Com recursos da LAB, projetos literários incentivam a diversidade

Literatura negra infantil, bibliotecas comunitárias e livro LGBTQIA+ para crianças fazem parte das propostas fomentadas

Beta Redação
Redação Beta
11 min readJul 3, 2021

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por Carolina Santos; Carol Ambros e Carol Steques; Julia Schutz

A palavra tem o dom da companhia, de nos causar fantasias ou de adentrar além das superfícies — a locais de luta, a ambientes e ambientações e ao contexto das histórias. Seja ela falada ou cantada, por meio da oralidade poética ou não. Seja ela escrita nos mais variados gêneros e possibilidades. Sem a palavra não há. Não há alfabeto. Não há o som da voz. Não há ensino e educação. Não há obra lítero-musical, música popular brasileira, enredo de carnaval. Não há relatos sobre a vida das pessoas. Não há Jornalismo. Não há cartas de amor, poemas, crônicas, dicionários, livros, contos infantis, bibliotecas.

O compositor e escritor Aldir Blanc — uma das mais de 500 mil pessoas vítimas da Covid-19 no Brasil — , também não haveria construído uma carreira artística sem a união e o soar das letras e palavras. Existem obras musicais compostas sob a titularidade dele, no total de 614 canções; ou criações literárias como poemas, contos, literatura infantil e, especialmente, crônicas. Por ironia do destino, o artista faleceu em maio de 2020, no mês de conscientização sobre o combate à asma, uma doença que causa dificuldades para respirar. Enquanto, na verdade, ele nos proporcionou e ainda tem propiciado arte e fôlego para que possamos sobreviver em meio a essa crise pandêmica e sanitária.

Na composição “Querelas do Brasil”, por exemplo, lançada em 1978 e escrita em coautoria com Maurício Tapajós, Blanc refletiu acerca do autoritarismo brasileiro durante a ditadura militar, assim como a eliminação da cultura popular no país daquela época. A letra desta canção expressa a frase “SOS ao Brasil” que vem a calhar com a situação experimentada desde o ano passado no país, sobretudo pelo setor cultural. Diante deste cenário, portanto, e em homenagem a sua relevância, Aldir Blanc se tornou nome de lei. Mais precisamente da Lei nº 14.017, de 29 de junho de 2020, de autoria da deputada federal Benedita da Silva (PT/RJ).

A partir disso, a Beta Redação selecionou três projetos gaúchos que têm incentivado a diversidade por meio da literatura. As propostas foram executadas por editais fomentados com recursos da Lei Aldir Blanc (LAB). O “I Festival Germinação Cultural”, do edital Criação e Formação Diversidade das Culturas, estimula o surgimento de agentes culturais através da contação de histórias da literatura negra infantil. O “Circuito Cultural nas Bibliotecas da Rede Beabah!”, conduzido pelo edital Ações Culturais das Comunidades, realiza mediações online de leitura, lives educativas e saraus em 10 bibliotecas de comunidades com o propósito da democratização cultural. A “Coleção PríncipXs”, uma coleção infantil com temática LGBTQIA+, também contemplada pelo edital Criação e Formação Diversidade das Culturas, lança o livro “Abóboras” da escritora Freda Cortaze. Confira os projetos a seguir.

Dandara foi uma das participantes da oficina, com apenas sete anos é engajada na disseminação da cultura negra. (Foto: Lívia Farias / Arquivo Pessoal)

I Festival Germinação Cultural busca difusão da literatura negra

O Brasil não é uma nação de leitores. A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro, publicada em 2019, demonstra essa realidade. Nos últimos quatro anos o país perdeu mais de 4,6 milhões de leitores. O relatório dessa pesquisa apontou que, até aquele momento, pessoas com mais de 5 anos que não leram nenhum livro representavam 48% da população. Isso é o equivalente a 93 milhões de não leitores, de um total de 193 milhões de brasileiros.

Se a falta de contato com a literatura impressiona, a representatividade está longe de ser a ideal quando falamos de literatura negra. Uma pesquisa coordenada pela professora Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília (UNB), mostra dados sobre a publicação de romances nas principais editoras do país. Entre 2004 e 2014, somente 2,4% dos autores publicados não eram brancos. No mesmo recorte temporal, apenas 7,9% dos personagens retratados nos romances eram negros, sendo que só 5,8% eram protagonistas da história.

