Copa Libertadores de 2020 traz novos desafios aos clubes
Torneio continental foi retomado no dia 15 de setembro em meio à pandemia de Covid-19 na América do Sul
Considerada por atletas, técnicos, dirigentes, imprensa e torcedores como o principal torneio de futebol do continente, a Libertadores da América é a representação mais próxima da paixão do povo sul-americano pelos clubes e pelo esporte. Em 2020, a pandemia de Covid-19 paralisou a competição por seis meses, com os últimos jogos sendo realizados em 12 de março. Com a retomada da competição em 15 de setembro, data em que foi encerrada a primeira parte da fase de grupos, estádios sem público trouxeram à tona o novo desafio imposto.
A Federação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) promoveu mudanças no regulamento da competição e impôs medidas a serem adotadas por equipes com jogadores infectados. As modificações ampliaram o número de substituições por partida, além de permitirem que um jogador defenda até três equipes ao longo da competição e que uma equipe de arbitragem do país do time mandante apite a partida. A data da final, prevista para novembro de 2020, acontecerá somente no próximo ano, entre 23 e 30 de janeiro, no estádio Maracanã, no Rio de Janeiro.
Quando o jogador de um clube testar positivo para o coronavírus, o atleta ficará em isolamento e o nome será repassado à Comissão Médica da Conmebol. Conforme descrito no site da Conmebol, as regras são rigorosas: “A partida será realizada independente do número de jogadores (incluindo goleiros) que tenham testado positivo e que devem ser isolados”. Somente quando o clube tiver menos de sete jogadores inscritos aptos a entrar em campo a partida não irá ocorrer, com o clube sendo derrota por W.O e o resultado será 3 x 0 para o time adversário.
Conforme Dimitri Barcellos, que escreve sobre futebol sul-americano no portal FootureFC, as situações relativas à pandemia geram imprevisibilidade ao andamentos dos jogos. Ele acredita que, embora os treinadores possam alterar a estrutura dos times ao longos das partidas pelo aumento no número de substituições, os clubes correm risco de perder atletas pela Covid-19. Para o jornalista, mesmo com os confrontos tendo um cenário de escalação imprevisível, não acontecerão grandes surpresas entre os times classificados para as oitavas de final.
O que mais deverá impactar o andamento dos jogos nesta edição da Libertadores da América serão os jogos sem público, explica Barcellos. “O ambiente de pressão criado pelas torcidas é um fator de desequilíbrio na parte mental do jogo, sobretudo quando o mandante é inferior tecnicamente. Este ingrediente, a meu ver, ajuda quem está num nível mais alto de rendimento”, elucida.
Jornalista focado em futebol Sul-Americano, especialmente o argentino, Lucho Silveira afirma que é preciso compreender como as mudanças de regra geradas pela pandemia vão alterando o formato da competição. Para exemplificar, menciona o número de inscritos que, a partir da primeira alteração, aumentou para 40 atletas e, depois, a Conmebol estendeu para até 50 jogadores. Em relação aos estádios sem público, Silveira define como um anticlímax, mesmo com a tentativa das equipes em simular o clima de jogo normal com os cartazes, trapos e colocação de cânticos da torcida nas partidas.
Quem sente muito a mudança de cenário, de acordo com Silveira, são os jogadores, pelo nível de concentração na partida. Ele ainda reforça como o mando de campo pode ser prejudicial para clubes acostumados com uma torcida que joga com o time, sendo quase o 12° jogador, a exemplo do que acontece com a equipe argentina Boca Juniors, no estádio La Bombonera.
Como os estádios estarão sem a presença da torcida e o “ambiente” quase hostil para o clube visitante é decisivo na Libertadores, Douglas Ceconello, colunista do Blog Meia Encarnada, revela que será difícil times de menos tradição conquistarem o torneio e que os clubes mais ricos serão beneficiados. Para o jornalista, a edição pode ser nomeada como anti-Libertadores pelo distanciamento de clubes e torcidas na América do Sul: “O estádio vazio é o contrário do espírito da Libertadores”, define.
