CRÍTICA: A vida e obra de um dos maiores gênios do samba, Cartola

“Música para os Olhos” resgata do esquecimento um dos símbolos da música e da alma brasileira

André Martins
Redação Beta
4 min readSep 11, 2020

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O documentário Música para os Olhos mostra a história de Cartola, um dos precursores do samba de raiz e referência para muitos músicos que se inspiram no gênero. Porém, o artista foi esquecido e até mesmo injustiçado no cenário musical brasileiro, que não deu valor à sua genialidade. Basta lançarmos olhos sobre seu triste fim. Morreu pobre, sem o sucesso devido para suas músicas.

Capa do disco mais famoso de Cartola “Verde que te quero rosa”. (Foto: Ivan Klinger/Divulgação)

O início do filme é melancólico. Nos vemos em meio ao enterro de Cartola. Ao fundo, toca um de seus sambas clássicos, arrastado e profundo, com uma letra tão melancólica quanto o momento: "tudo acabado e o baile encerrado". Diferente da solidão da canção, a imensa massa de pessoas a volta se une pela adoração que existia pelo cantor.

No decorrer das cenas, podemos perceber que o documentário é uma sequência enorme de um grande trabalho de pesquisa, rico em fotos, vídeos e narrações feitas por Cartola. O material destrincha todos momentos do cantor até o seu fim, sem manter uma narrativa linear, passeando por momentos aleatórios.Vemos de perto detalhes importantes da cultura carioca como, por exemplo, a forte conexão com o carnaval, principalmente a Estação Primeira de Mangueira — escola de samba da qual o músico foi diretor e para a qual destinou suas cores tão emblemáticas, o verde e rosa.

Cartola teve uma vida boêmia e sofrida. Contado por amigos próximos, o documentário revela momentos tensos, como quando o músico foi largado pela família aos 17 anos, seu alcoolismo e a sua incrível habilidade como compositor de sambas.

A história passeia por detalhes de entrevistas dadas por Cartola, além de conversas com consagrados músicos, como Zé Kéti, Paulinho da Viola, Nelson Sargento e muitos outros. Artistas que se faziam presentes em bares e favelas cariocas, nas tradicionais rodas de samba. A história se desenrola como em um bate-papo descontraído, apresentando como eram os locais em que Cartola vivia.

Ao longo do documentário, os momentos tristes de Cartola superam em muito os momentos bons. Desde o citado abandono, o músico ainda teve várias outras frustrações em sua carreira musical. Trajetória, aliás, que começou tardiamente.

Enriquecer através da música nunca foi uma realidade para Cartola. Além das melodias, chegou a trabalhar como segurança de estacionamento e foi dono de um bar com sua mulher Dona Zica.

Capa do disco “Cartola II”, com a sua esposa, Dona Zica. (Foto:Discos Marcus Pereira/Divulgação)

Apesar das várias decepções, os entrevistados enfatizam como Cartola vivia de uma forma simples e feliz. Irreverente, foi um sujeito ímpar para a música brasileira. O documentário mostra a singularidade de Cartola no cotidiano, detalhando a relação com a música, desde as suas faltas em ensaios para beber até o rápido processo de composição. O sol nascerá, um de seus maiores sucessos, foi gravado em 40 minutos.

O documentário não se estende muito nas emoções de Cartola, sua intimidade com seu pai ou com Zica. O objetivo do longa é outro. Mesmo com 1h30m de história, parece que ainda cabia muita coisa. Contudo, é preciso reconhecer o esforço da produção em resgatar a trajetória do compositor. Seja através dos áudios de qualidade ruim para ouvir ou as fotos e vídeos recuperados, somos transportados para um lugar mais próximo do passado do músico.

A parte fundamental, suas músicas, contribuições e composições para outros artistas são a trilha sonora. A todo momento elas vêm à tona, se encaixando nas cenas, percorrendo todo o repertório de Cartola, sem focar em seus álbuns, já que Cartola lançou seu primeiro disco 6 anos antes de morrer aos 66 anos

A vida e a genialidade de Cartola são muito bem representadas nesse documentário. As principais vozes do samba contam a história de um sujeito que sofreu duros golpes em sua vida, mas marcou a música brasileira cantando suas confidências, de forma potente e íntima. Cartola costumava comparar a sua vida a um faroeste, onde o mocinho só vencia no final. No documentário, início e fim mostram cenas de seu enterro, que representa sua vitória, seu reconhecimento na música.

O documentário vale a pena ser conferido para entender a mística dos anos áureos do samba, da MPB e da Bossa Nova, que se entrelaçam à história de Cartola. Suas composições foram gravadas por inúmeras vozes da música brasileira, como Chico Buarque e Nara Leão. Como um astro que cruza os céus em segundos e nunca mais é esquecido por aqueles que o viram, o sambista eternizou suas composições na alma brasileira.

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