Os personagens ganham rosto com o trabalho de Isadora Zeferino, ilustradora da versão brasileira do livro. (Imagem: Reprodução)

CRÍTICA: A veracidade dos personagens improváveis de Vermelho, Branco & Sangue Azul

Ícone literário na comunidade LGBTQ+, o livro sai da zona de estereótipos e embarca na descoberta de si mesmo e da coragem

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O que aconteceria se o filho da primeira presidenta dos Estados Unidos da América se apaixonasse pelo caçula da família real inglesa? Assim, sem mais delongas, esse é o enredo de Vermelho, Branco e Sangue Azul (2019), embora, de maneira nenhuma, possa ser resumido a apenas isso. Esse é o primeiro romance da autora estreante Casey McQuinston e, segundo palavras da própria autora, surgiu para ser uma “faísca de esperança e alegria” para todos que pudessem precisar.

Imaginado em um mundo um pouco melhor do que o que vivemos agora, na trama, a mãe do personagem principal se torna a primeira mulher no cargo de presidente na gestão seguinte a de Barack Obama. É fácil imaginar o tipo de esperança à qual Casey se refere.

As eleições presidenciais norte-americanas de 2016 geraram uma onda de desconforto e medo nas minorias, tal qual ocorreu no Brasil em 2018. A perspectiva de um presidente conservador e alimentado por preconceitos raciais e sociais dos mais diversos, lançou sobre a comunidade LGBTQ+ antigas incertezas e um prognóstico distópico. Essa insegurança, apesar de não ser abordada abertamente, segue como um paralelo ao universo do livro no qual, além de continuar com as políticas de apoio e defesa da comunidade, a presidenta tem, na sua própria equipe, funcionários abertamente gays, bissexuais e trans. Presidenta essa que é democrata, divorciada e chefe de uma pequena família birracial americana-mexicana. Pode ser melhor do que isso?

Alex Claremont-Diaz é um jovem de vinte e um anos que aspira ao cargo de diplomata e pretende seguir os passos da mãe na política. Mas todo esse carisma natural não funciona com o príncipe caçula de outra família influente. Henry de Gales, príncipe da Inglaterra, continua soando como um jovem insosso e educado demais, a ponto de irritar Alex diante de uma multidão de câmeras. Eu não vou contar o que acontece, mas esse pequeno problema se torna um caso internacional que precisa da união dos dois galãs — e daí resulta o desenrolar cada vez mais humano e longe da perfeição.

Os leitores acostumados ao mundo das fanfics (histórias escritas por fãs) vão perceber que a narrativa fluida se assemelha a uma e, pessoalmente, acho que isso faz subestimarem o enredo rico e crítico, que em nada perde por ser prazeroso de ler. Muito além do romance (mais do que bem desenvolvido, sem soluções milagrosas e personagens apáticos) o livro aborda temas como relações internacionais, políticas de governo e a imagem de figuras públicas, como no caso, a família presidencial. Uma crítica, que talvez até passe despercebida, gira em torno da presidenta, Ellen Claremont, já que ela não tem tempo para a família enquanto se envolve com a campanha de reeleição. Em uma discussão doméstica, a distância de mãe e filhos é colocada como ponto negativo, trazendo uma comparação bem observável com o que esperamos dos homens no papel de pais. Apesar da discussão dos personagens não levar a um consenso, fica visível como a carreira de Ellen traz tensões novas para dentro da família, um problema que não observamos com o pai, que também seguiu ao seu modo na carreira política, participando da vida dos filhos periodicamente.

Um armário e tanto

Não gosto de ser a portadora de spoilers, mas esse aqui pode muito bem não ser um para o leitor que se identifica com a temática LGBTQ+. Sair do armário, contar para os pais — e para si mesmo — é uma experiência por vezes aterradora e não há lar compreensivo que não reserve um ou dois momentos de suor frio. Essa sequer é uma realidade possível para muitas pessoas da comunidade. Imagine se isso seria possível e sem percalços para duas figuras públicas que influenciariam uma eleição inteira.

Com desenvoltura e um pouco de angústia, Alex atravessa o lento crescimento da noção de si mesmo e do poder que ocupa, do papel que desempenha, para encarar sua responsabilidade com as pessoas que quer representar. Inclusive, sobre perceber que é bissexual enquanto Henry se apresenta conclusivamente como gay. Essa também é uma discussão que não temos todos os dias. O apagamento de pessoas bissexuais ou pansexuais (a separação serve apenas para designação pessoal, já que nenhuma das orientações exclui pessoas trans) ainda é uma constante mesmo dentro da comunidade, gerando mais especulação e desconfiança do que compreensão.

Um dos detalhes mais interessantes é perceber que a percepção dos personagens sobre sua orientação sexual não é superficial e tímida (Imagem: Reprodução)

No clímax do confronto — e de agonia, pessoalmente falando do meu ponto de vista como leitora — quando Alex acaba exposto para o país todo, podemos pensar sobre como essa saída do armário nunca é única e derradeira para a comunidade LGBTQ+, mas se apresenta como desfile de explicações e novos momentos de espera. A exposição diante da família, do emprego, dos novos amigos, dos colegas de trabalho, dos vizinhos recém chegados, do desconhecido que cumprimenta com o pronome errado. Essa exposição nunca termina. De certa forma, o livro gera um grande alívio quando essa exposição se transforma em acolhimento e reafirmação para os personagens, mas na prática, ainda é um tema sensível.