Quando pensamos no ambiente escolar, há a apresentação de personagens negros pautados por um distanciamento racial. De modo geral, são personagens reproduzidos sempre pelo mesmo estereótipo: empregada doméstica, cozinheira, mulher hipersexualizada, malandro ou pessoa vitimizada. No caso do autor e escritor Monteiro Lobato, por exemplo, no livro “Sítio do Pica-Pau Amarelo”, considerado um clássico da literatura infantil, Lobato reforça esses estereótipos a partir de personagens como a Tia Nastácia e o Tio Barnabé.

Movida por sua atuação como Promotora em Saúde da População Negra no município de Porto Alegre, Priscila Cruz criou, em 2019, o Projeto Germinação Erê, que tem como principal objetivo a contação de histórias da literatura negra infantil. A iniciativa desenvolve atividades de incentivo à leitura junto a crianças e promove práticas pedagógicas não discriminatórias por meio da formação de professores de escolas públicas da capital gaúcha.

Com a pandemia de Covid-19, em 2020, e o consequente distanciamento social, os encontros escolares migraram para o ambiente virtual. Desde então, a inclusão familiar tem sido essencial para a educação e a alfabetização de muitas crianças. Dessa necessidade, Priscila criou o Projeto Clubinho Erê Educação para estimular o uso da literatura familiar como modo de inserção da temática étnico-racial na educação infantil. O serviço de consultoria de livros da literatura negra infantil já conta com 10 clientes. “É uma forma de difusão da leitura, possibilitando que as famílias ensinem, aprendam e se divirtam no ambiente familiar”, conta Priscila.

O Festival promove o conhecimento da cultura negra para os participantes das oficinas. (Foto: Priscila Cruz / Reprodução)

Idealizado pelo Clubinho Erê, o projeto I Festival Germinação Cultural foi orientado pela Lei nº 10.639/03, que inclui o ensino da cultura africana e afro-brasileira em todos os níveis educacionais, e executado por meio do Edital Criação e Formação Diversidade das Culturas — com recursos da Lei Aldir Blanc (Lei nº 14.017/20). A iniciativa buscou estimular o surgimento de novos agentes culturais por meio da formação de contadores de histórias da literatura negra infantil. O projeto aconteceu para democratizar o acesso aos livros, à leitura e à literatura desde a infância.

Dividido em 4 oficinas — Erê-semente, Erê-Broto, Erê-Griô e o Sarau Erê Cultural — o projeto disponibilizou 60 vagas, através da plataforma Google Meet, com transmissão ao vivo pelo Youtube. As oficinas promoveram a importância da contação de histórias da literatura negra infantil, a valorização da diversidade étnico-racial e garantiram a distribuição de livros com essas temáticas. A equipe executora do Festival Germinação Cultural, formada por 12 pessoas — mulheres e homens negros de diversas áreas do conhecimento — abrangeu, também, a comunidade LGBTQIA+. Em sua totalidade, as lives atingiram 270 visualizações.

“Apesar da contribuição ímpar para a nossa sociedade, a população negra ainda sofre, nos dias de hoje, os efeitos do preconceito racial e a desigualdade”, declara Priscila. “A Lei Aldir Blanc possibilitou que pudéssemos dar continuidade ao projeto de valorização da cultura negra, iniciado como medida preventiva aos crescentes casos de violência autoprovocada nas escolas públicas, no ano de 2019”, explica.

As experiências nas oficinas agregaram o contato dos participantes com os escritores negros. Lívia Farias, que faz parte do Clubinho Erê há sete meses, fez questão de participar com a sua filha Dandara, de sete anos. “O Festival foi muito produtivo, porque teve essa troca de conhecimento. Havia professores que nunca tiveram contato com autores e escritores que abordassem a temática afro”, relata Lívia.

Lei Aldir Blanc fomenta ações culturais online em bibliotecas comunitárias da capital gaúcha

Ketlyn faz parte do projeto “Afroativos: solta o cabelo e prenda o preconceito”, e participou de uma das lives do circuito ao lado de Larisse Morais (Foto: Rede Beabah! / Divulgação)

Durante os meses de janeiro e abril deste ano, aconteceu o Circuito Cultural nas Bibliotecas Comunitárias da Rede Beabah!. O evento, que tem como um dos pilares a democratização da cultura, utilizou o cenário de dez bibliotecas de comunidades periféricas da capital gaúcha. Nelas, foram realizadas atividades como mediações online de leitura, lives educativas e artísticas, e saraus com artistas locais e regionais. A iniciativa foi conduzida a partir do edital Ações Culturais das Comunidades, fomentado com recursos da Lei Aldir Blanc.