Gre-Nal se apresenta oficialmente na Libertadores
Em 2020, o último jogo da Libertadores antes da interrupção pela pandemia aconteceu em Porto Alegre, no dia 12 de março, na Arena, quando Grêmio e Internacional se enfrentaram pela primeira vez na competição, valendo a liderança do grupo E. Ainda que tenha terminado empatado, o confronto foi movimentado pela confusão generalizada que causou a expulsão de quatro jogadores de cada equipe.
Na quarta-feira, 23 de setembro, na reabertura da fase de grupos, as duas equipes voltaram a se enfrentar, desta vez no estádio Beira Rio, mas mesmo com o mando de campo o Internacional perdeu a partida pelo placar mínimo (1x0). Considerado favorito pelo desempenho apresentado na retomada da competição e no campeonato brasileiro, o colorado teve uma atuação sem brilho e de pouca inspiração. Mesmo com nove desfalques — entre jogadores no departamento médico, suspensos e dois casos positivos de Covid-19, a escalação escolhida por Eduardo Coudet contribuiu para a apresentação do time mandante.
Buscando a recuperação da competição, o tricolor gaúcho atuou com modificações no meio de campo, o que melhorou a performance da equipe. Com dois pontas insinuantes e criativos, o time comandado por Renato Gaúcho fez uma apresentação segura e aumentou a série de jogos sem perder para o Internacional - são 10 jogos de invencibilidade. O atacante Pepê marcou o tento que decretou a vitória. Mesmo com o revés, o colorado segue na primeira colocação com 7 pontos. O Grêmio está em segundo colocado com a mesma pontuação do rival.
Para Ceconello, o Gre-Nal sempre foi uma Libertadores particular e, finalmente, pode se apresentar “oficialmente” ao continente. O jornalista diz que o clássico oferece uma rivalidade profundamente acirrada que, apesar de estar distante do centro do país, envolve dois dos clubes mais vencedores do Brasil. De acordo com Roger Luiz Brinkmann, autor do livro “Personagens históricos da Copa Libertadores”, estes são os jogadores com protagonismo e grande performance em cada edição conquistada por Grêmio e Internacional.
O desempenho das outras equipes do Brasil e o clube que mais se destaca na Copa
Os demais representantes brasileiros na Copa Libertadores de 2020 são Athletico Paranaense, Flamengo, Palmeiras, Santos e São Paulo. Para ele, o Palmeiras tem provado ser a equipe com melhor qualidade técnica, atingindo 100% de aproveitamento na primeira fase. Ele afirma que pela transição do trabalho de Jorge Jesus para Domènec Torrent, o Flamengo perdeu apenas para o Independiente Del Valle. Adversário considerado superior coletivamente, possui 9 pontos e está na segunda colocação do grupo A.
Barcelos contextualiza que, mesmo sem brilhar, o Santos lidera o grupo G. Assim como o Athletico Paranaense, que perdeu, além do treinador, peças importantes da temporada passada, mas consegue ser superior no grupo C. Por fim, o colunista do Footure FC descreve como o São Paulo está em situação mais complicada, por enfrentar a LDU em Quito e o River Plate na Argentina. “É quem corre o maior risco de ficar fora”, conclui.
Quando perguntado quais equipes merecem uma atenção maior, Silveira cita os representantes de Argentina e Brasil pelo poderio econômico, os clubes uruguaios pela tradição e os paraguaios pelo investimento na atual edição da competição. Para o comentarista do DAZN, o time com melhor desempenho é o Independiente Del Valle. Ele destaca o trabalho do técnico Miguél Angel Ramirez, que pelo ambiente de pouca pressão da imprensa e da torcida consegue desenvolver bem suas ideias. “O Del Valle já chegou a uma final de Libertadores, ganhou a Sul-Americana de 2019 e é um baita time. Bem organizado e com jogadores velozes. É o clube do momento”, define.
Com os três jogos da fase de grupos realizados, Barcellos também considera o Independiente Del Valle, do Equador, o grande destaque da Libertadores, não apenas pela goleada em cima do Flamengo, mas pelo rendimento apresentado. “São vitória imponentes sobre Junior e Barcelona, 11 gols em três partidas, mantendo o padrão de jogo ofensivo e alto controle que os levou ao título da Sul-Americana em 2019”, explica o jornalista. Em relação aos jogadores de melhor desempenho e que seriam ótimos reforços para equipes brasileiras, ele cita Moisés Caicedo (Independiente Del Valle), Santiago Rodríguez (Nacional), Duván Vergara (América de Cali) e Jhojan Julio (LDU).
