CRÍTICA: A busca por aceitação e o aceno à diversidade em “Luca”
Animação traz reflexões importantes e nos convida a embarcar em uma atmosfera que remete à infância
Como de costume, a parceria entre os estúdios Pixar e Disney segue rendendo bons frutos. Esse é o caso de Luca, uma animação sensível, com gosto de infância, que fala sobre amizade, amadurecimento, superação e aceitação. Com um forte apelo social, a narrativa ainda aborda, de forma leve e descontraída, o preconceito e a intolerância com o desconhecido, além de funcionar como uma possível metáfora para a descoberta da homossexualidade — uma vez que o personagem decide explorar o mundo fingindo ser quem não é por medo de julgamentos.
Atenção, esta crítica contém spoilers!
Lançado no dia 18 de junho de 2021, na plataforma de streaming Disney+, o filme acompanha a vida de Luca Paguro, um jovem monstro marinho que vive no fundo do oceano com sua família, mas tem a enorme curiosidade de conhecer a vida terrena. Sua mãe, sempre muito protetora, o avisa a todo momento dos riscos de ser visto pelos humanos e o aconselha a nunca sair para a superfície. No entanto, ao conhecer outro monstro marinho chamado Alberto Scorfano, Luca descobre que pode assumir a forma humana ao sair da água e é encorajado pelo mais novo amigo a ter essa experiência.
Desse modo, a história começa a ganhar um rumo diferente ao mostrar Luca empolgado com a possibilidade de explorar o mundo colorido e ensolarado que o espera lá fora. Contudo, a ideia de se aventurar em um lugar proibido e de quebrar as regras não é exatamente uma novidade no cinema, principalmente dentro da Pixar. A superproteção do filho contra eventuais perigos remete muito ao pai Marlin de Procurando Nemo (2003), fora que a fuga para a superfície também possui uma grande semelhança com Ariel de A Pequena Sereia (1989).
Sendo assim, Luca nos apresenta a clássica receita de bolo e decide não sair do terreno seguro, o que não significa que isso seja algo ruim. Na verdade, muito pelo contrário. Apesar da falta de ousadia e ambição, a animação resulta em 95 minutos muito divertidos e emocionantes. Com uma narrativa comovente e concisa que conecta o público de todas as idades, a história é, principalmente, sobre vínculos e aceitação das diferenças.
Durante a trama, enquanto Luca e Alberto se divertem desbravando o desconhecido, eles passam por um processo de descoberta e amadurecimento, ao mesmo tempo que tentam pertencer a um mundo que os rejeita por serem quem são. Juntos, os garotos desenvolvem uma amizade sensível e essa relação — que se manifesta em uma narrativa ricamente construída — passa por desentendimentos e reconciliações, além de carregar um clima fofo e ingênuo de crianças agindo como crianças.
Depois de muitas brincadeiras em uma ilha, chega o momento em que a busca por um local diferente se ressignifica. Quando a dupla decide se aventurar em busca da Vespa — uma pequena e simpática moto que os levaria para a tão sonhada liberdade —, os jovens se deslocam para uma bela cidade litorânea da Riviera Italiana, mais especificamente na fictícia vila de Portorosso. O lugar, inspirado na infância do diretor italiano Enrico Casarosa, traz uma vibe de verão e paisagens estonteantes. Os habitantes locais, que carregam na voz o sotaque e expressões italianas, também mostram os hábitos de uma comunidade pesqueira que acredita em lendas e criaturas mitológicas. É uma verdadeira experiência turística imersiva.
Ao chegarem no vilarejo, Luca e Alberto conhecem Giulia, uma jovem destemida como eles, que deseja ganhar a copa Portorosso, um triatlo que consiste em nadar, pedalar e comer um pratão de massa. Assim, os três formam uma parceria e, por se considerarem crianças diferentes, se autodenominam “Os Excluídos”. Mas, como toda relação humana, os amigos não vivem apenas de bons momentos. Durante essa jornada, a amizade entre os meninos passa por uma turbulência devido ao ciúmes de Alberto, que demonstra muita frustração ao ver o amigo mais interessado em livros e estudos do que nos planos de rodar o mundo em cima de uma Vespa.
Assim, a história vai mostrando Luca se autoconhecendo e se deparando com outros desejos que tem vontade de seguir, como o de ir para escola, por exemplo. Enquanto isso, vemos Alberto triste e com raiva por achar que estava sendo abandonado. Com o tempo, conforme ambos vão amadurecendo, os personagens entendem que amar o outro é mais do que querer a pessoa por perto. Esta, inclusive, é uma mensagem do filme: quando o amor marca presença em uma relação, seja por parte dos amigos ou da família, o egoísmo precisa ser deixado de lado.
Por mais que o filme explore fortemente o valor das amizades e a importância do acolhimento da família, outra lição valorosa que o longa passa é a temática contemporânea das diferenças sociais. Não é de hoje que a Pixar vem focando cada vez mais em metáforas em suas animações, como fez recentemente em Soul (2020) e Red: crescer é uma fera (2022). No caso de Luca, a vontade de se assumir como uma “criatura marinha” e de ser aceito na comunidade são abordagens que nos fazem refletir sobre valores fundamentais, da empatia, tolerância e respeito com o próximo, muitas vezes esquecidos pela sociedade.
Em relação à parte estética, a Pixar, como sempre, fez um trabalho impecável. Todo o visual do filme, desde as cores vibrantes da estação até pequenos detalhes como um prato de macarrão com molho pesto, é muito atrativo e bem trabalhado, o que deixou a animação colorida, viva e cheia de personalidade. Ao longo da trama, é possível perceber, ainda, a expressividade cartunesca dos personagens, que falam com gestos, caras e bocas. Juntando todos esses elementos, acredito que não é loucura dizer que o filme é um dos mais bonitos visualmente já feitos pelo estúdio.
