Em 2016, no Brasil, em torno de 2,4 milhões de meninos e meninas no exerciam atividades caraterizadas como trabalho infantil. (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

Falta de compromisso do governo brasileiro interfere no combate ao trabalho infantil

Segundo a cientista política e assessora do FNPETI, Tânia Dornellas, falas do presidente fazem apologia à atividade ilegal

Jessica Montanha
Redação Beta
Published in
7 min readOct 16, 2020

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O trabalho infantil é uma realidade que insiste em roubar a infância de milhões de crianças todo ano. Apesar disso, no início do mês de setembro, em transmissão nas redes sociais, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) voltou a apoiar o trabalho infantil, ao comentar o episódio de um empresário de Catalão (GO) que ajudou um menino engraxate que queria presentear o pai com um relógio em razão do dia dos pais. O chefe do executivo criticou a notificação do Ministério Público do Trabalho ao empresário. “Deixa a molecada trabalhar”, disse Bolsonaro. Não é a primeira vez que o presidente defende publicamente o trabalho que envolve crianças e adolescentes.

O trabalho infantil é proibido no Brasil, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que vigora desde 1990. No país, o trabalho só é permitido para adolescentes a partir dos 16 anos, mas o ECA ainda autoriza o trabalho a partir dos 14 anos na categoria de aprendiz. No entanto, a lei nem sempre é suficiente para garantir estes termos. Com o isolamento social causado pela pandemia do novo coronavírus e o fechamento das escolas, o risco do trabalho infantil aumenta, uma vez que as famílias buscam outras formas de rentabilidade.

A falta de dados oficiais é outro fator agravante. Em julho deste ano, o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), pediu em nota pública a imediata divulgação dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), referentes ao trabalho infantil no Brasil dos anos de 2017 e 2018 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Os dados publicados em 2017 pelo IBGE, com base na PNAD, revelam que, no ano anterior, 2,4 milhões de meninos e meninas de 5 a 17 anos exerciam atividades proibidas pela legislação, caracterizando o trabalho infantil. Destes, aproximadamente 151 mil crianças e adolescentes estavam nesta condição no estado do Rio Grande do Sul. Para falar da situação atual e futura sobre o combate ao trabalho infantil no país, conversamos com Tânia Dornellas, cientista política e assessora do FNPETI.

A Organização das Nações Unidas (ONU) declarou 2021 como o Ano Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil. Quais as ações ou de que forma a gestão atual do governo federal apoia a luta global contra o trabalho infantil?

A gestão atual do governo federal do Brasil não está comprometida com o combate ao trabalho infantil e, ao contrário, deixa evidente nas reiteradas falas do presidente a apologia ao trabalho infantil. Não há comprometimento com os compromissos assumidos nacionalmente e com as convenções ratificadas internacionalmente sobre o tema.

Quais foram os últimos avanços e os maiores desafios na erradicação do trabalho infantil no país?

A redução do trabalho infantil no período de 1992 a 2015 (65,6%) foi resultado de um conjunto de iniciativas tais como: a definição da idade mínima de 16 anos para ingresso no mercado de trabalho, ratificação da Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho que dispõe sobre a idade mínima para o trabalho, a criação da Lei da Aprendizagem Profissional que garante a proteção do adolescente trabalhador e a formação profissional, a ratificação da Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho, a realização de ações eficazes de fiscalização do trabalho infantil pela Subsecretaria de Inspeção do Trabalho, a realização de ações eficazes do Ministério Público do Trabalho para o enfrentamento ao trabalho infantil, a incidência política da sociedade civil no Congresso, no Executivo e no Judiciário e o controle social das ações e programas governamentais destinados à prevenção e ao enfrentamento do trabalho infantil.

É possível perceber que o combate ao trabalho infantil é multidimensional e envolve diferentes instituições e atores políticos. Ações integradas e articuladas são fundamentais para que crianças e adolescentes tenham direito a uma infância sem trabalho. Infelizmente, na atualidade, os desafios são imensos. Nos últimos anos, houve um acentuado retrocesso no combate ao trabalho infantil no Brasil. O desmonte das políticas públicas de educação, saúde e assistência social tiveram impactos diretos no combate ao trabalho infantil.

Os cortes orçamentários, acentuados com a Emenda Constitucional 95 afetaram praticamente todas as ações do Estado brasileiro para o enfrentamento ao trabalho infantil e por fim, temos a pandemia. As desigualdades, que já eram intensa, serão acirradas. E com mais desigualdade, a tendência é termos desafios maiores em todas as áreas do desenvolvimento, como saúde, educação, trabalho e renda, lacunas de gênero, segurança alimentar, meio ambiente e crescimento econômico. Também é esperado um aumento também maior do desemprego, o que por sua vez provocará uma deterioração importante nos níveis de pobreza e desigualdade. A queda de 9,1% do PIB regional e o aumento do desemprego terão um efeito negativo direto sobre a renda familiar e sua possibilidade de contar com recursos suficientes para atender às necessidades básicas.

