CRÍTICA: “A Vida e a História de Madam C.J. Walker” retrata a autoafirmação da mulher negra nos EUA

A trama narra a evolução de Sarah Breedlove até a consolidação de seu império, mas deixa de lado informações importantes sobre ela

Tainara Pietrobelli
Redação Beta
7 min readApr 23, 2021

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Madam C.J. Walker é pioneira na indústria da beleza nos Estados Unidos (Foto: Netflix/Divulgação)

A Vida e a História de Madam C.J. Walker é uma série da Netflix lançada em 2020 que contém quatro episódios em uma única temporada. Retrata a história real da afro-americana Sarah Breedlove, que foi a primeira mulher a se tornar milionária nos Estados Unidos a partir do seu próprio trabalho.

Filha de pais escravizados, Sarah (Octavia Spencer) passou boa parte da vida trabalhando como lavadeira, uma rotina dura que só piorava com as constantes agressões do marido. O motivo da violência era o seu cabelo, que com a dura rotina e a falta de tratamento especializado, começou a cair. Nesse contexto, um acontecimento muda todo o seu destino e se inicia justamente a partir de quem — por uma longa parte da trama — será a vilã.

Enquanto chora após ser ferida pelo companheiro, a vendedora Addie Munroe (Carmen Ejogo) bate à sua porta para oferecer produtos capilares e, comovida com o estado de Sarah, ela promete ajudá-la.

A partir daí, assistimos cenas em que a comerciante trata os cabelos da lavadeira, aparentemente, com zelo e carinho. Logo, uma boa impressão sobre a personagem se cria, até que após mais um tratamento, ela diz: “Agora pode buscar as roupas que estão na lavanderia”. Com essa cena, toda a percepção sobre Addie se altera e fica claro que a “ajuda” oferecida era na verdade uma troca de serviços: ela cuidava do cabelo, Sarah lavava suas roupas.

Addie cuidava do cabelo de Sarah em troca do seu trabalho. (Foto: Netflix)

Racismo escancarado na maior parte das cenas

Um ar de superioridade por parte de Addie começa a se mostrar nas cenas seguintes. Ela, que é branca, treina outras mulheres para vender seus produtos de porta em porta. Isso motiva Sarah a também se tornar uma vendedora. Apesar da exploração ser muito visível, a personagem carrega um sentimento de gratidão por Addie, e quer ajudá-la a expandir as vendas.

Ao conversar com a vendedora sobre a possibilidade, a protagonista da série escuta que não serve para vender seus produtos. A futura Madam C.J. Walker não se dá por satisfeita com a resposta e pega alguns frascos escondida para vender. Vai às ruas e, com habilidade, conversa com outras mulheres pretas, dizendo que o produto mudou sua vida. O resultado da fala empolgada é a venda de todos os frascos, e ela volta à casa de Addie para lhe dar o dinheiro.

Para sua surpresa, a dona dos produtos alega que ela a roubou. Após uma série de comentários preconceituosos, Sarah decide ir embora e criar a sua própria linha de produtos para cabelo, feitos especialmente para mulheres negras.

Na sequência a trama ganha outros ares, onde o empreendedorismo nato toma conta do enredo. Sarah não quer apenas vender produtos para cabelo, ela quer ser milionária e tem certeza de que conseguirá.

Afinal, o que poderia impedir uma mulher ambiciosa, talentosa e naturalmente empreendedora de levantar o seu império? No caso de Sarah a resposta é óbvia e os personagens não têm dificuldade em admitir o motivo: ela é uma mulher negra!

Apesar do racismo explícito por conta da cor da sua pele, Sarah não desistiu. Porém, passou por situações complicadas. Muitas delas arquitetadas por Addie, que insistia em competir com Madam C.J. Walker no intuito de derrubá-la. Ou, quando o grande investidor Booker Washington (Roger Guenveur Smith) buscou diminuí-la ao tentar um financiamento para o seu salão de beleza, simplesmente por ser negra. É o racismo que justifica a fala de tantos personagens que tentam incentivá-la a parar onde está, sem conquistar novas oportunidades: “era uma negra, para que ser tão ambiciosa?”.

No último episódio, é possível acompanhar mais uma cena comovente. Um dos personagens é morto ao levar o sobrinho para tomar sorvete. O motivo? Ter respondido de forma “desrespeitosa” a um branco, enquanto defendia a criança. Então ele foi amarrado e pendurado em uma árvore.

