CRÍTICA: A amizade verdadeira ameniza até o coração mais despedaçado

Animação em stop motion expõe dramas de crianças que vivem em orfanato e como superam as adversidades com a amizade

Tainara Mauê
Redação Beta
4 min readAug 27, 2022

--

Turminha do Orfanato Fontaine: Ahmed, Jujube, Béa, Alice, Camille, Abobrinha e Simon. (Imagem: Reprodução/Plano Crítico)

Aqueles que passam os olhos pelos serviços de streaming e encontram o título “Minha Vida de Abobrinha” (Ma Vie de Courgette, 2016) podem até pensar: ‘ok, mais uma animação com bonequinhos cabeçudos, olhos enormes e braços compridos”. O filme em stop motion francês, dirigido por Claude Barras e com roteiro de Céline Sciamma, é uma adaptação do livro Autobiographie d’une Courgette, do escritor Gilles Paris. E definitivamente não é só mais um desenho animado com criaturinhas esquisitas para crianças.

Trailer da animação Minha Vida de Abobrinha (Reprodução: Youtube/ Canal California Fimes)

Somos apresentados ao drama do filme logo nos primeiros minutos. Icare, um menino de 9 anos, vive com sua mãe alcoólatra, que morre acidentalmente. Sem ter com quem ficar, já que o pai só está presente em um desenho de super-herói em uma pipa, é levado para um orfanato pelo policial Raymond. A partir do primeiro contato com o policial, percebe-se a delicadeza na forma como aquele homem trata a criança e, no decorrer do filme, a relação entre eles se estreita cada vez mais. Questionado, o menino diz que se chama Abobrinha, pois era assim que sua mãe o chamava. O que restou da curta história familiar de Icare foi o amor incondicional do filho pela mãe e o apelido.

Desde que chega no orfanato Fontaine, Icare se depara com a solidão e com outras crianças com dramas tão sensíveis quanto o dele. Em uma das cenas mais emocionantes, Simon, que é o rebelde e faz bullying com Abobrinha, pergunta porque ele está no orfanato e logo começa a falar o dossiê de cada um que vive lá. O próprio Simon relata que seus pais eram usuários de drogas. Alice tem pesadelos todas as noites e seu pai está preso, pois fazia coisas ilegais. Ahmed está lá porque seu pai participou de um assalto pra dar ao filho um tênis. Béatrice um dia foi para escola e nunca mais viu sua mãe, que foi deportada para a África. Jujube tem manias assim como sua mãe e talvez por isso esteja no lar.

Depois de ouvir as histórias de seus colegas, Abobrinha então decide falar: “Acho que matei minha mãe. Não queria isso. Não foi de propósito.” O drama se torna mais real quando o amigo encrenqueiro diz que todos ali são iguais, que estão desamparados de amor. O entendimento dessa falta é tão duro quanto perder sua família e acaba sendo um sentimento em comum que aproxima e une todas as crianças.

Abobrinha e Simon dividem suas histórias. (Imagem: Reprodução/AdoroCinema)

Abobrinha vai vivendo sua solidão, descobrindo novas amizades e enviando cartas para o amigo policial Raymond até o dia em que Camille chega no orfanato. O encanto por ela é imediato e a curiosidade em querer saber porque ela está ali também. A menina viu seu pai matar sua mãe e depois se suicidar, ficando assim sob a guarda da tia gananciosa e que não gosta dela. Camille é levada provisoriamente para o orfanato até que a justiça defina seu destino. Aos poucos, o amor entre os dois vai nascendo e eles vão entendendo a importância que exercem um na vida do outro.

Com temas sensíveis, essa animação colorida e com criaturinhas simpáticas, aos poucos vai revelando os dramas que as crianças sofrem ainda pequenas e como cada uma lida com sua dor. Da mesma forma que outras animações, Minha Vida de Abobrinha traz pontos relevantes da vida adulta e mostra como sentimentos tão doloridos podem ser amenizados com as amizades. A narrativa da animação é linear, os personagens são bem construídos e você até consegue traçar o perfil de cada um pelas suas manias e trejeitos. Ao final, fica perceptível que criam um vínculo tão verdadeiro e intenso entre eles que para alguns deles é melhor ficar no orfanato do que retornar para a própria família. O sentimento de abandono segue em cada coraçãozinho, mas os laços que são criados no Fontaine acabam prevalecendo.

O diretor Claude Barras e Abobrinha. (Imagem: Reprodução/AdoroCinema)

O filme foi indicado a diversos prêmios, entre eles o Oscar, Globo de Ouro e o Festival de Cinema de Animação de Annecy, na categoria de melhor animação. Saiu vencedor em 2017 no César, prêmio mais importante de cinema da França, como melhor Animação e Roteiro Adaptado, além de concorrer na categoria melhor Trilha Sonora. Ganhou também o European Film Awards (2016) e o Prêmio Satellite (2016), ambos como melhor animação.

O filme lançou o nome do sueco Claude Barras no circuito das produções cinematográficas e contou com a roteirista francesa Céline Sciamma, que é aclamada por filmes intensos, que trazem em geral a figura feminina como tema central de seus trabalhos. Entre os mais conhecidos trabalhos de Sciamma estão as obras cinematográficas Tomboy (2011), Garotas (2014) e Retrato de uma jovem em chamas (2019). Além de direção e roteirista premiados, o filme conta com a participação na dublagem de Elliot Page, que se assumiu como homem trans em 2020.

Apesar de ser um filme de 2016, o final da trama não será revelado aqui. Fiquem tranquilos, todos ficam bem e parecem estar satisfeitos com o final/início de suas vidas. A conclusão pode deixar os olhos marejados, e a música final Le Vent Nus Portera, interpretada por Sophie Hunger, ajuda com que a primeira lágrima escorra.

--

--