A expectativa era de que o projeto atingisse cerca de 50 mil pessoas. Porém, para a surpresa dos organizadores, o evento reuniu mais de 200 mil espectadores. A mediadora de leitura da Beabah!, Carolina Neves, que também atuou como assistente de produção no projeto, relata que os resultados previstos foram superados. “Pensamos que por ser em um contexto virtual, teríamos baixa audiência tanto nas transmissões, quanto nas mediações de leitura, bem como na participação dos saraus de cada biblioteca. Mas o público participou bastante”, comemora Carolina. O projeto também superou a meta de livros processados nos acervos das bibliotecas.

O objetivo do circuito foi impulsionar as ações da Rede Beabah! nas comunidades, e também no contexto virtual devido à pandemia. Carolina avalia que apesar de se tratar de um ano difícil, a LAB possibilitou que a Rede realizasse um bom trabalho no início de 2021. A mediadora ressalta que o uso da lei foi de extrema importância para a continuação da Beabah! e para as bibliotecas comunitárias, as quais conseguiram recursos com projetos independentes, a contratação de auxiliares de biblioteca e bibliotecários para o processamento técnico dos acervos.

A assistente de produção enfatiza a importância da democratização da cultura promovida pelo projeto. Ela afirma que há a necessidade de políticas públicas que valorizem e reconheçam a cultura dentro das comunidades. “Além disso, a lei trouxe um respiro para os produtores, artistas e demais profissionais da cultura que foram contemplados com recursos dos editais”, salienta Carolina.

Ao longo dos encontros virtuais, foram realizadas 100 mediações de leituras, com quase 30 convidados. A coordenadora do projeto “Afroativos: solta o cabelo e prenda o preconceito”, Larisse Morais, participou como convidada do Circuito. Frequentadora da Biblioteca Comunitária do Arvoredo, na Lomba do Pinheiro, ela afirma a importância da cultura no dia a dia, principalmente nos espaços periféricos.

Larisse já havia participado de outros eventos relacionados à programação da Beabah!, através da parceria com a Biblioteca Comunitária do Arvoredo. Na opinião dela, essa conexão fortalece a formação de leitores nas periferias da cidade. A convidada acredita que o movimento da democratização cultural, através da aproximação e formação de comunidades leitoras nas periferias, dá visibilidade a um lado da periferia que normalmente não é divulgado.

“Nós temos tanta potência dentro das comunidades de Porto Alegre, e de outras cidades também. Temos muita gente produzindo e, infelizmente, isso não é evidenciado nas notícias. Ao invés disso, vemos jovens periféricos nas páginas policiais”, lamenta Larissa. Para ela, este tipo de projeto é uma semente que pode germinar um futuro nas comunidades.

Neste contexto pandêmico, em que as dificuldades estruturais e cotidianas saltam aos olhos, a LAB fomenta e ampara os fazedores de cultura. Porém, Larissa destaca, a partir de sua vivência na Lomba do Pinheiro, que o investimento nas comunidades é insuficiente. Sobretudo, o investimento feito em cultura e lazer para crianças e adolescentes que têm poucas opções.

Escritora gaúcha lança “Abóbora”, segundo livro infantil da “Coleção PríncipXs” com temática LGBTQIA+

Freda é autora de “Abóbora”, livro infantil que conta a história de uma drag queen baseada na personagem Cinderela. (Freda Cortaze / Arquivo Pessoal)

A escritora Freda Cortaze está preparando o segundo livro da “Coleção PríncipXs”. Voltado para o público infantil, “Abóbora” centra-se na temática LGBTQIAP+ e busca desmistificar os já conhecidos finais felizes dos contos de fadas. Assim como “Neve”, primeiro livro da coleção, o propósito é fomentar a representatividade, para que pequenos leitores valorizem a luta por uma sociedade mais igualitária. A obra foi contemplada pelo edital Criação e Formação Diversidade das Culturas, com verbas da Lei Aldir Blanc.

Freda conta que a ideia da coleção surgiu em 2016, enquanto cursava a graduação de Dança na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Conheci a Cassandra Calabouço, que é uma drag queen famosa de Porto Alegre, que deu um curso chamado ‘Pimp My Drag’, que é um curso para iniciantes de drags que querem aprender algum aspecto da sua personalidade ou persona. Daí, passei a me perguntar por que demorei tanto pra entrar em contato com esse mundo”, ralata.

