Convivência entre humanos e animais traz benefícios para a saúde mental

Antropólogo e tutores explicam de que forma a companhia dos pets pode dar sentido e ritmo à vida contemporânea

Lucas Girardi Ott
Redação Beta
8 min readSep 16, 2020

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Embora a chamada cultura pet seja bastante atual, a relação familiar entre homens e animais é muito antiga e necessária. (Foto: Andrew Zverev/Flickr)

A relação entre homem e animais domésticos remonta há aproximadamente 15 mil anos, quando lobos e seres humanos começaram a conviver lado a lado no sudoeste da Ásia, China e América do Norte. Desde então, os animais tiveram um grande papel nas mais variadas sociedades e culturas, tornando-se parte integrante da sobrevivência, da história e da nossa própria identidade.

O Brasil contabiliza, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 139,3 milhões de animais de estimação, número quase quatro vezes maior do que os 35,5 milhões de crianças de até 12 anos que vivem no país. Este número confirma o fato de que as novas famílias estão tendo cada vez tendo menos filhos e cada vez mais buscando nos pets uma fonte de companhia e afeto. Entre os millennials (pessoas que nasceram entre 1980 e 1990), a tendência é ainda mais forte.

Cães e aves são os animais mais presentes nos lares brasileiros. (Fonte: IBGE. Arte: Lucas Ott/Beta Redação)

O casal Amanda da Cunha Figueira, de 30 anos, e Ricardo Müller, 32, reforçam essa estatística. Atualmente, são tutores de cinco cães e dois gatos e não pensam em ter filhos. “Não queremos por muitas razões, mas uma das principais é que a preservação da natureza deve ser a nossa prioridade, não colocando mais gente num planeta já exaurido”, justifica Amanda. Eles contam que o forte laço com os animais de estimação vêm de família, pois ambos convivem com animais desde a infância. “Ao longo da vida já tive mais de 50 cães e uns 30 gatos. Inclusive, minha mãe foi a primeira mulher a mover um processo contra maus tratos a animais na cidade de Parobé, no começo dos anos 90, e o mais importante: ganhou!”, lembra Ricardo.

Amanda e Ricardo dividem a casa com cinco cães e dois gatos. (Foto: Amanda Figueira/Arquivo Pessoal)

Para Caetano Sordi, mestre e doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista na área de relações entre humanos e animais, a preferência por animais de estimação ante a ideia de ter filhos tem como pano de fundo as transformações mais gerais vividas pela sociedade nas últimas décadas. Entre elas, a urbanização vinculada ao processo de modernização socioeconômica, a revolução sexual dos anos 1960 e 1970 e a integração da mulher ao mercado de trabalho. “Num plano moral e comportamental, essas mudanças vieram acompanhadas de uma visão de mundo que enfatiza a realização pessoal e o foco no indivíduo, mais do que a perpetuação da linhagem e outros valores que contribuíam para a existência de famílias numerosas no passado”, expõe o especialista.

Segundo o antropólogo, o movimento da sociedade rural para a vida urbana também é um fator determinante na percepção emocional e no estreitamento dos laços afetivos entre humanos e animais de estimação. “Nos anos de 1930, mais de dois terços da população brasileira viviam na zona rural. Na virada do século, a taxa de urbanização já havia atingido 80% da população. No mundo rural tradicional, a figura do animal doméstico é muito identificada com a do animal de trabalho ou de produção. Embora as pessoas desenvolvam vínculos morais e de afeto muito complexos com estes bichos, certas hierarquias, sobretudo espaciais, ainda são mantidas”, acrescenta.

Além disso, Caetano também elenca que o fato dos habitantes da zona rural testemunharem com mais frequência eventos que se tornaram tabus para a população urbana, como o abate, faz com que a relação com a morte dos animais se dê em um registro moral diferenciado. “A ideia do animal por pura estimação — isto é, cuja coabitação com o ser humano acontece apenas como a intenção de ser uma companhia, um objeto de amor e cuidado — é algo mais estranho para o mundo moral rural tradicional”, expõe.

A afirmação de Caetano é observável no comportamento de Amanda, pois ela considera que a ideia “cachorro tem que ficar no pátio” está ficando pra trás, não apenas por causa das gerações mais jovens, mas pelo fato de que as pessoas estão tendo uma maior compreensão de que os animais também são seres que amam e possuem sentimentos. “Nossos pais e avós também estão trazendo os bichinhos para dentro de casa. É muito comum conhecermos alguém que fala que o pai não aceitava cachorro dentro de casa, e agora esse mesmo pai dorme com o cachorro na cama”, aponta. O namorado Ricardo segue na mesma linha: “sempre tivemos gatos dentro de casa e cachorros no pátio, mas comendo comida e sem vacinas…hoje temos uma compreensão muito maior da importância de uma ração de qualidade, da vacinação feita em clínicas e da importância da castração e do acompanhamento veterinário na vida de um animal”, conclui.

Benefícios para a saúde mental

Já são comprovados os efeitos positivos da presença de animais de estimação para a nossa saúde mental, incluindo diversos tratamentos terapêuticos que utilizam os bichos como instrumento para ajudar na recuperação emocional das pessoas, desde as visitas de cães em lares de idosos até a equoterapia, que utiliza cavalos para o desenvolvimento físico, psicológico e social de pessoas com deficiências físicas. Segundo estudo realizado por psiquiatras da Clínica Médico-Psiquiátrica da Ordem, em Porto (Portugal), adotar um pet pode amenizar o sofrimento de pacientes com tipos de depressão que não respondem aos tratamentos convencionais.

