Cooperativas e coletivos de plataforma: novas possibilidades para o trabalho plataformizado

Entre obstáculos, a força feminina de bike messengers abre caminho para uma economia mais justa e democrática

Mariana Necchi
Redação Beta
7 min readOct 13, 2021

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Mulheres ciclo-entregadoras se potencializam nas cooperativas e coletivos para exercer a profissão. (Foto: Mart Productions / Pexels)

Com uma tela e botões, softwares detêm modelos de oferta e demanda em setores do mercado econômico — e essa é uma das principais transformações no mundo do trabalho mediado pela tecnologia de plataformas digitais. Segundo o último relatório da World Employment and Social Outlook da International Labour Organization, o trabalho por plataformas digitais quintuplicou em todo o mundo na última década.

Na perspectiva brasileira, um levantamento do Instituto Locomotiva mostrou um aumento de 11,4 milhões de pessoas que recorrem aos aplicativos para garantir parte ou a totalidade da renda mensal — com isso, sobe para 32,4 milhões de pessoas que usam a mediação de plataformas no país; o que corresponde a 20% da força trabalhista nacional.

A configuração de gig economy, popularmente conhecida pelos termos plataformização ou uberização, criou rupturas nas dinâmicas de negócios: se por um lado oferecem conveniências aos trabalhadores, como jornada flexível e a ausência da figura de chefe, por outro, pode significar uma desregulação e precarização desenfreada dos direitos trabalhistas. Como alternativa, a sharing economy e o cooperativismo de plataforma estão se popularizando cada vez mais, principalmente por serem fundamentados e organizados em um modelo democrático e com gestão de propriedade compartilhada.

A Beta Redação conversou com uma pesquisadora de cooperativas de plataforma e duas bike messengers que integram coletivos porto-alegrenses de ciclo-mensageria para abordar suas histórias pessoais, temáticas de gênero e as perspectivas das novas conexões entre o mundo do trabalho e as tecnologias digitais.

Investimento na humanização das trabalhadoras é o diferencial do coletivo Puma Entregas

Em atividade desde agosto de 2020, o serviço de ciclo-entrega Puma Entregas é formado por cinco mulheres, com uma dinâmica da gestão administrativa feita de maneira horizontal e coletiva. “Queríamos trabalhar com bicicleta e não encontramos espaços nas plataformas existentes, então decidimos criar uma nossa”, explica a bike messenger Carol Corso (25), que formou o coletivo com a namorada e uma amiga para produzir novas relações humanizadas de trabalho em meio ao cenário conturbado da pandemia.

De forma ecológica e sustentável, Carol conta que a Puma Entregas constrói um vínculo de proximidade e segurança com os clientes: “Buscamos questionar as relações capitalistas serviçais e de imediatismo”. Ela, que já trabalhou como atendente, garçonete e hostess, ainda atua como professora no período noturno.

“No ano passado estava dando aula para uma escola de inglês, onde fui extremamente explorada”, revela. Com o fim do contrato, ela se viu desempregada e o projeto Puma Entregas ganhou mais força para se tornar realidade. “Fugimos das entregas de aplicativos, porque, na época, os restaurantes restringiam mulheres”, declara.

Nascida em Caxias do Sul, Carol não tinha a bicicleta como parte do seu cotidiano por conta da geografia da sua cidade natal — que é formada por serras e ruas extremamente íngremes. Aos 17 anos, mudou-se para Porto Alegre para cursar faculdade e pedalar se tornou uma alternativa para pequenas locomoções: “Peguei uma bike emprestada da minha família e a ideia inicial era de apenas chegar mais rápido nos lugares”, conta. Aos poucos, iniciou uma relação de amadurecimento e descobertas: “Fui percebendo que eu ganhava mais segurança e autonomia pedalando pela cidade, principalmente a noite. Desde então, não parei mais”, afirma.

Meninas da Puma Entregas em atividade nas ruas de Porto Alegre. (Foto: Divulgação/Heitor Jardim)

Como bike messenger, ela conta que sua vida mudou para melhor. “Trabalhar em cima de uma bicicleta é um sonho. Pedalar proporciona uma paz, mesmo no trânsito caótico”, diz. Para Carol, além de realizar exercícios físicos, também é uma forma de prestar atenção nos detalhes urbanos. “Vejo o trabalho de entregas como um serviço essencial. É preciso valorizar, porque nos é exigido muitas habilidades”, diz.

Para Carol, uma competências mais necessárias para as bike messengers é a de ter plena concentração e prudência no trânsito, principalmente pela falta de respeito dos motoristas. “Quem está dentro de uma lata de metal esquece que pode matar apenas por empurrar uma ciclista contra outros carros ou para fora da via. Seria perfeito se pudéssemos trabalhar sem medo de morrer”, desabafa.

