CRÍTICA: A “quebrada” em primeiro plano

A série “Sintonia” traz a realidade da favela e do funk, mas peca na simplicidade das tramas

Henrique Bergmann
Redação Beta
4 min readOct 5, 2019

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Christian Malheiros, Jottapê e Bruna Mascarenhas (da esquerda para direita) interpretam os protagonistas. (Foto: Netflix Brasil)

Focando mais uma vez em produções voltadas para o Brasil, a Netflix lança a série Sintonia, que conta a história de três amigos e suas realidades na fictícia favela paulistana Vila Áurea.

A série foi criada e dirigida por KondZilla e mostra Donizete (Jottapê), Rita (Bruna Mascarenhas) e Nando (Christian Malheiros) tentando alcançar o sucesso, respeito e dinheiro a partir de três grandes pilares que sustentam as periferias paulistanas (“quebradas”, como chamam por lá): o funk, a igreja evangélica e o tráfico.

A representação do funkeiro e da música na favela foi feita com facilidade, de maneira real e concreta, além de ser extremamente relevante no contexto do universo das comunidades e dos jovens. Quando digo que foi feita com facilidade, refiro-me ao criador e diretor do seriado. O currículo de KondZilla fala por si só: é dono do 4° maior canal do YouTube no mundo em número de inscritos. Além de produzir videoclipes de funk, é empresário de alguns dos nomes de maior destaque do gênero no Brasil, como Kevinho, MC Lan e Lexa. Konrad (o nome por trás do KondZilla) tem propriedade para falar de funk. E assim o faz em Sintonia.

Ao longo da série, observamos alguns MCs que já trabalharam com o produtor, como MC Kekel e Dani Russo (que fazem participação especial como eles próprios), ou MC M10, que faz o papel de Formiga, importante personagem da trama.

A produção também expõe outra grande força nas favelas e na sociedade brasileira: as igrejas evangélicas neopentecostais. Para se ter uma ideia, basta considerar os dados da Receita Federal: entre 2010 e 2017, 25 igrejas foram abertas por dia no Brasil. Além disso, segundo o Censo de 2010 do IBGE, 22% da população brasileira é evangélica e 86% acredita em Cristo.

As interpretações do elenco e o roteiro de Sintonia conseguem mostrar o poder e influência que a religião exerce sobre as pessoas. Na produção, vê-se a religião a partir do amor, da devoção e até mesmo da insensatez que provoca. A série retrata desde a pequena igreja improvisada na periferia, feita pelos próprios moradores, até o grande templo comandado pelo pastor “chefe” de determinada igreja — neste caso, qualquer semelhança com a realidade NÃO é mera coincidência.

Os personagens Rita, Nando e Donizete em uma das cenas de Sintonia. (Foto: Netflix Brasil)

A criminalidade é outro ponto central da trama: é uma profissão como outra qualquer. As atividades ilícitas são tratadas como se fossem de uma empresa; os membros ou funcionários têm funções que devem exercer com responsabilidade e foco. O objetivo é fazer com que a “empresa” não dê prejuízos ou acabe. E o patamar é de uma multinacional. Isso parece mais próximo da realidade ainda quando se considera que o tráfico de drogas gera, por ano, R$ 15,5 bilhões no Brasil, segundo a Consultoria Legislativa da Câmara de Deputados.

Por outro lado, a organização criminosa é retratada como uma família, termo que, aliás, é usado várias vezes no seriado. É interessante ver como a lealdade, a responsabilidade e o comprometimento são ditos como regras fundamentais do grupo. Quando algum novo membro é aceito, esses são os principais mandamentos que devem ser seguidos.

Assim como na realidade, na ficção este é um mundo também dominado pelos jovens. O Observatório de Favelas de 2018, feito no Rio de Janeiro, mostra que 54% dos que estão envolvidos no tráfico começaram na criminalidade entre 13 e 15 anos. Ou seja, como mostrado em Sintonia, o tráfico molda a personalidade e o pensamento desses jovens para a vida toda.

Trailer de “Sintonia”, disponível na Netflix

A trama, no entanto, é o grande pecado da série. Os problemas principais vividos pelos protagonistas são resolvidos sempre de forma simples. Os conflitos, dificuldades e tensões que são propostos terminam com diálogos e ações nada complexas, mostrando uma certa falta de profundidade. Além disso, na maioria das vezes, fazem pouca diferença na linha central da história.

Outro ponto que incomoda são determinadas histórias não contadas ou expostas de forma superficial, sem resolução ou definição. Porém, não podemos desconsiderar que isso possa ser uma estratégia para conteúdos futuros, e, quem sabe, mais temporadas nos próximos anos.

Apesar disso, Sintonia consegue ser interessante e agradável de se assistir. Com uma linguagem bastante jovem e atual, abusa das gírias paulistanas. Também traz temas pouco frequentes no audiovisual brasileiro, como o funk, que apesar de ter entrada em todas as camadas da sociedade, ainda pode ser considerado uma cultura marginal.

Por fim, apesar das falhas pontuais no roteiro, a produção é uma importante reprodutora das visões e percepções das periferias sobre questões como lealdade, lazer, música e família.

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