“Tive dois cães que me tiraram da depressão. Foi uma bad terrível que tive e, quando eles entraram na minha vida, mudaram totalmente minha rotina”, conta Ricardo. A gratidão do morador de Canoas aos bichos foi além: durante cinco anos trabalhou com associações de proteção animal e veterinários, tendo resgatado mais de 200 animais. Dentre todos, destaca o resgate da cachorra Ju: “Corri atrás dela por uns 500 metros numa avenida no centro da cidade, com uma caixa nas costas, encurralei ela num canto e, quando consegui agarrá-la, ela mordeu meus braços. Isso foi há seis anos e ela está comigo até hoje”, lembra.

Ricardo e a cachorra Ju (Foto: Ricardo Müller/Arquivo pessoal)

“O Bento chegou em um momento que eu estava muito mal e me ajudou demais”, afirma a graduanda em ciências biológicas Allana Piu, 25 anos, sobre o seu chihuahua de cerca de três anos, adotado na metade do ano passado. Resgatado por uma ONG, Bento vivia em um canil que servia de matriz para reprodução e venda dos filhotes. “Na época eu não estava fazendo terapia e ele foi essencial na minha recuperação. Sempre penso que chegou na hora certa, quase que destino. Ter um animalzinho pra cuidar me fez ter um motivo para levantar da cama nos dias difíceis. Ver o Bento pedindo atenção amolecia meu coração e tornou tudo mais leve. Sou eternamente grata por ter encontrado ele. Um ajudou o outro”, diz.

O apreço da jovem pelos animais, inclusive, teve um grande peso na decisão de qual carreira seguir. “Tive muitos animais de estimação, mas eram quase sempre hamsters ou ratos. Como moro em apartamento, minha mãe não permitia ter cães ou gatos. Quando tinha 14 anos ganhei uma tartaruga, a Dora. Ela continua linda, grande e alegrando minha vida até hoje. Eu sempre tive o sonho de morar em uma casa grande e ter muitos animais. Acho que esse meu amor pelos bichos aflorou sim a vontade de cursar biologia e estudar mais sobre todas essas formas de vida”, destaca.

Allana e o chihuahua Bento (Foto: Allana Piu/Acervo pessoal)

O antropólogo Caetano Sordi explica que o individualismo contemporâneo pode conduzir à solidão, à falta de sociabilidade e à necessidade de companhia como forma de dar sentido e ritmo ao cotidiano — e o aumento de adoções e aquisições de pets na quarentena pode ser uma prova disso. Não por acaso, a linguagem empregada para se referir aos animais de companhia é cada vez mais assentada em uma gramática do parentesco: filhotes como filhos, “mãe” e “pai de pet”, etc. “Deste modo, muitas vezes o pet aparece como uma resposta a essa necessidade de vínculo, operando um papel intermediário entre nenhum comprometimento existencial com o cuidado de um ser, por um lado, e a gravidade de se ter um filho e prepará-lo para a vida adulta, de outro”, pontua.

Críticas a "cultura pet"

Mas a chamada “cultura pet” também tem os seus críticos, em sua grande parte ligados aos setores religiosos. Um conhecido pastor brasileiro chegou a afirmar que o "veganismo moderno" e a "revolução pet" são um novo tipo de paganismo. “Nessa crítica à cultura pet, vejo uma mistura de humanismo residual cristão. Como dizem, ‘hoje em dia, o animal vale mais do que o nosso próximo’, fazendo uma crítica ao consumismo e traços de animalismo. Por ‘animalismo’, entende-se o conjunto de teorias éticas recentes — abolicionismo animal, libertação animal, entre outras, que atribuem ao animal o estatuto de sujeito de direitos”, aponta Caetano.

“Como antropólogo, vejo tanto a cultura pet, quanto a sua crítica, como parte de um contexto maior, que o historiador norte-americano Richard Bulliet chama de ‘pós-domesticação’”, resume o acadêmico. De acordo Richard Bulliet, as sociedades industriais vivem um paradoxo na sua relação com a animalidade: ao mesmo tempo que a exploração dos animais de produção e o consumo de produtos de origem animal, como carne e laticínios, atingem níveis máximos históricos, ocorre, também, o fenômeno da hipersubjetificação dos animais de companhia.

Porém, essa dicotomia não é recente e exclusiva dos povos ocidentais. Caetano explica que, entre alguns povos indígenas da Amazônia, ocorre um fenômeno chamado “xerimbabo” — que nas línguas do tronco tupi significa algo como “coisa querida”. “Tratam-se de filhotes de animais silvestres criados nas aldeias, próximos das famílias, de maneira muito semelhante aos animais de companhia ocidentais. Muitas vezes, são exemplares das próprias espécies que os indígenas caçam por motivos alimentares, de maneira que alguns etnólogos interpretam o fenômeno como a contrapartida indígena à nossa má consciência domesticatória”, revela.

O desenho “Animal e homem na Índia” já mostrava, em 1837, a relação popular dos bichos com as pessoas (Ilustração: John Lockwood Kipling/Medical Heritage Library)

Caetano acredita que, em certo sentido, a cultura pet pode ser considerada como um nicho da nossa sociedade que reconhece a vida interior dos animais. “Caso contrário, eles não seriam percebidos como sujeitos de um afeto infinito. Por outro lado, muitas vezes, donos e cuidadores lidam com essa vida interna de seus pets em uma dinâmica de projeção psicológica, que retoma o antropocentrismo congênito da civilização ocidental. A vida interna de um cachorro ou um gato é muito diferente da vida interna de um ser humano. Isso deve ser compreendido e respeitado”, finaliza.

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