CRÍTICA: Com uma mão, transformou-se em um deus
Documentário biográfico dirigido por Emir Kusturica disseca a vida de Diego Armando Maradona
“Deus é o único ser que para reinar não precisou de existir”. A frase, atribuída ao poeta francês Charles Baudelaire, é mostrada na abertura do documentário biográfico “Maradona, por Kusturica” e oferece um tom para compreender a forma na qual será narrada a história. Produzido e dirigido por Emir Kusturica — admirador declarado da entidade argentina — , a obra audiovisual narra a vida de Diego Armando Maradona de uma maneira diferente das costumeiramente apresentadas em conteúdos de esporte semelhantes.
Ao invés de apresentar a trajetória, com a narração do ex-jogador e imagens de lances ao fundo, a produção aproxima quem assiste buscando o lado mais humano, mais sensível e falível do ídolo do Boca Juniors. Como fã declarado, Kusturica deixa claro com imagens a sua própria admiração e a devoção do povo argentino, apresentando a recepção do ídolo no estádio La Bombonera e até mesmo o templo e os dogmas da Igreja Maradoniana.
Para o documentarista, se o maior jogador argentino de todos os tempos tivesse escolhido outra profissão, seria a de revolucionário. Tal constatação pode ser aferida pela maneira de se comportar de El Píbe e, por que não, de expressar a diferença ao que define como imperialismo dos Estados Unidos. Num dos primeiros momentos em que conversam, Maradona mostra a tatuagem em homenagem a Fidel Castro na perna esquerda, e a de Che Guevara no braço direito. Embora possa ser questionado com quem mantém relações, demonstra ser um atleta em extinção: tem posições bem claras sobre o que acredita, o que deve aproximá-lo ainda mais do povo.
Quando é levado à casa em que cresceu, Maradona recorda memórias de sua infância jogando futebol com os irmãos e da dificuldade enfrentada pelos pais para criá-los. Para alguém considerado uma divindade, Maradona pareceu prever o que seu futuro reservava: seu grande sonho era defender a seleção argentina e conquistar a Copa do Mundo. Ainda sobre a relação com a família, chamam a atenção dois momentos em que está com seus pais: primeiro na casa em que foi criado, depois enquanto assiste uma partida de futebol.
Na Copa do Mundo de 1986, uma mão, ou como é popularmente chamado “La Mano de Dios”, transformou Dieguito em uma verdadeira entidade mítica na Argentina. O tento representou para o povo algo além da vitória esportiva. Fora o triunfo do país da América Latina sobre o imperialismo britânico, que derrotou a Argentina na Guerra das Malvinas em 1982. Hoje treinador da equipe Gimnasia y Esgrimia, Maradona destaca como a mensagem do técnico influenciou na maneira da equipe enfrentar aquele jogo. Na mesma partida, o maior jogador argentino de todos os tempos fez o Gol do Século, que parece ter inspirado um dos trechos cômicos do documentário.
O documentário traz uma animação de Maradona enfrentando os representantes do imperialismo ocidental num estádio. El Píbe aparece realizando dribles como quem brinca com a ex-Primeira-Ministra Britânica, Margaret Thatcher, a Rainha Elizabeth II, o príncipe Charles e o ex-presidente dos Estados Unidos, George W. Bush. Os trechos são uma figuração escolhida para demonstrar o jeito dele de enxergar os movimentos políticos dessas personalidades.
Emir Kusturica e sua família são fãs de Maradona. Um exemplo é a viagem à Belgrado, Capital da Sérvia, em que — além de conviver com a família do documentarista — Dieguito e o documentarista chutam bolas ao gol e trocam passes com a cabeça. Apesar disso, o documentário não esconde os pontos baixos da vida de Maradona, como a dependência química.
Gravado ao longo de dois anos, entre 2005 e 2007, a produção precisou ser interrompida por Maradona ter enfrentado problemas de saúde, chegando bem próximo da morte. Dieguito detalha que chegou a enxergar tudo escuro, conta que sentiu medo e ficou sem saber se iria sobreviver. Esta é mais uma situação na qual o argentino demonstra sua religiosidade — embora seja um deus para muitos argentinos — na medida em que associa a sobrevivência a um milagre.
Maradona tem posições políticas bem definidas, como mencionado anteriormente. O ponto alto do documentário é a relação das ideologias defendidas e a aproximação constante com aqueles cujas bandeiras se alinham com as suas. Em 2005, o ex-jogador conduziu um trem até o local no qual aconteceram os protestos anti-EUA em Mar del Plata. A manifestação tinha o objetivo de discutir a exploração imperialista americana, sendo uma oposição ao ALCA — Área de Livre-Comércio das Américas. No evento, Dieguito saudou o povo argentino presente na manifestação.
Talvez haja uma contradição neste momento do documentário. Enquanto Maradona estava com os políticos, numa posição de poder, uma parte dos manifestantes estava pelas ruas atacando bancos e comércios locais, enquanto enfrentava a repressão das forças de segurança. Como uma liderança popular, posição defendida por Kusturica, Maradona pareceu desconectado do ideário político e de ação dos demais presentes no dia de protestos.
Mesmo com um traço autoral que deixa a obra diferente do costumeiro, para quem é apaixonado por futebol e nunca viu lances dele como jogador antes, é possível ver o Gol do Século e lances de Maradona pela argentina, pelo Boca Juniors e pelo Napoli. O documentário biográfico possibilita uma imersão em quem é Diego Armando Maradona, mostrando sua relação com a política, os adeptos, a família e os erros de um ser humano considerado um deus. “Maradona, por Kusturica” é a linda declaração de alguém apaixonado e que considera El Píbe o maior jogador de futebol de todos.