Imagem oficial do filme. ( Victor Jucá/CinemaScópio Produções)

CRÍTICA: Sonidos que contam uma história

O filme “O Som ao Redor”, de Kleber Mendonça Filho, utiliza o desenho de som para compor seu enredo

Maria Júlia Pozzobon
Redação Beta
Published in
4 min readNov 20, 2019

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Pôster promocional do filme. (Divulgação)

Uma sequência de fotos em preto e branco de famílias que trabalhavam em lavouras vão sendo passadas lentamente, ao som de batidas de tambores. É desse modo que se inicia o longa-metragem O Som ao Redor, que conta a história dos moradores de um antigo prédio de Recife que decidem contratar seguranças para vigiar a vizinhança.

Depois das fotos, a cena seguinte representa o tempo presente. A narrativa, que aborda diversos temas da atualidade, como a especulação imobiliária, a violência urbana e a luta de classe, é composta pela história dos moradores de uma rua de classe média. Entre os personagens principais, estão Clodoaldo, o líder dos vigilantes; Seu Francisco, que conseguiu fazer os negócios crescerem no ramo imobiliário; e a família de Bia, uma mãe que passa por diversas situações de conflito com seus filhos e vizinhos.

Ao longo do filme, identificamos que as fotos do início representam o passado de Francisco, que morava no sertão. Logo no início, a passagem de fotos permite que o espectador se concentre nas imagens e possa refletir sobre as relações de poder. Apesar de Francisco estar morando na cidade grande, muito diferente da realidade do Brasil colonial, ele mantém sua figura de autoridade, de coronel. Isso o coloca em um confronto com os novos vigias, o que provoca uma reviravolta no filme.

Mas o que se destaca na obra é a exploração do som. Percebe-se que, desde o início, toda cena é marcada por um som que traz sentido para o momento, interligando e intensificando a relação de todos os personagens da história.

Em diversos momentos, é possível escutar barulhos externos, reproduzidos pelos alto-falantes dos vigias, que se sobrepõem às cenas do ambiente interno. Exemplo disso é a cena no início do filme, em que aparece uma criança andando de roller no pátio do prédio. Devido ao desenho de som, conseguimos identificar ruídos de falas e, mesmo ainda não aparecendo em imagem, já imaginamos várias pessoas que irão surgir na cena.

Essa técnica de dessincronia entre som e imagem aparece em vários momentos e é desta forma que se revelam algumas críticas e posicionamentos do filme. A relação de patrão e empregado é um tema recorrente na obra. Podemos usar como exemplo a cena dos seguranças particulares conversando com seu Francisco, na área de serviço do apartamento.

Neste ambiente, o ruído de vizinhos e barulhos de elevador torna-se o centro da cena. Por meio do desconforto acústico, conseguimos perceber o quanto o local destinado à empregada doméstica é incômodo.

O diretor se vale dos sons da cidade e do barulho de obras para apresentar sensações tensas ou cômicas. Por exemplo, temos o cachorro do vizinho de Bia, que late sem parar. O destaque para o latido do cachorro é tão grande que causa desconforto a quem está assistindo o filme. Isso também acontece com os barulhos que os vigilantes usam para garantir a segurança do bairro.

Além de sons altos para expressar sentidos, o som de objetos comuns aparece em destaque. Em vários momentos, o silêncio também é empregado na narrativa. Um exemplo disso é quando surgem letreiros e, logo após a entrada deles em cena, começamos a ouvir apenas o som de um líquido sendo jogado em um recipiente.

A sequência final é forte e intrigante. Em uma tentativa de calar o barulho da vizinhança, os seguranças pegam um elevador para conversar com Francisco com sons que indicam tensão. No diálogo entre os três, o passado quase esquecido volta à tona, dando sentido às fotos da sequência inicial. Um silêncio começa a reinar no apartamento.

Esse tipo de obra cinematográfica promove a importância dos efeitos sonoros que muitas vezes passam despercebidos pelos espectadores que, em geral, colocam sua atenção nos acontecimentos e nos diálogos de cada cena.

Ao não apresentar uma trilha sonora e retratar a vida de uma forma simples, sem grandes efeitos visuais, roteiro elaborado ou ações, O Som ao Redor nos convida a ter um outro tipo de experiência, de contemplar, refletir e prestar atenção no barulho natural das coisas.

Tudo isso contribui para o filme ser inteligente, sem precisar de grandes investimentos, técnicas visuais ou grandes produções. Todos os sons apresentados são pensados para a construção da história e não ocorrem a toa.

Acredito que o filme seja tão interessante, porque conseguimos perceber em seu decorrer que, por trás do tema principal, diversos assuntos são relevantes. Fica nítido que a vida de um personagem específico do condomínio não é o foco, mas sim a rotina de toda a vizinhança, e o retrato de como funciona o Brasil e suas complicadas relações de convivência com a redondeza.

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