O papel da mulher na sociedade da época

Outro ponto abordado com excelência na minissérie são os limites para a conduta feminina em meados de 1908. Os homens empreendiam, as mulheres não. No terceiro episódio ocorre uma convenção para os “homens negros dos negócios” e Madam C.J. Walker não pode participar por ser mulher. Ela até chega a ser aceita, mas é convidada para a confraternização feminina que ficava justamente na cozinha.

Sarah é rebelde, à frente de seu tempo. Aproveita a oportunidade para dar um show de verdades às mulheres que estavam lá, ressaltando que o lugar delas não era na cozinha ou no tanque. Nesse momento uma personagem surge trazendo novamente a esperança da sua mudança de postura. Addie observa toda a conversa, e quando Sarah vai até o palco do congresso, mesmo sem ser convidada, ela é a primeira a aplaudir.

Relacionamentos abusivos e violência doméstica eram questões corriqueiras na época, mas seguem acontecendo fortemente nos dias de hoje. A série consegue transmitir com clareza a realidade naqueles anos, mas também toca em um ponto sensível da atualidade.

Os sonhos de Sarah ganham forma

Já no primeiro episódio novos elementos narrativos aparecem e provam que mesmo retratando o século passado, a obra pode trazer edições modernas para ilustrar os sonhos e pensamentos de Sarah. Assim começamos a ter contato com trilhas sonoras de altíssima qualidade, com intérpretes que possuem a voz tão similar à de Madam C.J. Walker, que parecem vir dela mesma. Espetáculos musicais também se tornam mais presentes, mas o ponto alto é o paralelo feito com Sarah e Addie em um ringue, lutando e sendo nocauteadas de acordo com o andamento da trama.

Recordações da protagonista também são trazidas à tona ao longo da série, principalmente as lembranças da infância, quando trabalhava na lavoura de algodão com seus pais. Essas cenas ganham um tom acinzentado, que facilita o entendimento do espectador sobre o que se trata. Mas há um ponto negativo que não pode ser deixado de lado: durante as lembranças, vemos apenas a personagem principal e os pais. No entanto, na vida real, Sarah teve quatro irmãos.

Exemplo de espetáculo musical presente na série (Foto: Netflix)

O final de Sarah e o início de uma era

Além de descobertas que irão comprometer o futuro de Sarah, a parte final também conta com o retorno do agora ex-marido Charles James Walker (Blair Underwood) e a descoberta da homossexualidade da filha Lelia (Tiffany Haddish). Para aumentar a carga de estresse de Sarah, Addie retorna à trama trazendo novidades nada agradáveis. Acontece que ela descobriu que o famoso Elixir de Walker é uma imitação do seu produto.

Sarah Breedlove, a famosa Madam C.J. Walker, como ficou conhecida, mudou a vida de mais de 40 mil mulheres. A minissérie mostra com excelência a sua importância para a independência e autoaceitação de mulheres negras.

Ao final, é possível ver o desfecho de boa parte dos personagens da trama na vida real. E o melhor é que o “Sistema Walker”, composto por produtos de beleza, treinamentos e métodos de trabalho desenvolvidos especialmente para mulheres negras, seguiu sendo administrado de acordo com o legado de Sarah, que era seu grande sonho.

Elixir para cabelos da Madam C.J. Walker (Foto: National Museum of African American History and Culture)

O que ficou pelo caminho…

A minissérie carrega a responsabilidade de retratar uma história real, e isso limita em muitos aspectos as opiniões sobre o andamento da narrativa. No entanto, algumas coisas passaram batido ao longo dos episódios.

1°. No início do primeiro episódio faltam detalhes sobre o contexto em que Sarah está inserida. Vemos o seu dia a dia, mas pontos consideráveis, como a origem dos seus pais e infância, são deixados de lado.

2°. O que aconteceu com o primeiro marido de Sarah? Morreu? Ela se divorciou? Como a personagem se livra do relacionamento violento? Nenhuma informação sobre. Inclusive, na vida real Madam C.J. Walker foi casada três vezes. No entanto, só vemos informações sobre Charles. Do anterior, nem se sabe o nome.

3°. Lelia, que durante boa parte da série buscava uma saída para viver o amor com Esther (Mouna Traore), não teve um desfecho individual, ficando à sombra da mãe.

4°. E o mais importante de tudo: há muita ficção no início do primeiro episódio, quando Addie se recusa a aceitar Sarah como vendedora. Acontece que na vida real Breedlove foi vendedora de Addie, sim! Esse fato põe em dúvida se toda a rivalidade das duas seria além do natural, por venderem para um mesmo nicho de clientes.

Sem dúvida a minissérie traz à tona assuntos relevantes e uma personagem importante para o feminismo, empreendedorismo e movimento negro, mas pecou ao omitir informações importantes sobre Sarah e sua família.

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