A Copa desperta a paixão em quem acompanha
Basta a leitura de uma crônica de Douglas Ceconello, no blog Meia Encarnada, para perceber a relação apaixonada entre o futebol sul-americano e a Libertadores da América. O jornalista lembra que a origem dessa admiração remonta a outro período econômico no esporte, quando os clubes mais temidos eram o Penãrol, do Uruguai, e o Olimpia, do Paraguai. Para ele, o sentimento continua pela noção de que os sul-americanos vivem o futebol de um jeito mais profundo, com uma identificação fortíssima entre os clubes e suas torcidas. “O dinheiro não deve nos dizer o que importa no futebol”, defende.
Em relação à afirmação de que a Libertadores pede uma postura diferente nos jogadores e um comportamento inflamado de torcedores na arquibancada, Ceconello afirma ser uma construção de décadas, até mesmo mitológica. O cronista exemplifica, como situação peculiar da competição, o uso de artifícios moralmente discutíveis por clubes mais emblemáticos. “Não me arriscaria a palpitar a postura ideal, mas creio que é indispensável ter uma força mental elevada para vencer uma Libertadores. Podemos traduzir por espírito ‘canchero’”, aponta.
Roger Luiz Brinkmann, autor do livro “Personagens históricos da Copa Libertadores” menciona que jogadores que marcaram história na competição sempre tiveram grande resiliência e capacidade de superar adversidades. Brinkmann acredita que na Libertadores ter o melhor time ou jogadores não garante a vitória, por ser necessário enfrentar situações extremamente difíceis, como a catimba, estádios intimidadores com vestiários minúsculos, altitude, torcidas apaixonadas que beiram a insanidade, times dispostos a usar a violência para vencer uma partida, árbitros mal intencionados e até fatores psicológicos. “Se esses personagens ficassem apenas reclamando das ‘injustiças’ sofridas em campo, não teriam sido campeões. A postura era de passar por cima dessas adversidades para ser campeão”, revela.
“A Libertadores é um caldeirão num continente extremamente passional pelo futebol”, afirma Dimitri Barcellos, jornalista que aborda futebol sul-americano no portal FootureFC. Para ele, a arquibancada, o perfil das torcidas e a cultura futebolística de diferentes países dão o tom de peculiaridade da competição continental. “Com ingredientes diferentes vindos de cada país e, por ser um continente de poucos países, as rivalidades acabam aflorando ainda mais. Isso torna a Libertadores ímpar no mundo”, destaca.
Desde a edição passada, a Libertadores é decidida em jogo único. Para Ceconello, o atual formato é uma intervenção alienígena na cultura do futebol sul-americano, uma vez que desrespeita o vínculo dos clubes com suas torcidas e sugere a existência de condições ideais, financeiras e econômicas, possibilitando aos adeptos fazer turismo na final da competição. “Isso é o pior que a Europa poderia oferecer em termos de inspiração”, lamenta.
Embora o nome da competição seja uma homenagem aos “libertadores da América”, o cronista lamenta como a inspiração para a nomenclatura do torneio parece cada vez mais irrelevante à Conmebol, tomando como exemplo a final da edição de 2018, em Madrid, justamente a capital do país que mais saqueou o continente.
Quando questionado sobre o motivo da Libertadores ser tão apaixonante, Ceconello menciona o quanto a relação dos sul-americanos com seus clubes é intensa, sendo a competição o ápice desse sentimento. O jornalista ainda aponta as questões culturais e até geográficas envolvidas — distância, clima, altitude — , como ingredientes singulares do torneio. “Acredito que são fatores determinantes para fazer da Libertadores o que é: uma síntese perfeita e nervosa de como os sul-americanos enxergam o futebol e, por consequência, a vida”, sentencia.
