CRÍTICA: “Morto não fala” mistura cadáveres, fantasmas e problemas sociais
Filme brasileiro quebra a lógica das tramas de terror tradicionais ao trazer questões morais para a narrativa
O cômico e o macabro marcam as primeiras cenas do filme brasileiro Morto Não Fala, lançado em outubro de 2019. O longa nos surpreende com um terror sobrenatural, de qualidade e que, há muito tempo, não se via no Brasil. Dirigido por Dennison Ramalho e com roteiro de Cláudia Jouvin, o filme é uma adaptação de um conto do jornalista Marco de Castro.
Na trama, o ator Daniel de Oliveira vive Stênio, um funcionário do turno da noite no necrotério do Instituto Médico Legal (IML). Ele possui o dom, ou melhor, a maldição de falar com os mortos. Os cadáveres conversam com o protagonista com muita naturalidade, mexendo somente o rosto em um misto de uma maquiagem incrível com computação gráfica — que, entretanto, deixa a desejar. Muitas vezes baleados por facções criminosas, esfaqueados ou até mesmo vítimas de deslizamentos, eles contam suas histórias de vida para Stênio. A cada corpo que chega no IML, vê-se mais uma evidência de uma cidade violenta.
Além dessa realidade dura no trabalho, Stênio não tem uma relação saudável com a família. O protagonista fica pouco tempo com os filhos por conta de uma jornada laboral intensa, e sua mulher, Odete (Fabíula Nascimento), é amante do dono da padaria do bairro. Ironicamente, é la que Stênio bebe todas as manhãs antes de ir para casa. Muitas vezes o filme nos dá a sensação de que estamos vendo um thriller americano, mas a ambientação — criada por elementos como a casa do protagonista, a padaria e as ruas de São Paulo — nos lembra que se trata de um longa brasileiro.
As cenas paranormais começam quando se vê um episódio de vingança e, depois, quando um dos mortos assombra o protagonista. É aí que a obra começa a apresentar todos os elementos que um filme de terror tem a oferecer, como vultos, aparições no espelho, portas batendo e móveis se arrastando.
Tudo isso é complementado por uma trilha sonora que dialoga com as cenas, mas sem tentar “forçar” o susto, o que é bem comum em produções do mesmo gênero. A fotografia, que é texturizada e apresenta tons acinzentados e esverdeados, também conversa com os cenários, sem apelar para uma escuridão costumeira.
Apesar de parecer um pouco clichê que filmes de terror apresentem uma história que começa em um IML, Morto Não Fala traz uma história bem construída, com bons personagens, além de ser inquietante, intrigante e assustador na medida certa. De forma orgânica, o filme consegue mesclar cadáveres, assombrações, problemas familiares e sociais, trazendo ao público um novo e pouco explorado gênero de filme brasileiro: terror urbano.