Comércios legalizados buscam trazer inovação e variedade nos produtos canábicos
Head shops movimentam setor em crescimento no Brasil
Durante muito tempo, a união das palavras maconha e economia remetiam somente ao tráfico, ao crime organizado e à violência. Atualmente, áreas da sociedade civil e do poder público estão percebendo o potencial econômico que gira em torno da cultura canábica — que vai desde o cultivo da planta até extratos, óleos, comestíveis e, principalmente, comércios e atividades especializadas.
Nos Estados Unidos, o mercado de cannabis é o que mais cresce no país—dos 50 estados americanos, 39 já têm legislações que permitem a comercialização, uso recreativo e medicinal da maconha. O levantamento feito pela agência Leafly aponta que foram contabilizados mais de 243 mil trabalhadores registrados legalmente na chamada “indústria verde” em 2020.
No equivalente ao lucro global, o setor legalizado atingiu a marca de US$ 21 bilhões em 2020 na pesquisa feita pela BDSA, e, de acordo com o relatório The Global Cannabis Report elaborado pela firma de inteligência de mercado The Prohibition Partners, a previsão é de mover um total de US$ 103,9 bilhões até 2024.
Enquanto isso, o Brasil caminha lentamente em todos os aspectos relacionados ao assunto: A Lei Antidrogas proíbe em todo o território nacional o plantio, cultura, colheita e exploração de vegetais e substratos que possam ser extraídas ou produzidas drogas, com exceção de plantas para o uso exclusivamente ritualístico religioso, fins medicinais e/ou científicos.
Apesar disso, com a aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o setor legalizado da maconha no Brasil se mostra cada vez mais promissor com as head shops — lojas especializadas em vender acessórios para consumo, que vão desde bongs, narguilés, piteiras de vidro, pipes, vaporizadores, sedas e produtos para a redução de danos.
A Beta Redação conversou com três proprietários de head shops em Porto Alegre para conhecer as potencialidades e os desafios de empreender em uma área pouco difundida no país.
Minuano é a pioneira das head shops no Rio Grande do Sul
A palavra Minuano tem diversos significados. Pode ser usada para denominar o povo indígena que habitou o Rio Grande do Sul nos tempos pré-coloniais, descrever o vento forte que sopra no estado após as chuvas de inverno, e também pode expressar a força do laço familiar. A junção dos três sentidos é o que motivou a escolha do nome e fundamenta a essência dessa head shop.
“Meu sogro, já falecido, teve uma imobiliária há 40 anos com esse nome. Foi uma forma que encontrei de prestar homenagem. Eu mesma perdi meu nome de batismo há tempo, agora só me chamam de ‘Minuana’. É uma expressão muito forte”, diz Ana Paula Araújo, 49 anos, proprietária da Minuano. Além dela, o marido e os três filhos atuam em diferentes setores da loja — e, para completar a equipe, Amora e Brisa, as duas cachorrinhas de estimação da família, são as fieis companheiras durante o expediente. “Nossas decisões são todas em conjunto, e todos batalhamos por esse sonho”, destaca.
Ana Paula se emociona ao lembrar do começo da Minuano, marcado por desafios e dificuldades. “Compramos o ponto em 2012. Fizemos uma loucura, tivemos que bancar uma dívida horrorosa”, explica. Em um período de dois anos para organizar as finanças e revitalizar a loja, a empreendedora conta que pensou em desistir: “Foram dias de choro, de ‘hoje eu não vou conseguir, vou fechar as portas’. Não tínhamos nada para vender, porque o nosso capital para adquirir os produtos era escasso”, relembra.
Nesse período, a Minuano ainda tinha perfil de tabacaria. Tudo mudou quando, através de uma reportagem jornalística, Ana Paula descobriu que o mercado legalizado da cannabis era um dos setores mais promissores para a economia mundial: “Para mim, era um universo diferente. Vim de uma criação muito conservadora, de pai rígido”, comenta. Entretanto, os filhos de Ana Paula já tinham proximidade com produtos canábicos e com a cultura em torno disso.
A partir da descoberta, a família se juntou para fazer pesquisas de mercado; desde marcas, produtos, cultura e estética do setor. “Há cinco anos, era muito complicado trazer itens da linha para cá. Além das taxas de imposto altas, os pedidos tinham que ser feitos em grande quantidade”, comenta. Hoje, Ana Paula nota uma avanço significativo nessas operações: “Temos uma relação muito família com todas as marcas, que vai além do comercial. Nos preocupamos com as questões técnicas dos itens que vendemos e priorizamos boa qualidade e redução de danos”, aponta.
Passados seis anos, a Minuano é estabilizada no setor como a head shop mais conceituada e popular do Rio Grande do Sul. Atualmente com duas lojas, uma na Avenida Azenha, em Porto Alegre, e outra na Rua Adolfo Inácio Barcelos, em Gravataí, Ana Paula acredita que o principal fator do sucesso é o amor pela profissão e o atendimento especializado: “Eu sou apegada demais nessa loja, chamo ela de ‘meu neném’ e ‘minha filha’. Por isso, temos o compromisso muito sério de fazer com que as pessoas se sintam acolhidas e respeitadas aqui. Nosso público é muito variado e abraçamos a todos de maneira igual”, finaliza.
