CRÍTICA: Às vezes morremos para provar que vivemos

A efemeridade da vida é foco de Daytripper, um HQ que conta o fim da história de outras pessoas

Lisandra Steffen
Redação Beta
4 min readApr 10, 2021

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Daytripper é uma reflexão sobre a efemeridade da vida (Foto: Lisandra Steffen)

A verdade, goste ou não, é que todo mundo morre. Independente de como cada pessoa vive ou quais escolhas toma, o fim é o mesmo. E ele é inevitável. O Brasil, assim como o resto do mundo, está vivendo uma crise sanitária. Lidar com a morte, ou apenas se aproximar dela, tornou-se parte do cotidiano. E é enfrentando a morte, diariamente, que Brás de Oliva Domingos vive. Brás é um obituarista que sonha em ser um grande escritor, assim como seu pai. Mas calma lá, ele é um personagem da graphic novel dos gêmeos paulistas Fábio Moon e Gabriel Bá.

Daytripper conta a história do obituarista e sua tentativa de encontrar o significado da própria vida. A HQ, que de ficção só tem a categoria na prateleira da livraria, lida com os problemas reais, questionamentos sobre a própria existência. Quando, de fato, começa a vida de Brás? O leitor é levado por diversos momentos da existência do personagem, conhecendo cada instante onde a história poderia estar começando, mas que não acontece.

Ah, correndo o risco de ser estraga-prazeres, é importante dizer que Brás morre. O tempo todo. Talvez esse seja um vínculo em comum com outro Brás da Literatura Brasileira. Cubas e Oliva são defunto-narradores. Contam sobre suas passagens no mundo depois de já não estarem mais nele. O obituarista, por sua vez, procura o sentido da sua vida. Entretanto, ele precisa morrer em cada uma dessas ocasiões para conseguir seguir em frente.

A história não é linear e cada capítulo trata de um aspecto que foi relevante para a vida de Brás. Do primeiro beijo ao primeiro amor. Do lançamento do livro ao nascimento do filho. Não necessariamente nessa ordem. As cores e planos são bem usados pelos autores. Em geral, quadros menores significam um tempo narrativo mais curto e um quadro maior significa o oposto: um espaço de tempo alongado.

À esquerda, Brás tenta escrever seu livro com dificuldade, as ações são rápidas. À direita, o personagem, ainda criança, brinca na rua, por ser uma lembrança, as ações são mais demoradas. (Crédito: Reprodução)

Cores sóbrias são usadas para destacar climas melancólicos e de mistério. Enquanto cores vivas são usadas para momentos alegres ou até mesmo lembranças. Planos detalhes evidenciam objetos importantes para as relações traçadas na narrativa. Em contraponto, páginas duplas e quadros maiores são utilizados durante a infância do personagem, um momento de nostalgia, como se todas as ações fossem uma. Além disso, os irmãos utilizam páginas inteiras para construir um clímax, cujo desfecho só poderá ser descoberto se o leitor virar a página.

Cores vivas são usadas à esquerda para mostrar uma viagem alegre de Brás, já à direita, ele lida, em outro momento da vida, com um término e o apartamento vazio (Crédito: Reprodução)
Nesse trecho, o leitor é convidado a virar a página para descobrir o desfecho da cena (Crédito: Reprodução)

As Histórias em Quadrinhos no Brasil

No começo do século XX, com Tico Tico, inicia a cultura das HQs no Brasil. No fim dos anos 30, Roberto Marinho lança O Globo Juvenil e, mais tarde, edita a Gibi Mensal, fortalecendo as HQs no país. É só nos anos 70 que Maurício de Souza se consolida com a Turma da Mônica. Trinta anos mais tarde, no início dos anos 2000, eu ganho meu primeiro Almanaque da Mônica, que tem, coincidentemente, a capa de um dos memes mais famosos da turminha.

Capa do almanaque lançado em 2004 viralizou em 2016 (Crédito: Reprodução)

Fui uma leitora assídua dos gibis de Maurício de Souza. Chegando a criar, inclusive, minha própria “turma”. Os traços de Maurício inspiraram minha versão de nove anos a desenhar — hobbie que larguei algum tempo depois, assim como a leitura dos gibis. Cresci com a Mônica de sete anos e acompanhei o início da primeira geração da “Turma da Mônica Jovem”, período em que eu e os personagens compartilhamos as mesmas idades e angústias.

Depois disso, acabei perdendo o hábito de ler HQs, talvez porque só conhecia os gibis. Já adulta — estranho falar isso -, resolvi voltar para as histórias em quadrinhos, as charges, graphic novels, ou qualquer outro tipo de narrativa contada em desenhos. A questão é que as HQs não são apenas focadas no universo infantil, elas contêm histórias profundas e podem surpreender.

Daytripper só chegou no Brasil em 2016 (Foto: Lisandra Steffen)

Daytripper é uma dessas histórias. Bá e Moon criaram um universo real, cujos sentimentos do personagem se misturam com os sentimentos do leitor. Principalmente em um momento como o que estamos vivendo. Como o próprio Brás descreve, no final da narrativa, escrever sobre a morte é fácil. Daytripper fala sobre a vida, que está acontecendo a cada instante, através da morte. A história é sobre um ser humano em conflito que tenta, a todo momento, marcar sua presença no mundo. Cada vez que Brás morre, ele prova que viveu.

Daytripper
Autores:
Fábio Moon e Gabriel Bá
Editora original: Vertigo — 2011
Editora no Brasil: Panini — 2016
Páginas: 260

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Lisandra Steffen
Redação Beta

Às vezes, tiro fotos de passarinhos e escrevo (sobre outras coisas). Gosto muito de usar vírgulas (e parênteses).