Vale lembrar que o enfrentamento ao trabalho infantil está diretamente ligado a problemas estruturais da sociedade brasileira como a pobreza, o desemprego, a concentração de renda, o racismo e a exclusão escolar. Questões sociais que se amplificam na conjuntura atual. A baixa efetividade e alcance das políticas públicas de educação, saúde, proteção social, cultura, esporte e de lazer comprometem a prevenção e erradicação do trabalho infantil e a proteção ao adolescente trabalhador.

O cenário é aterrador, entretanto, é possível, se houver vontade política e trabalho em rede, sairmos dele. No caso do trabalho infantil deve-se garantir com urgência o cumprimento efetivo da legislação vigente cumprimento efetivo da legislação vigente de proteção integral das crianças e adolescentes, de proibição do trabalho infantil; o direito à formação profissional do adolescente; a adoção de novas ações e programas governamentais e da sociedade civil priorizando recortes de faixa etária, gênero, cor, local de residência, renda familiar e escolaridade de crianças e adolescentes; o investimento em políticas públicas de proteção, promoção e garantia dos direitos da infância; o do Sistema de Garantia de Direitos com o enfrentamento ao trabalho infantil; a adoção de medidas eficazes para o cumprimento da meta 8.7 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) de eliminar todas as formas de trabalho infantil até 2025; a sensibilização e comprometimento de governos, trabalhadores, empregadores, sistema de justiça, organizações da sociedade civil, organismos internacionais e parceiros estratégicos para a eliminação de todas as formas de trabalho infantil até 2025.

A falta de divulgação de dados oficiais referente ao trabalho infantil no Brasil prejudica a erradicação deste problema?

A ausência de dados sobre o trabalho infantil no Brasil impacta negativamente na elaboração e implementação de políticas públicas, na transparência, no controle social e contraria o disposto no artigo 5º da Constituição Federal de 1988 e na Lei de Acesso à Informação (LAI — Lei no 12.527/2011) em vigência.

Todas as informações produzidas pelo poder público são públicas. É importante destacar que o acesso à informação é exceção conforme previsto no artigo 3º da LAI, entretanto, no atual governo, a não disponibilização ou a falta de transparência tem sido a regra.

O direito à informação é um fundamento democrático e está garantido no artigo 5º da Constituição Federal de 1988. A não divulgação dos dados sobre trabalho infantil além de violar este artigo e um exemplo concreto da falta de compromisso do governo brasileiro com o melhor interesse da criança e a proteção integral.

Como a pandemia de Covid-19 afeta os direitos das crianças e adolescentes?

O trabalho infantil é um tema complexo e assim deve ser tratado. Com a pandemia, todos as dimensões do nosso futuro já estão sendo afetadas (econômica, social, política, cultural) e os impactos na vida das crianças e adolescentes serão sentidos a curto, médio e longo prazo. É urgente uma resposta coordenada, articulada e abrangente por parte do governo brasileiro para que milhares de famílias vulneráveis consigam lidar com as consequências da pandemia.

Com relação à violação dos direitos humanos de crianças e adolescentes, especialmente o combate ao trabalho infantil, é muito injusto colocar nas costas de crianças e adolescentes a responsabilidade da comida na mesa. E o Estado? Por que ele não garante por meio de políticas públicas as condições para que as famílias possam ter trabalho decente e possam garantir a suas filhas e filhos a educação, para que, no futuro, possam ter as condições necessárias para poder entrar no mercado de trabalho em pé de igualdade com as crianças e adolescentes das famílias ricas? Reduzindo, assim, a desigualdade social e promovendo uma sociedade mais justa?

Por fim, é fundamental e estratégico que sejam garantidas as condições necessárias para a implementação imediata da Agenda 2030, como o acesso à água e a saneamento básico e a universalização dos serviços de saúde. A Agenda 2030, com seus 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, foi o plano elaborado pelos 193 países-membros das Nações Unidas para a construção de um mundo mais justo e sustentável, que não deixe ninguém para trás. Quando este plano foi acordado pelos países em 2015, o Brasil teve intensa liderança, os países tinham consciência de que estavam discutindo os desafios mais urgentes enfrentados pela humanidade. Esses países aprovaram a Agenda 2030 com a certeza de que avançar no cumprimento dos 17 ODS era o caminho mais curto, justo e seguro para a superação desses desafios.

Nem sempre o trabalho infantil é detectado pelas autoridades. Portanto, ao presenciar uma situação de trabalho infantil, você pode fazer uma denúncia. A ligação para o Disque 100 é uma das formas de denunciar. As ligações podem ser feitas de todo o Brasil, gratuitamente, de qualquer telefone fixo ou celular. O serviço está disponível diariamente, 24 horas por dia, incluindo sábados, domingos e feriados. Também a denúncia pode ser realizada ao Conselho Tutelar de sua cidade, à Delegacia Regional do Trabalho mais perto de sua casa, às secretarias de Assistência Social ou diretamente ao Ministério Público do Trabalho.

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