Muito menos glitter

Os livros, e principalmente os filmes, têm se aproveitado do mercado LGBTQ+ para lucrar com personagens que nem sempre são explorados. O chamado Pink Money é o dinheiro que a comunidade dispõe, especialmente em doações políticas, mas contemporaneamente é usado em referência a produtos que se aproveitam das lacunas para tentar lucrar sobre. Um exemplo bem atual são os últimos filmes da saga Star Wars que deixaram subentendido que o personagem Finn poderia ter algo a mais com Poe, mas o desenvolvimento é tão irrisório que desaparece no cenário geral. Hoje sabemos que os cortes foram feitos pela Disney, que não estava “preparada” para um casal gay, apesar do público e do cenário serem favoráveis.

Um personagem negro e não hétero parece ter sido demais para a saga, apesar do envolvimento da dupla ser melhor que do suposto canal protagonista. (Imagem: Reprodução/Disney)

O que costumamos ver, desde que os personagens LGBTQ+ existem no cinema e nos livros, são estereótipos que preenchem espaços destinados aos “amigos do protagonista”, nunca ao próprio protagonista. Essa é uma ascensão perto do espaço anterior, destinado aos vilões imorais e problemas sociais a serem resolvidos. Hoje os papéis disponíveis se resumem grosseiramente a: o amigo gay que serve de suporte emocional, com ampla maturidade e conselhos de sabedoria superior; amigas lésbicas com problemas de controle da raiva e ações impensadas; amigos gays bastante afeminados que resolvem os problemas dos protagonistas com maquiagem e paetês brilhantes. Esses personagens geralmente não são desenvolvidos, servem apenas de suporte para os protagonistas; alguns ainda dispõem de sub histórias que avançam minimamente, prometendo esse desenvolvimento, e saem do plano de fundo para coadjuvantes. Pense a respeito. Existe pelo menos uma série onde você já tenha visto isso acontecer. Assim como personagens não brancos, personagens LGBTQ+ não dispõem do papel principal porque, pasmem, não são aceitos pelo público majoritariamente hétero e cisgênero.

Theo (à esquerda) é um personagens trans e gay no seriado O Mundo Sombrio de Sabrina e assim como Rosalind (direita) ficam na categoria de melhores amigos do protagonista branco. (Imagem: Netflix/Reprodução)

Em Vermelho, Branco e Sangue Azul isso obviamente não acontece, já que os personagens principais e os coadjuvantes são explorados de maneira habilidosa, desenvolvendo seus posicionamentos e personalidades em vários cenários. O personagem gay não é um arquétipo do gay afeminado ou extravagante — embora ele também pudesse ser — e o personagem bissexual não está “em dúvida”. As coisas apenas são como são, e eles são seres humanos complexos. Exatamente como os leitores.

Uma crítica que o livro recebe, e a maioria dos produtos com temática LGBTQ+ ou voltado a esse público alvo também recebe, tem a ver com a hipersexualização dos personagens ou o “exagero” nas cenas sexuais. Mas pasmem, adolescentes transam independente da orientação sexual que possuem. Isso tem mais a ver com educação sexual do que com a necessidade de censura, mas se for um problema, livros também contam com classificação indicativa e na Amazon ele possui indicação de dezesseis anos. No entanto, diante da quantidade de livros, filmes e séries que abordam casais heterossexuais de forma precoce e explícita, é um argumento que cai por terra. No mínimo, é um direito que a criança e o adolescente LGBTQ+ encontre personagens com os quais possa se reconhecer. E Alex é um ótimo personagem para essa ponte entre o leitor e sua própria realidade, já que ele busca ser fiel a si mesmo e ao que acredita, usando a voz que dispõem para ajudar outras pessoas.

Zona livre para heterossexuais

Apesar de livros com personagens gays e afins serem comumente segregados como “livros LGBTQ+”, não há nada que impeça uma pessoa fora da comunidade de ler. Aliás, os livros são na verdade catalogados por outros gêneros, mas a qualificação gay friendly ajuda a localizar essa temática dentro de outros temas maiores. Porque gays querem ler sobre personagens gays? Sim!

Pode parecer incompreensível para quem sempre se sentiu representado por personagens cisgênero ou heterossexuais, mas personagens “fora do padrão” ainda são uma novidade entusiasmante. Constantemente vemos anúncios de primeiros personagens gays de uma franquia, primeiros personagens trans, e não precisamos de primeiro casal hétero sendo anunciado, porque eles sempre foram representados. Assim como não é necessário dizer que um romance de época tem um enlace entre uma jovem pobre e um senhor de fortuna considerável, mas sim, é necessário dizer que existe um romance de época sobre uma florista e uma viúva. Como você saberia que existe se até pouco tempo atrás um livro desses seria considerado inadequado.

Nem precisando ir tão longe, nessa semana a deputada estadual de São Paulo, Marta Costa (PSD), tentou proibir propagandas com pessoas LGBTQ+ por considerar uma “influência inadequada para crianças”. Apesar de todos os pequenos avanços e a sensação de liberdade, os direitos básicos ainda são questionados, o que dirá o direito à representação em personagens verdadeiros e criados com respeito.

E você já leu um livro com personagens LGBTQ+ por vontade própria? Ou sentiu que não poderia compreender os personagens e os problemas pelos quais eles passam? Talvez seja hora de ler e sentir como é crescer cercado por personagens que não se parecem consigo, sem encontrar representação nos clássicos garoto-encontra-garota que nos cercam sem problema algum. Mas se precisa de uma ajuda, aqui vai uma lista de títulos que pode conhecer, depois é claro, de terminar Vermelho, Branco e Sangue Azul:

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Bruna Lago
Redação Beta

Estudante de jornalismo, 23 anos. Apaixonada por boas histórias.