo investimento médio, entre 2016 e 2018, foi acima do valor reivindicado pelas conferências de políticas públicas para o esporte. De acordo com Ednaldo, cidades que repassam esta porcentagem do orçamento total são singulares, visto que, geralmente, é destinado menos de 0,5% da receita primária para o esporte e lazer. “O valor é muito aquém da reivindicação, que a nível nacional é que cada setor destine pelo menos 1% de seu orçamento primário”, conta.
Opção é investir em esporte educacional, de lazer e de participação
De acordo com o Cláudio Augusto Gutierrez, também coordenador do curso de educação física da Unisinos, um parâmetro para as prefeituras basear-se na organização de atividades esportivas para crianças e adolescentes, é a legislação nacional e a Lei Pelé. Conforme o também pesquisador, o principal papel das prefeituras é desenvolver os esportes de participação, educacional e de lazer. “O esporte de participação promove saúde e integração comunitária pelo esporte — papel fundamental das cidades”, pontua. Por fim, ele sugere às administrações públicas procurar políticas formuladas no período em que ainda existia o Ministério do Esporte — hoje é uma Secretaria Especial do Ministério da Cidadania -, como o programa PELC (Projeto Esporte e Lazer da Cidade).
Os baixos números das prefeituras com o dinheiro empenhado são mal investidos, para o especialista em gestão no esporte Felipe Alberton. Os grandes eventos esportivos em que o Brasil foi sede, a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, são considerados exemplos de “dinheiro mal investido”. “Foi usado muito dinheiro em construção de estádios e infraestrutura, sendo que não se tinha essa necessidade”, comenta Alberton, que possui ampla experiência na atuação de projetos sociais voltados ao esporte. “Poderia ser utilizado, talvez, para o esporte de base educacional, investindo em crianças e adolescentes”.
A construção de novos espaços para a prática esportiva também é um ponto que levanta a crítica do educador físico. Para ele, o custo para a criação de um ginásio poliesportivo é bem maior que uma possível reforma em quadras escolares, com abertura para o uso da comunidade.
Com o baixo investimento das prefeituras em esporte, a Lei de Incentivo ao Esporte, sancionada em dezembro de 2006, se encontra como importante aliada dos projetos. Felipe Alberton explica que “a lei de incentivo aqui do estado tem uma contrapartida da empresa. Logo, se a empresa tem um projeto de 100 mil reais, ela entrega o valor total do ICMS dela, mas destinando 25 mil do bolso para o Fundo do Esporte”.
Conforme Marco Paulo Stigger, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano, da UFRGS, o esporte e o lazer são áreas da vida social consideradas desimportantes. Quando pressupõe-se a existência de uma pasta das temáticas, cuja função criará condições para que as pessoas usufruam de um tempo lazer, acabam significando aquele momento de descanso, como uma atividade de “vagabundo”, explica o professor. O que ocorre pela noção de que o “trabalho enobrece o homem”. O pesquisador expõe o enorme mercado de lazer disponível para quem pode pagar: “Há um conjunto de empresas que investem em lazer, desde excursões, turismo, restaurantes, parques temáticos”, contextualiza.
Para ele, o papel do estado é proporcionar o acesso ao lazer para todos, “uma dimensão no direito a ter lazer”, explica. Para encerrar, Stigger traz a relação do esporte com outros âmbitos da vida, sempre defendidos e pedidos pelos cidadão. “Quando são organizadas atividades de caminhada nas praças é lazer e saúde pública. Oferecer escolinhas para as crianças é lazer e educação. Inclusive, a ocupação da praça pode ser visto como uma articulação com a segurança”, Conclui o professor.
A prática de esportes em projetos municipais, estaduais ou federais, é de grande importância para o desenvolvimento social dos jovens, pelo menos é o que considera Alberton. “Em bairros carentes de cidades, as crianças não tem a mínima estrutura desportiva, e às vezes acabam pegando outro caminho”, explica o proprietário de uma empresa de planejamentos para projetos esportivos. A ideia de montar uma empresa destinada a preparação de iniciativas desportivas surgiu com esta percepção de inexistência de empresas acessíveis do ramo.
Segundo Alberton, o esporte é o grande inimigo da criminalidade, que acaba por captar crianças de classe baixa e de periferia. Ele ainda relata que a prática de atividades esportivas conscientiza a criança para uma qualidade de vida saudável. “Não há investimento nela, que poderia estar fazendo um esporte no contraturno escolar, por exemplo. Isso acaba tendo um reflexo muito grande no país”, conta.
O pesquisador Marco Paulo Stigger considera as políticas públicas necessárias,mas pondera que é preciso cuidar para não associar o esporte a uma política salvacionista “Como se o esporte fosse ocupar o tempo dos jovens, e evitar que opere em outras áreas”, um desafio, tendo em vista estarmos num país com tanta desigualdade social, afirma ele.