CRÍTICA: Bertolucci analisa o perfil do fascista italiano
Em “O Conformista” (1970), diretor italiano traz doses de psicanálise para entender por que o homem comum é seduzido ao fascismo
Bernardo Bertolucci pertence ao panteão do cinema. Aclamado por O Último Imperador (1987), ganhador de nove Oscars (incluindo Melhor Diretor e Filme) e criticado pela forma como conduziu a cena de estupro de Marlon Brando com Maria Schneider em Último Tango em Paris (1972), já atingira o ápice da carreira antes de esses episódios sequer serem imaginados. Há 50 anos, o diretor italiano lançava sua obra máxima, O Conformista (1970) — disponível na plataforma de streaming Amazon Prime.
Antes mesmo de O Conformista, Bertolucci já apontava as direções em que seguiria. Com Antes da Revolução (1964) se inicia sua fase política, discutindo a retórica marxista na Itália pós-guerra com pitadas de psicanálise — que seriam levadas ao extremo em depois. Em meio à efervescência política do Maio de 1968, o diretor lança Partner, exercício cinematográfico compulsivamente experimental e não menos político, quase um chamado às ruas em busca de revolução.
Com essas duas obras anteriores a O Conformista, Bertolucci amadureceu sua linguagem cinematográfica, demonstrada a cada frame do filme hoje quinquagenário. A obra, adaptada do livro homônimo do quase Nobel da Literatura Alberto Moravia, discute a guinada do homem “comum” e burguês, personificado na figura de Marcello Clerici, rumo aos meandros da polícia fascista italiana em 1936. A narrativa, estruturada a partir de flashbacks e beirando o onirismo, nos apresenta a jornada de Marcello até cumprir a missão dada pelo governo do ex-primeiro-ministro da Itália Benito Mussolini: matar seu antigo professor de Filosofia, Quadri.
Como a narrativa se estabelece a partir das memórias de Clerici, estamos vendo seu ponto de vista perturbado e reprimido. Há um momento importante, lembrado por Marcello no final da primeira parte da trama, que catapulta todas aspirações de conformidade do protagonista. Com 13 anos, ele acredita ter matado, com um tiro, o chofer homossexual de sua família, Lino. A cena, relembrada por Marcello em sua viagem para assassinar Quadri, tem ares nostálgicos e cores saturadas ao ar livre, contrastando com o ambiente opressor que se torna o quarto de Lino. O diretor dá a entender que, além do possível assassinato, havia entre os dois um relacionamento sexual. Com isso, há, em Clerici, a homossexualidade latente durante a trama.
O acontecimento é a causa, se o filme for analisado através da psicanálise freudiana, para as ações de Marcello. A jornada do protagonista é uma catarse ao contrário: ao invés de libertar-se dos sentimentos reprimidos, ele os abraça e integra aquilo que o oprime — o Estado Fascista. Bertolucci e Moravia parecem ter lido e relido Psicologia de Massas do Fascismo, de Wilhelm Reich, um dos poucos estudos a abordar o fascínio do homem médio e reprimido sexualmente para um sistema que transforma essa repressão em violência contra o que for diferente (um paradoxo, considerando que, nessa visão, Marcello seria justamente o “diferente”, e assim, ele oprime a si mesmo). Bebendo dessa fonte, o cineasta busca analisar a psicologia do fascista, não a ascensão do regime (isso ficaria para Novecento, épico de quase 4h lançado pelo cineasta em 1976).
No entanto, nada disso seria possível sem termos um Marcello frio, com trejeitos estranhos e pouco sorridente. Jean-Louis Trintignant, pouco após ter sua atuação em Z (1969), de Costa-Gavras, premiada em Cannes, confere a Marcello tudo isso e muito mais. Em algumas cenas, o ator se mostra retraído, oprimido entre diversas pessoas, como na cena da dança, em que Anna, Giulia e os foliões fazem um círculo ao seu redor, deixando Marcello desorientado. Trintignant contrapõe os momentos de desorientação com impulsos raivosos, cortes abruptos em falas de sua esposa e frieza em relação a todos, menos com Anna — até a cena de sua morte.
Impossível seria, também, construir a alma atormentada e paradoxa de Clerici sem a fotografia exuberante de Vittorio Storaro, hoje uma figura quase mítica no meio. Vencedor de três Oscars por Apocalypse Now (1979), Reds (1981) e O Último Imperador (1987), Storaro faz seu melhor trabalho, para muitos, na construção deste universo expressionista e no uso da arquitetura fascista para projetar o protagonista como uma mera sombra em meio aos prédios absolutistas e símbolos perfeitos da comunicação artística do regime totalitário. As cores naturais predominam nas cenas em que Marcello volta ao seu passado; seu presente é frio, assim como a fotografia, reforçada pela iluminação branca e pela neve presente no interior francês.