É por isso também que não surpreende que Luca tenha sido indicado ao Oscar 2022 na categoria Melhor Animação. Mesmo não levando a estatueta, é inegável o quanto a Pixar soube contar bem essa história, com humor na medida e muitas pitadas de emoção. Mesmo com uma narrativa nada revolucionária, o filme consegue desconstruir vários discursos preconceituosos e tem méritos por levar alegria e lições importantes não apenas para as crianças, mas para toda a família.
As mensagens subliminares por trás de Luca
Por mais que se trate de um filme aparentemente infantil com o único objetivo de entreter, Luca vai muito além. Entre metáforas e ressignificações, o longa abre margem para um tema mais profundo: a busca por aceitação. Apesar de não abordar explicitamente temas sexuais e de gênero, o enredo se assemelha muito com a jornada de uma pessoa LGBTQIA+ e pode até passar despercebido por públicos mais conservadores.
A forma como a vida de Luca é representada no início da animação é um exemplo de como a trama pode ser considerada um aceno à diversidade. Ao decidir sair da água, mesmo com a família salientando o quão perigosa é a vida externa, Luca se entrega ao novo mundo, maravilhado pela liberdade e pelas possibilidades que ele tem a oferecer. Nesse sentido, tal momento pode ser visto como uma nova descoberta ou a “saída do armário” do personagem que, mesmo sem o apoio dos pais e sem assumir sua verdadeira identidade, decide explorar o “lugar proibido”.
Mais um fator que reforça a referência LGBTQIA+ no filme é o momento em que os pais, após descobrirem as saídas de Luca, decidem mandar o filho para a casa de um tio distante, nas profundezas do oceano. A cena parece fazer uma comparação com a vida de muitos jovens que, devido à orientação sexual, sofrem opressão dentro da própria casa e, muitas vezes, são enviados para centros e programas que prometem a “cura” da homossexualidade.
Por outro lado, enquanto a família de Luca se mostra superprotetora, é possível perceber que Alberto foi abandonado pelo pai — uma realidade, infelizmente, muito comum em lares que não aceitam a sexualidade do filho. Mesmo carregando nas costas um passado triste, o personagem lida com a rejeição se aventurando em espaços que antes lhe eram negados. Obcecado pela liberdade, Alberto percebe que ao lado do amigo Luca finalmente poderá “sair da ilha” para explorar o mundo. Seu lema “Silenzio, Bruno!” é a maneira que o garoto encontrou para garantir que a coragem fale mais alto nos momentos de medo ou insegurança.
No decorrer da trama, quando Alberto ensina para Luca qual a forma correta de falar, andar e se comportar socialmente, temos mais uma representação sutil das pessoas LGBTQIA+, que desde cedo precisam disfarçar traços da personalidade para serem aceitas. Além disso, o momento em que Alberto é descoberto pelos moradores da vila e Luca, ao invés de se aliar a ele, se afasta e deixa o amigo sozinho, é outro episódio que gera discussão devido à forte semelhança com pessoas da comunidade que discriminam os iguais por conta do julgamento externo.
O carinho e o ciúmes entre os garotos, muito presente na trama, é outro ponto que, para alguns, pode até soar polêmico. Entretanto, os personagens representam meninos de 13 anos e, por isso, não deveriam ser vistos como um casal. A amizade entre Luca e Alberto mostra apenas que é possível existir afeto entre homens, já que, devido ao machismo estrutural, muitos são ensinados desde novos a não demonstrarem sentimentos. Ao longo do filme, em nenhum momento essa relação se concretiza em um amor romântico, mas sim no amor puro e inocente de crianças que simplesmente gostam de estar juntas.
Outra manifestação marcante de amor, que mostra como as diferenças podem ser superadas com a convivência, se dá com o pai de Giulia. Com um estereótipo de machão, bruto e violento, Massimo se aproxima e acaba desenvolvendo um carinho por Luca e um vínculo paternal com Alberto, mesmo sem saber que os garotos são monstros marinhos — criaturas que tanto abomina. Porém, em uma reviravolta surpreendente, quando todos descobrem a “identidade secreta” dos meninos, o personagem decide defendê-los, abandonando de vez seu preconceito.
No final do longa, motivadas pela coragem de Luca e Alberto, assistimos a mais uma cena emocionante: duas senhoras inseparáveis que moravam na vila também eram criaturas marinhas disfarçadas. Isso mostra que, enquanto todos estavam preocupados com os “monstros”, muitos já viviam na cidade, o que reacende a discussão de que pessoas de gêneros e orientações sexuais diferentes sempre fizeram parte de nossa sociedade, mas se escondem por medo.
Ou seja, por mais que não traga referências diretas à homoafetividade, o filme traz muitos elementos que inegavelmente se encaixam na vida de uma pessoa LGBTQIA+. A conclusão com a frase marcante da avó de Luca deixa isso ainda mais claro: “Algumas pessoas nunca vão aceitá-lo. Mas outras vão”. Este discurso, cheio de significado e aberto o suficiente para abraçar qualquer forma de aceitação às minorias, encoraja todos aqueles que já sofreram ou ainda sofrem algum tipo de discriminação.
Por fim, o fato de Luca ter sido lançado em junho, mês internacional do orgulho LGBTQIA+, reforça ainda mais a certeza de que o filme passa uma mensagem subjetiva de apoio à comunidade. Claro que a Pixar, a Disney e o diretor da obra não confirmaram oficialmente a teoria, mas as interpretações são livres e quem sabe um dia, em animações futuras, o tema seja abordado de forma aberta e intencional.
Assista ao trailer: