Comunidade assume a gestão de hospital em Taquari
Iniciativa popular também beneficia o hospital Centenário, em São Leopoldo
Carência de médicos e equipamentos. Insuficiência de atendimentos e redução na capacidade operacional. Problemas que ocorrem em cidades de todo o Brasil devido à crise financeira que envolve os serviços de saúde do país. Com apenas 3,4% do orçamento federal destinado para a área no ano passado e perda de 23 mil leitos em 10 anos, segundo a Confederação Nacional dos Municípios, os hospitais têm cada vez mais dificuldades para se manter em funcionamento, especialmente os públicos. Os dados negativos têm obrigado municípios e comunidades a adotar soluções criativas por meio de engajamento popular.
Em Taquari, o Hospital São José foi a primeira instituição do gênero em todo o Vale do Taquari. Fundado há 69 anos, o local que já foi modelo para mais de 30 cidades na região teve sua capacidade de operação reduzida para menos de cem leitos. Perdeu também a referência para atendimentos especializados, como otorrinolaringologia, cirurgia vascular e traumato-ortopedia, além de outros procedimentos e a realização de partos, por exemplo. Atrasos de salários também foram constantes entre 2016 e 2018.
A situação, que se agravou nos últimos anos, não foi solucionada pelas entidades mantenedoras do hospital, o que obrigou comunidade e Prefeitura a buscar alternativas. O Instituto Saúde Educação Vida (Isev) geriu a instituição de 2009 até maio de 2018, quando teve o contrato rescindido por não conseguir garantir a prestação dos serviços no hospital. Foi substituído pelo Instituto Núcleo de Apoio às Políticas Públicas (Inapp), que ficou apenas seis meses na gestão.
Crise gera busca por mudanças
A alternativa foi implementar uma gestão pública com participação popular. Desde novembro de 2018, uma equipe formada por dez voluntários tem feito a gestão administrativa do hospital. O modelo de gestão adotado no Hospital São José segue o mesmo modelo implantado no município de Feliz e executado no Hospital Schlatter.
A iniciativa consiste em uma associação sem fins lucrativos, na qual o Conselho Administrativo, composto por dez membros, possui cinco deles indicados pelo Poder Executivo; e cinco deles escolhidos entre pessoas da comunidade. Dentre os membros do Conselho Administrativo forma-se a Diretoria (Presidente, Vice, Secretário e Tesoureiro); então a Associação é administrada pela Diretoria, que executa as decisões emanadas do Conselho.
O presidente da Associação Taquariense de Saúde (ATS), Gilberto Herrmann, frisa que a possibilidade de ficar sem o hospital mexeu com a comunidade. “É inconcebível que a cidade não disponha mais de hospital. Este é o motivo do engajamento da comunidade no projeto e o comprometimento das pessoas de manter a funcionalidade da única instituição local”, aponta. “O projeto está engatinhando, mas tem se mostrado eficaz a longo prazo; obras estão sendo executadas no hospital para a melhoria dos serviços”, explica. Ainda hoje, os números de atendimentos e de leitos oferecidos não aumentaram, mas a percepção popular acerca da instituição já melhorou, segundo o presidente.
Conforme a assessora jurídica da Prefeitura e conselheira da ATS, Etiene Marques, a fórmula foi encontrada após muitas visitas a municípios do Estado. “Vários exemplos de gestão de saúde foram conhecidos, de modo que — ao que parece — o que mais surtiu efeitos práticos é a gestão executada por Associação composta por membros do Poder Público mais comunidade”, salienta. Com a implementação do modelo, a Prefeitura destaca que é possível um trabalho mais transparente na administração do hospital. A ATS controla também uma equipe técnica. São funcionários da associação, como enfermeiros, técnicos e médicos que ficam dentro do hospital executando as atividades.
Comunidade em ação
O empresário Adelso Costa, morador de Taquari, se envolveu com a associação desde o princípio da ideia. O receio de ver o hospital fechar foi um dos pontos abordados por ele. Ouça o depoimento abaixo:
O técnico em eletrônica aposentado, Armin Aurich, que também faz parte da ATS como representante da população taquariense, falou a respeito da situação do hospital antes da nova gestão. Ele critica as antigas entidades mantenedoras e salienta a dificuldade e os aprendizados que o trabalho na instituição tem proporcionado.
Antes disso, o município já havia feito campanhas de levantamento de fundos para aliviar as dívidas da instituição. Em 2017, com o risco de o hospital ficar sem dinheiro para pagar a conta de luz, a Prefeitura criou a campanha “Doe Energia”. Através dela, a população tinha opção de fazer doações diretamente nos boletos da concessionária. Bastava preencher uma ficha de inscrição e sinalizar o valor a ser doado. Apesar de não ter sido suficiente, a iniciativa engajou boa parte dos moradores a dar mais atenção ao hospital, o que abriu as portas para a criação da ATS.
Situação em São Leopoldo alerta moradores e servidores
Iniciativa semelhante acontece com o Hospital Centenário, de 88 anos, em São Leopoldo. A campanha “Esperança Inspira, Ação Transforma” surgiu após a direção da entidade determinar a necessidade do desenvolvimento de ações que envolvessem instituições da sociedade civil, empresas, comércio e a população da cidade, em benefício do hospital. A partir desta decisão, a Unisinos se somou para desenvolver a campanha, lançada em dezembro de 2018.
Assim como no caso de Taquari, o hospital do município da região metropolitana sofreu cortes de verba nos últimos anos. Atendimentos como a neurologia e neurocirurgia foram suspensos há mais de um ano. Apesar do engajamento e das doações da comunidade, principalmente por meio das conta d’água da população e do cadastro na Nota Fiscal Gaúcha como entidade beneficiada, a situação ainda não melhorou. Na última semana, a Prefeitura anunciou mais cortes nas vagas na UTI adulto e neonatal.
Conforme a equipe da instituição, ainda há necessidade de angariar mais fundos para melhorar o orçamento. A Fundação Hospital Centenário, administradora da entidade, acumula uma dívida de cerca de 30 milhões de reais e um déficit mensal que chega a 6 milhões. O principal problema, destaca, é o baixo repasse estadual para manutenção do Centenário. Hoje, ele recebe, por meio do Piratini, a quantia mensal de 235 mil para atender a mais de um milhão de pessoas. Apesar da entidade ser bem maior que a de Taquari e assistir um número muito superior de pessoas, o problema parece mais grave a longo prazo devido ao tamanho do déficit mensal que se acumula.
Como mostram ambos os casos, os recursos públicos não têm sido suficientes para garantir o funcionamento dos serviços de saúde no país, especialmente em localidades menores. O engajamento popular, junto com medidas de gestão e transparência, aparece como uma possível solução, ainda que com dificuldades, para a crítica redução de assistência médica no Brasil.