Carol pontua outras violências enfrentadas pelas meninas do coletivo, como a misoginia e lesbofobia: “Na rua, já tivemos casos de assédio e falta de respeito com o nosso trabalho. Homens acham que não somos capazes de carregar mochilões pesados (…)”, exemplifica. Entretanto, no movimento local de ciclo entregas a realidade é favorável: “Nos fortalecemos e nos ajudamos bastante. Temos excelentes relações com coletivos de São Paulo e do Rio de Janeiro também”, sublinha.

Na ativa desde 2010, Pedal Express é uma das primeiras cooperativas de entregadores do Brasil

“Pedalo desde que eu me conheço por gente”, afirma Mariana Cardoso (31), bike messenger do coletivo Pedal Express. Natural de Santa Maria, ela conta que o seu contato com a bicicleta iniciou focado no lazer e, alguns anos depois, se tornou o meio de transporte principal para as idas e vindas da faculdade: “Descobri o gosto pela coisa assim, aí já fui fazendo roteiros de pedaladas mais longas”, explica.

Formada em Engenharia Civil pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), a bicicleta se fez presente de forma importante na trajetória acadêmica de Mariana. “Por gostar tanto, me aprofundei sobre as temáticas de mobilidade urbana e planejamento cicloviário”, diz. Morando na capital desde 2017, ela fez uma análise de alternativas infraestruturais do circuito de ciclovias de Porto Alegre para o trabalho de conclusão do curso.

Mariana Cardoso pedala entre 60 e 80km por dia. (Foto: Arquivo Pessoal/Mariana Cardoso)

A Pedal Express é um coletivo de serviços de ciclo entrega e carrega o título de ser uma das primeiras do nicho no Brasil. Com a administração totalmente colaborativa, a equipe se divide em grupos para atender todas as demandas coorporativas, que vão desde do financeiro até a comunicação — tudo feito de maneira horizontal. Atualmente, o coletivo conta com quatro homens e duas mulheres de bike messengers no time.

“Trabalho ao ar livre, com autonomia e liberdade. Para mim, ser bike messenger é o melhor trabalho do mundo. São vários desafios diferentes, e a melhor parte é chegar no final do dia satisfeita e feliz por ter cumprido a missão”.

Mariana integra a equipe desde 2018. Anteriormente, fez parte da extinta empresa de entregas DeliCo — que encerrou as atividades em 2019. “Desde que comecei a trabalhar pedalando tenho uma relação diferente com a cidade, mais especial. Minha qualidade de vida melhorou”, destaca os principais pontos positivos da profissão. “Acredito que, além do serviço da Pedal Express ser ecológico e sustentável, também é muito humano. Aqui, nós temos os mesmos direitos e os mesmos deveres”, ressalta Mariana.

A tentativa e a necessidade do equilíbrio entre as transformações tecnológicas e os direitos trabalhistas

“O que temos no mercado do trabalho atual é uma racionalidade neoliberal, que pratica uma homogeneização da massa de trabalho. É a transformação do trabalhador em apenas um número, em um sistema que não vai pensar em aspectos de classe, de gênero ou de raça”, afirma Évilin Matos (25), jornalista, mestranda em Ciências da Comunicação e pesquisadora do DigiLabour — laboratório de pesquisa e newsletter que produz investigações em torno das conexões entre o mundo do trabalho e tecnologias digitais.

“Outro problema a ser destacado é que essas plataformas são do norte global. Nesse sentido, todas as riquezas extraídas da mão de obra precarizada dos trabalhadores e o volume de dados gerados são arrancados daqui, no sul global, para serem levados para outras localidades”, explica.

O cooperativismo de plataforma surge para transgredir essa lógica, segundo a pesquisadora. “Na configuração de propostas cooperativista, há transparência sobre as produções de riquezas. É claro que o cooperativismo de plataforma também vai buscar produtividade e eficiência no trabalho, mas o zelo ao trabalhador e pelo pagamento justo é mais significativo”, elucida.

Em paralelo às oportunidades digitais, também surgiram problemas e obstáculos, e o principal é a fragilidade da relação dos direitos trabalhistas entre o trabalho por plataforma nas transformações tecnológicas. Além de greves e paralisações, como a do Breque dos Apps em junho de 2020, entregadores de todo o Brasil se engajam cada vez mais por uma legislação específica para o âmbito.

“São raríssimos os entregadores e entregadoras que possuem direitos trabalhistas assegurados por uma CLT. Aplicativos de entrega servem para dar dinheiro aos CEOs e acionistas, e não para facilitar o nosso trabalho”, afirma a bike messenger Carol Corso, do coletivo Puma Entregas.

Para Mariana Cardoso, bike messenger da Pedal Express, o equilíbrio está muito distante. “Acredito que quanto mais inovações tecnológicas, mais aplicativos e mais uberização das coisas, menos direitos trabalhistas para quem trabalha. É uma cadeia gigantesca, e estamos sendo engolidos por isso”, declara. Ela também expressa a importância da união dos entregadores para reivindicar as condições e exigir direitos: “A luta vai ser longa, mas é preciso uma mobilização para que nos respeitem como trabalhadores”, conclui.

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