Inspirada nas lojas dos Estados Unidos, a Head Shop 38 é a primeira do ramo na Zona Sul
Matheus Dias, 27 anos, proprietário da Head Shop 38, afirma que o Brasil está atrasado na descriminalização do consumo de maconha e que isso influencia diretamente na economia das head shops: “Temos todos os acessórios disponíveis legalmente, menos a protagonista. Ficamos para trás, mesmo com os exemplos que deram certo no Uruguai, Estados Unidos e Holanda”, diz.
Após uma temporada de viagens no exterior, Matheus teve a ideia de empreender no ramo das head shops com o objetivo de inovar em um setor ainda inexplorado no âmbito nacional: “O mercado cannabis tem uma dimensão própria em outros países, é muito grande. No Brasil, quis explorar isso. Meu pai acreditou no projeto e viu muito potencial, e, juntos, colocamos em prática”, explica.
Inaugurada em maio, a Head Shop 38 atualmente é composta por uma equipe de quatro pessoas e, além da loja física, também disponibiliza os produtos para compra online. “Nosso maior porcentual de lucro é das vendas presenciais. Também estamos percebendo o comportamento dos clientes de fazer o pedido pelo site ou pelo Instagram, e depois vindo pegar aqui na loja”, detalha Matheus.
Apesar do setor estar em crescimento no Brasil, Matheus aponta que ainda enfrenta dificuldade em empreender na área: “O preconceito e o tabu ainda são fortes, mesmo com os diversos avanços dos estudos sobre a maconha no mundo”, lamenta. “No sentido positivo, a nossa loja tem uma variedade de produtos e temos uma busca constante de sempre trazer novidades. Nossos clientes são próximos. Esperamos que o ramo siga crescendo, para que possamos atender as demandas com qualidade e diversidade para o público”, conclui.
Mente Aberta se reinventa em meio à crise da pandemia
“Trocar experiências e conseguir ajudar as pessoas a terem produtos realmente bons é mais importante do que a venda em si”, diz Gianluca Scapini, 31 anos, dono da Mente Aberta. “Aqui todo mundo é recebido com respeito e olho no olho, e isso fez com que criássemos relações verdadeiras com os clientes. Isso é, com certeza, o que nos move e nos dá a maior satisfação”, conta.
Com as atividades iniciadas em 2019, a Mente Aberta começou com uma loja física no bar Ceu Lado B, localizado no bairro Cidade Baixa. A pandemia, que dificultou ainda mais o trabalho de pequenos empreendedores, fez com que o bar fechasse permanentemente. “Nossa paixão é o contato com a galera, mas entendemos que o momento não justifica uma operação física da head shop agora. Vender pela loja online é mais uma necessidade, ainda que tenha um potencial enorme”, explica Gianluca.
A Mente Aberta passa por um processo de reformulação. Com as saídas dos sócios, atualmente Gianluca gere, administra, atende clientes e vende os produtos sozinho. “Além de focar na construção da marca, a ideia do momento é reestruturar o modelo de negócios que vinha sendo adotado”, diz. Para tornar as operações mais práticas, a principal mudança é no controle e na logística de estoque: “Antes tentávamos ter uma enorme variedade de produtos e isso desencadeava em diversos obstáculos, desde adicionar corretamente centenas de itens nos sistemas de gestão, fazer a precificação (…). Hoje procuro trazer coisas realmente essenciais e necessárias, em quantidades menores”, expressa.
Na visão de Gianluca, as head shops também exercem um papel social: “Acho que parte do nosso trabalho é tentar desmistificar um pouco os aspectos da maconha, precisamos mostrar que somos empresas e pessoas sérias atuando em um mercado legalizado. Estamos lutando por uma causa totalmente legítima”, manifesta. “Acredito que isso é uma responsabilidade até maior do que ter um negócio em outros segmentos. A gente sempre gostou desse desafio”, finaliza.
As perspectivas do consumidor
Há cinco anos, o casal Eduardo* e Mônica* frequenta head shops espalhadas pela capital. Para eles, é um local de socialização e de busca por novidades: “Acredito que seja um agregador importante. Testamos novos produtos, descobrimos novas marcas e ainda fazemos amizades”, elucida Eduardo. Na renda mensal dos dois, há um planejamento prévio do quanto será destinado para a compra de acessórios. “Somos organizados financeiramente, mesmo que às vezes hajam alguns deslizes (risos). Anotamos na ponta do lápis o nosso custo mensal, e isso acaba facilitando muito”, complementa Mônica.
Recém-chegada no universo das head shops, Selena* se empolga com as novas experiências. “Conheci esse ano, através de amigos que me apresentaram. Amei logo de primeira e agora visito regularmente”, comenta. Por ser novata, ela conta que aproveita para experimentar todos as marcas disponíveis no mercado: “Estou descobrindo meu gosto pessoal nesse processo. Com as indicações dos atendentes, estou sendo muito bem orientada para ter ótimos momentos e redução de danos”, aponta.
Ela, bem humorada, revela que está com uma viagem marcada para a Europa no primeiro semestre de 2022 e que, sem dúvidas, visitar head shops está no seu roteiro turístico: “Não vejo a hora! Por lá essas questões já são mais naturalizadas, a legalização é o primeiro fundamento para quebrar os preconceitos”, conclui.
*A reportagem fez uso de nomes fictícios para contemplar os pedidos de anonimato feito pelas fontes.