Outro expoente em sua área a trabalhar no longa é o compositor francês Georges Delerue, mais conhecido por seu trabalho em Platoon (1986), de Oliver Stone. Aqui, a suíte criada por Delerue é deslumbrante, a flauta soa melancólica em momentos recordados por Clerici, mas o todo fica aquém do brilhantismo produzido anteriormente por Delerue em Theme de Camille, trilha de O Desprezo (1963), filme de Jean-Luc Godard — e, curiosamente, adaptação de outro romance de Moravia.
Falando no escritor: mesmo com suas raízes fincadas na psicanálise e seus profundos questionamentos sobre o homem italiano hipnotizado pelo totalitarismo italiano, Bertolucci considerava seu filme diferente do romance de Moravia. Em entrevista recuperada para o documentário Bernardo Bertolucci: What Is the Purpose of Cinema?, o cineasta, logo após o lançamento do filme, elucida a principal distinção entre as duas obras:
“Moravia deu sua interpretação, eu dei outra. A conclusão de Moravia é diferente da minha. Fui fiel à história, aos personagens, e infiel porque dei minha própria interpretação. No livro de Moravia, que é um grande romance trágico, há a presença do destino, como nas tragédias clássicas. No meu filme, não há destino. No meu filme, a função do destino é tomada por outra coisa, pelo subconsciente individual”.
Ainda desta sua entrevista é possível discutir outra frase proferida pelo diretor italiano. “Não preciso transmitir mensagens, nem fazer afirmações. Me interessa seguir certas luzes e sombras que passam nos olhos dos personagens”, diz o diretor do filme. Exemplificando sua afirmação final de que “interessa seguir certas luzes e sombras que passam nos olhos dos personagens”, há a discussão entre Marcello, aprendiz, e seu mestre, Quadri, sobre a alegoria da caverna de Platão.
Storaro e Bertolucci reproduzem, envolta em jogos de luzes e sombras a fim de emular o pensamento de Platão, a alegoria perfeita para Marcello: prefere a escuridão ou somente ver sombras ao fundo da caverna. Vê, no fascismo, a ilusão de normalidade. Por isso, sua missão é matar Quadri, aqui representado como o homem que volta à caverna para avisar os outros sobre o mundo de fora, o mundo das ideias. Marcello não quer ideias: quer ser “normal”.
Por fim, realiza sua missão não com os próprios punhos: seus colegas fascistas matam Quadri e sua esposa, Anna. Em particular, a morte de Anna é impactante: ela vai até Marcello, que a olha, desconsidera sua súplica e observa sua morte. Mesmo com uma pistola ao lado, não consegue matar a mulher (o personagem mostra, ao longo da trama, uma veneração, depois aversão às armas, mais uma referência a Freud e sua teoria de que as armas são símbolos do órgão masculino e da masculinidade em geral).
O final do filme reserva uma surpresa a Marcello: ao caminhar pelo Coliseu, após a queda de Mussolini, com seu amigo cego e fascista Ítalo — em uma alusão nada sutil à cegueira italiana durante o período —, reencontra, com vida, o ex-chofer Lino. Seduzindo um garoto em meio às comemorações da deposição do regime na Itália, Lino é surpreendido com a acusação do assassinato dos Quadri, vinda de Clerici, e corre. Marcello vira-se, então, para Ítalo e faz o mesmo, acusando-o de ser fascista. O frame final mostra Trintignant quebrando a quarta parede ao olhar na direção do jovem que Lino estava seduzindo.
Bertolucci finalmente finaliza a jornada de Marcello: em seu anseio por normalidade, percebe, ao ver que Lino está vivo, que a busca foi em vão. Sua corrida acabou. Ao olhar para a câmera, percebe que não adianta mais negar os desejos de seu subconsciente.
A ambiguidade do final é proposital. O diretor do filme, entrevistado em 2014 — quatro anos antes de sua morte — , afirma que “O Conformista foi feito quando, no final da década de 1960, eu mudei a engrenagem do cinema que fazia: o cinema dos anos 60 foi a década do autor, enquanto eu estava fazendo filmes para os pequenos cinemas e eles eram um monólogo. Estava sempre falando comigo mesmo… Com O Conformista meu cinema entra numa forma de diálogo. Então, antes de O Conformista eu não precisava de uma audiência. Com ele, eu realmente senti que queria dialogar com a audiência”. Na busca por diálogo com seus espectadores, deixa o final em aberto para variadas interpretações, reforçando o caráter subjetivo da arte em si.
Assim como Martin Scorsese analisou, em Taxi Driver (1976), o homem norte-americano pós-guerra do Vietnã, com suas neuras, traumas e repressões providas por uma sociedade que viu suas revoluções domésticas falirem diante de seus olhos através do governo Nixon, Bernardo Bertolucci promove, na obra-prima de sua carreira, o estudo do homem comum e sua adoração por regimes autoritários e violentos. Ao alinhar Freud e Reich com seus ideais revolucionários, consegue fazer um dos estudos de personagem mais aprofundados da história.