CRÍTICA: Bem desenvolvido, “Fuja” é um suspense tenso e agoniante
Filme lançado pela Netflix reúne a atriz novata e cadeirante Kiera Allen, com a veterana Sarah Paulson
O desenvolvimento de Fuja começou em 2018, quando o cineasta indo-americano Aneesh Chaganty escreveu o roteiro em conjunto com Sev Ohanian. A Lionsgate, produtora de filmes canadense responsável por lançar longas como Jogos Vorazes, John Wick e Mercenários, seria responsável por produzir e distribuir o sombrio suspense familiar, que acompanha a história de uma mãe controladora e uma filha que passa os dias doente e presa em casa. Somente em 2020 que ele seria, de fato, lançado.
No entanto, com o agravamento da pandemia do novo coronavírus e o fechamento das salas de cinema, a companhia vendeu os direitos de Fuja para o serviço de streaming Hulu. O filme viu a luz do dia, pela primeira vez, em 20 de novembro do ano passado e tornou-se o longa metragem mais assistido da história da plataforma no final de semana de lançamento. Os direitos de reprodução internacional dele foram adquiridos pela gigante Netflix.
Aqui no Brasil, no dia 2 de abril, pudemos conhecer a história da adolescente cadeirante de 17 anos Chloe Sherman, que é educada em casa pela sua mãe, Diane, e sofre de diversas doenças. Asma, diabetes, arritmia cardíaca, paralisia e hemocromatose impedem a jovem de sair de casa e ter uma vida comum. Passando os dias sendo cuidada pela mãe, Chloe estuda sozinha, faz fisioterapia, toma remédios e constrói projetos em seu quarto. Sem iPhone e com supervisão programada do acesso ao computador de casa, ela é praticamente uma refém.
O suspense, que possui uma atmosfera tensa e obscura, nos faz acreditar que algo sobrenatural está prestes a acontecer. Sufocante, acompanhamos Chloe no seu dia a dia, enquanto aguarda a carta de resposta da Universidade de Washington, instituição de ensino na qual ela sonha entrar.
No entanto, mesmo com uma dieta rigorosa, fazendo exercícios físicos regularmente e mantendo um relacionamento bastante agradável e afetuoso com a mãe Diane, Chloe anseia sair de casa. Logo no início, Fuja mostra a mãe da jovem em uma reunião da escola da filha, afirmando estar feliz que ela poderá sair de casa e conquistar o mundo, coisa que não vemos tão cedo durante os 90 minutos de duração do longa.
O desenrolar da história começa quando Chloe descobre um remédio que foi receitado para a sua mãe, e passa a ser “obrigada” a tomá-lo. A partir daí, a adolescente começa a se questionar a respeito de todas as atitudes de Diane e passa a suspeitar de algo mais pesado que possa estar por trás das suas doenças e do comportamento da mãe.
O suspense é digno de causar dores de estômago de nervosismo, e conquista os telespectadores pela atuação das duas atrizes principais. Sarah Paulson, conhecida por seus papeis na televisão estadunidense nas séries antológicas do canal FX: American Horror Story e American Crime Story, e na série da Neflix: Ratched, é uma ótima antagonista e interpreta com maestria, mais uma vez, uma personagem desequilibrada emocionalmente.
A atriz deixou de lado os papeis de mocinha forte e deu uma guinada em sua carreira para aventurar-se como anti-heroína ou antagonista. Sua interpretação de Diane Sherman é hipnotizante e nos faz sentir raiva e desgosto das atitudes tomadas por ela.
No entanto, o grande destaque de Fuja vai para a iniciante Kiera Allen. A atriz, que também é cadeirante fora das telas, é somente a segunda pessoa com essa deficiência a protagonizar um filme de suspense em mais de 70 anos. A última vez que isso aconteceu foi com a atriz Susan Peters, quando ela estrelou The Sign Of The Ram, em 1948. Kiera cativa os espectadores com sua força e suas emoções.
A escolha de colocar uma atriz com deficiência no filme contribuiu significativamente para a narrativa e estrutura do longa. Em inúmeros momentos tornou-se angustiante observar Chloe se locomover com muita dificuldade.
Em uma das cenas de maior destaque, por exemplo, Chloe está trancada em seu quarto e pretende fugir de casa. Para isso, escapa do cômodo através da janela, no segundo andar, e se arrasta por todo o telhado utilizando as mãos, enquanto a câmera segue-a na tentativa de chegar ao outro quarto.
Com pouquíssimas personagens, Fuja é um filme que te agarra pelo pescoço e te deixa sem ar. A atuação de Kiera e Sarah é tão “no ponto” que nos deixa extremamente conectados assistindo a angustiante relação entre mãe e filha. Quase todo o longa se passa dentro da casa delas, afastada do bairro e de outras pessoas. Essa sensação de vazio desesperador ocorre durante toda a película, que, vez ou outra, nos apresenta lugares cheios e movimentados, como o cinema, a farmácia e o hospital da cidade, para nos tirar ainda mais o fôlego.
Semelhante a uma briga de gato e rato, Fuja mostra a desesperadora necessidade de sobrevivência de Chloe. Com direito a manipulação mental, fugas, momentos de tensão e agressão, o filme é uma ótima opção, tanto para quem gosta, quanto para quem não gosta de obras do gênero. Sutil, o longa possui um delicado vazio que te faz querer mais.
No entanto, apesar do brilho das atrizes e do ritmo sufocante, o roteiro possui alguns momentos previsíveis e não responde algumas perguntas que a narrativa aponta, como por exemplos as cicatrizes nas costas de Diane e porque ela decidiu esconder o remédio para dar à filha.
Isso é explicado pelo diretor do filme em vídeos publicados na conta do YouTube do streaming Hulu. Foram feitos cortes na edição e alguns momentos importantes foram excluídos da versão final. É possível ter a resposta das perguntas assistindo as cenas deletadas que foram publicadas aqui e aqui.
Outro grande destaque do filme é a inclusão de pessoas com deficiência. Não só nas personagens, mas também ao dar espaço de destaque à atriz iniciante que também é cadeirante. As limitações da personagem tornam toda a trajetória de Chloe muito mais real e compreensível, além de nos causar uma empatia muito maior em relação a ela.
Fuja, além de ser um ótimo suspense, conquistou os espectadores e entregou um convincente trabalho. A cereja do bolo é a atuação impecável de Sarah e Kiera, que nos deixam com um eterno ponto de interrogação durante a narrativa, e que nos surpreendem nos minutos finais com uma reviravolta inesperada.