Livro narra a história da libertadores com personagens de clubes campeões
Uma das obras que resgata aspectos históricos do principal torneio do continente foi escrita por Roger Luiz Brinkmann, autor do livro “Personagens históricos da Copa Libertadores”, publicado em 2018 pela editora Novo Século. Inicialmente, a ideia era produzir um material contando a história do torneio continental, pois até 2013, existia apenas a publicação “O Brasil na Taça Libertadores”, de 1998, escrito por Antônio Carlos Napoleão, que narrava os feitos dos clubes brasileiros no campeonato. Contudo, enquanto escrevia o livro, o jornalista Nicholas Vital publicou a obra “Libertadores: Paixão que nos une”. “Não fazia sentido publicar um livro muito similar. Resolvi parar de escrever o livro com essa temática”, explica.
Quatro anos depois, após conversa com o seu orientador de mestrado na USP, professor Ary Rocco, Brinkmann retomou o projeto de publicar o material abordando aspectos históricos do torneio. O enfoque da obra seria os personagens mais marcante da competição — jogadores e treinadores —, apresentando o protagonista de cada edição da Copa Libertadores realizada entre 1960 e 2017. Para dar vida à publicação, ele pesquisou em livros, biografias de jogadores e treinadores, matérias de revistas antigas, como a El Gráfica da Argentina, de jornais, sites oficiais dos clubes e da Conmebol e vídeos antigos dos jogos no YouTube. “Levei pouco mais de um ano para escrever o livro, obviamente, por usar parte do primeiro projeto”, lembra.
A Copa Libertadores tem características peculiares e desperta posturas diferentes nos jogadores, especialmente, naqueles considerados protagonistas nos clubes em que se sagraram campeões. Para apontar os personagens de cada edição, o escritor desenvolveu critérios específicos para atletas e treinadores. Os jogadores que marcaram a competição foram campeões e decidiram um jogo importante, entraram em campo em pelo menos uma partida da final e se tornaram ídolos em seus clubes. “Se mesmo assim não fosse afunilado para um jogador, pesava também o histórico do jogador na Copa Libertadores e a participação no Mundial de Clubes”, indica. Os técnicos históricos, por sua vez, deveriam ter sido no mínimo bicampeões e ter deixado um legado ao clube e à competição.
A origem da competição continental de clubes
Embora a Confederação Sul-Americana de Futebol — Conmebol — tenha sido fundada em 1916, somente no ano de 1948 aconteceu o primeiro torneio continental entre clubes, conforme contextualiza Roger Luiz Brinkmann. Chamado de Campeonato Sul-Americano de Campeões, a primeira edição ocorreu entre 11 de fevereiro e 17 de março no Estádio Nacional, em Santiago, reunindo apenas os clubes vencedores da competição nacional de cada país.
No Brasil, não havia uma competição nacional, por isso, o representante no torneio foi o Vasco da Gama — campeão do carioca de 1947 — e considerado o campeonato regional daquele período. O representante brasileiro sagrou-se campeão do Campeonato Sul-Americano de Campeões, sendo o River Plate da Argentina o vice colocado. De acordo com Brinkmann, nos anos anos seguintes a competição continental não aconteceu e, depois de uma década, o secretário-geral da UEFA, Henry Delaunay, sugeriu a formulação de uma partida entre os clubes campeão da Europa contra o campeão da América do Sul.
Com a proposição do mandatário da UEFA, a ideia para organização de um campeonato continental de clubes renasceu. Conforme Brinkmann, aconteceram diversas reuniões envolvendo a cúpula da Conmebol ao longo de 1959, sendo numa dessas aprovada a criação da Copa dos Clubes Campeões da América.
Embora seja conhecida como Libertadores da América, entre 1960 e 1964, o torneio recebeu o nome de Copa dos Clubes Campeões da América. Brinkmann explica que, em 1965, o torneio passou a ser chamado de Copa Libertadores da América para homenagear os líderes do movimento de independência das Américas no começo do século XIX. Ele ainda lista alguns dos nomes que inspiraram o nome da competição continental: “Símon Bolívar (independência do norte da América do Sul), José de San Martin (Argentina), José Gervásio Artigas (Uruguai), José Miguel Carrera e Bernardo O´Higgins (Chile), Antônio José de Sucre (Venezuela) e Dom Pedro I (Brasil).”