Doação de órgãos: Aumentar a cultura da doação ainda é desafio no país

Pandemia contribuiu para a diminuição dos transplantes em 2020, mas retomada ainda esbarra na negativa familiar

Grégori Soranso
Redação Beta
5 min readOct 19, 2020

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Ações da campanha pela doação de órgãos são realizadas em partidas de futebol. (Foto: Rochelle Benites/Arquivo pessoal)

Skatista e mãe de três filhos, a porto-alegrense Rochelle Benites levava uma vida normal até os 36 anos de idade, com uma rotina agitada e de muito envolvimento com o esporte. Além do skate, praticava surfe e jogava futebol, mas no ano de 2014 percebeu que o corpo começou a dar sinais de que algo não estava bem. “Passei a cansar muito jogando futsal, mas inicialmente não dei importância. Quando me dei conta, já estava em um estágio crítico”, relembra.

Diagnosticada com fibrose pulmonar, Rochelle, hoje com 43 anos, é uma das mais de 46 mil pessoas na fila de espera por um transplante no Brasil, de acordo com o Ministério da Saúde. Com a pandemia, além dos conhecidos efeitos na economia e na vida da população em geral, as taxas de doação de órgãos e transplantes diminuíram no mundo inteiro, impactando diretamente no tempo de espera dos pacientes que aguardam por um doador compatível.

Fonte: Relatórios anuais da Central de Transplantes do RS (Crédito: Grégori Soranso/Beta Redação)

No Rio Grande do Sul, dados da Central de Transplantes demonstram queda de 39% nos procedimentos entre janeiro e julho deste ano, em comparação com o mesmo período de 2019. Em meados de março, o estado precisou reduzir o número de operações para direcionar os esforços no combate à Covid-19. Enquanto em janeiro foram realizados 72 transplantes de órgãos, em julho somente 19 foram feitos.

Desde agosto, com a estabilização da ocupação dos leitos hospitalares reservados para pacientes contaminados pelo coronavírus, os transplantes estão sendo retomados gradativamente.

Conscientização para salvar vidas

Superado o impacto inicial de encarar uma rotina cheia de restrições impostas pela doença, Rochelle observou que outras pessoas em situação semelhante a sua viviam um processo de invisibilidade. Para mudar este cenário, começou a publicar vídeos nas redes sociais estimulando o debate sobre o assunto, dando origem ao Projeto Vida em Jogo.

Depoimento integra campanha realizada pelo Hospital Santa Casa, em 2018. (Reprodução: Youtube)

Com o apoio de profissionais da saúde, universidades e demais interessados no tema, a rede de voluntários vêm articulando uma série de ações visando o desenvolvimento de políticas públicas em torno da doação de órgãos, assim como a promoção de uma cultura doadora. “O teu sim pode salvar a minha vida”, enfatiza Rochelle. Apenas um doador é capaz de beneficiar até oito pessoas, ou melhorar a qualidade de vida de mais de 20.

Embora a capital gaúcha seja uma referência quando se trata desse tipo de cirurgia, com quatro hospitais transplantadores habilitados, mais de 40% das famílias de possíveis doadores ainda dizem não para a doação de órgãos e tecidos, segundo a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO). “Isso acontece principalmente pela falta de informação. A legislação brasileira não permite que a pessoa deixe algo por escrito autorizando a doação. Somente a família pode tomar essa decisão e, quando essa conversa não ocorre antes, a família fica em dúvida”, afirma Fernanda Estrella, enfermeira do Hospital Centenário.

Fernanda é presidente da Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Transplantes (CIHDOT) na instituição leopoldense, cuja principal missão é promover a captação de órgãos que são enviados aos hospitais de referência. Ela destaca que há muito desconhecimento por parte da sociedade no que diz respeito a morte encefálica, único caso em que é possível ocorrer a doação após a morte e que representa aproximadamente 1% do total dos óbitos em hospitais.

“O diagnóstico da morte encefálica é extremamente criterioso. Uma série de itens são avaliados até a abertura do protocolo, quando dois médicos precisam atestar clinicamente a situação do paciente. Além desta avaliação, é necessário um exame de imagem para verificação do fluxo cerebral, e apenas depois de todos esses procedimentos se conclui que um caso é de fato irreversível”, explica Fernanda.

Parte da equipe da CIHDOT do Hospital Centenário, de São Leopoldo. (Foto: Fernanda Estrella/Arquivo pessoal)

A coleta dos órgãos, no entanto, só ocorre com o consentimento da família. Por isso a importância de se abordar o assunto nos círculos familiares. “Todo mundo que quer ser doador deve ter essa conversa em casa. Infelizmente, nunca se sabe o que pode acontecer com cada um de nós. Mas, às vezes, ajuda a superar uma fatalidade quando se sabe que outras vidas podem ser salvas”, salienta Fernanda.

Vida nova depois do transplante

Morador de São Leopoldo, Ireneo Antonio Massoco, de 63 anos, comemorou no mês de julho cinco anos como transplantado. Portador de uma doença renal genética que afetou outros cinco irmãos (três fizeram transplante; uma já é falecida e outro está em fila de espera), desde que obteve o diagnóstico, Ireneo viveu por mais de 20 anos ciente da possibilidade de que o transplante seria necessário em algum momento.

Ireneo saiu da fila de espera em 2015. (Foto: Ireneo Massoco/Arquivo pessoal)

Após quase quatro anos em tratamento com hemodiálise, Ireneo recebeu o rim que lhe devolveu a qualidade de vida. “Não posso dizer que voltei a vida que tinha antes, porque os cuidados e a medicação precisam ser tomados sempre. Mas a melhora que tive em relação ao período anterior à cirurgia é de pelo menos 70%. A hemodiálise deteriora muito a saúde da gente”, revela.

Ainda que os rins estejam entre os órgãos que podem ser doados em vida, assim como partes do fígado, da medula óssea e dos pulmões, a taxa desse tipo de procedimento é baixa, devido aos critérios de compatibilidade entre os indivíduos. Pela Lei 9.434/1997, parentes até o quarto grau e cônjuges podem ser doadores. Outras pessoas, só com autorização judicial. Mas os doadores falecidos ainda constituem a grande maioria, conforme informações do Ministério da Saúde.

Liga Acadêmica de Transplantes de Órgãos

No mês de setembro, alunos do curso de Medicina da Unisinos fizeram o lançamento da Liga Acadêmica de Transplante de Órgãos (Latos). Sob coordenação e orientação dos professores Spencer Marcantônio Camargo e Patrícia Campos Bianco, a liga possui diretoria própria e recentemente selecionou 30 integrantes de diferentes cursos da área da saúde da universidade.

“Costumamos dizer que a Latos tem dois objetivos. O primeiro diz respeito ao repertório teórico-científico de conhecimentos acerca de procedimentos que envolvem essa temática, e é mais restrito aos participantes. E o segundo é a questão da conscientização, que é um pilar a ser promovido para toda a comunidade”, explica o aluno e presidente Henrique Severo.

A primeira atividade contou com a participação de Rochelle Benites, que levou o relato de sua experiência ao conhecimento dos estudantes durante aula inaugural. A iniciativa é mais uma esperança para as pessoas que, assim como ela, esperam pela oportunidade de retomar a vida normal a partir do recebimento de um órgão.

Questionada sobre o que gostaria de fazer após ser transplantada, Rochelle refere que poder limpar a casa sem precisar da ajuda de ninguém é uma de suas maiores vontades. “E ir a praia”, completa. Outras informações sobre o tema podem ser acessadas no site da Secretaria Estadual de Saúde, disponível neste link.

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