Logo após o curso, Freda conta que surgiu a ideia de criar histórias a partir de contos infantis que ela ouvia quando era criança, fazendo releituras com o acréscimo de elementos da cultura LGBT. “O projeto ficou na gaveta por um tempo e surgiu toda a polêmica da Bienal do Rio em relação ao livro que tinha um beijo gay numa das páginas. Então, achei que não ia dar pra lançar”, revela. Porém, por insistência de sua irmã mais velha, que queria essas histórias “tiradas do armário”, a autora levou o projeto até a Editora e Livraria Cirkula. A dona do estabelecimento, a editora e pedagoga Luciana Hoppe, abraçou a ideia.

Para Luciana, que tem formação em pedagogia, esses livros são de grande importância para a público infantil. “Os livros educam as crianças, e essa coleção é pra ensinar as crianças sobre diversidade. Ele é uma ferramenta pedagógica. Então, brincando, os pequenos vão aprendendo, olhando as ilustrações, os desenhos, lendo. Vai naturalizar essas coisas, pois os livros têm essa oportunidade de abrir portas e janelas para um mundo repleto de diversidade. E lúdico, onde tudo pode acontecer com menos preconceito, menos filtro”, afirma.

No início, Freda pretendia distribuir somente para amigos e pessoas próximas, e imaginava uma obra simples, sem ilustrações. Luciana, no entanto, transformou “Neve” em uma obra com desenhos e textos em letra cursiva. “Ia ser apenas um livro, mas aí resolvemos fazer seis livros, cada um com uma cor da bandeira do orgulho LGBT e cheio de ilustrações”, explica a autora.

Em “Neve”, cabe à criança leitora criar os nomes das personagens, baseadas no universo de Branca de Neve, do modo que ela desejar. A obra está concorrendo ao prêmio Jabuti em três categorias: melhor livro infantil, ilustração e projeto gráfico. “A narrativa não é com uma princesa e sim um príncipe, sem rainha má. Conta com um rei destemido e corajoso que acha que as pessoas não devem ter medo, diferente do príncipe que é o mais medroso do reino e os anões são drag queens”, descreve.

Em “Neve”, os anões também são representados como drag queens. (Instagram @Principxs / Reprodução)

Quando o livro foi lançado, um pouco antes da pandemia, havia a intenção de fazer palestras em escolas, assim como uma festa de lançamento que não pôde acontecer: “Quando surgiu essa lei, fizemos uma iniciativa de adaptar as atividades para o contexto de pandemia. Além disso, o segundo livro, intitulado “Abóbora”, conta com recursos inclusivos com um QR Code para as pessoas acessaram o audiobook. Além disso, o Instituto Brasileiro dos Cegos vai fazer áudiodescrição”, conta.

Freda menciona que criou a coleção por adorar animações com reinos mágicos e encantados. Ela não se identificava com as histórias e nem com os personagens que sempre eram estereotipados na cultura heteronormativa. “É importante que a diversidade seja acolhida e que o universo LGBT esteja nas apresentações, na cultura e nos livros infantis”, defende.

A autora acredita que o público infantil trata a questão de gênero de uma maneira natural. “Minha amiga trabalha nas aulas de dança com os livros para as crianças. Elas não questionam o motivo dos anões terem barbas e usarem vestidos. Simplesmente, aceitam e acolhem. Para elas é bem fácil. Acabam se identificando, principalmente as crianças LGBT”, explica.

Contemplado pela LAB, “Abóbora ” é inspirado em “Cinderela” e está em pré-venda. “É a história um menino que mora com as irmãs, vai pro baile disfarçado e perde o sapato porque a maquiagem borra. No final, ele volta e reencontra o príncipe. O personagem principal é inspirado em uma drag queen do programa norte-americano ‘RuPaul’s Drag Race’, Chi Chi DeVayne, que faleceu ano passado. Eu dediquei o livro pra ela”, relembra Freda.

No livro, o trabalho doméstico é valorizado como algo que não depende de gênero. A história aborda a questão da organização dentro de casa como tarefa que não precisa ser realizada apenas por mulheres, mas por todos que ali convivem.

Sobre a questão do preconceito em relação à coleção, Freda comenta que não recebeu nenhum comentário direto. “Nas nossas redes sociais, procuro sempre filtrar os comentários e os seguidores. Sempre tento chegar nas pessoas que vão se interessar. Geralmente, quem trabalha com educação, diversidade. Porém, o preconceito é constante. Vemos tantas coisas acontecendo, os espaços se fechando pra quem é artista, mas esses editais, como da Aldir Blanc, ajudam a gente a mostrar nosso trabalho, que auxiliam toda essa cultura”, conta.

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A Beta Redação integra diferentes atividades acadêmicas do curso de Jornalismo da Unisinos em laboratórios práticos, divididos em cinco editorias.