CRÍTICA: “Mulheres Apaixonadas” é uma trama atemporal

Dezoito anos depois da primeira exibição, a novela de Manoel Carlos traz abordagens importantes para o momento atual

Letícia Costa
Redação Beta
8 min readApr 9, 2021

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Há quem diga que Mulheres Apaixonadas conta a história de mulheres problemáticas capazes de cometer loucuras por amor. O certo é que o folhetim escrito por Manoel Carlos e exibido pela primeira vez em 2003 na TV Globo é um clássico das produções brasileiras e ainda contribui — e muito — para a teledramaturgia. Não faltam motivos para isso.

Em exibição no Canal Viva, da TV paga, desde agosto de 2020 e com mais de 200 capítulos, a trama traz sinais de atemporalidade e, não à toa, ainda sobe hashtag nas redes sociais e vira até trending topic no Twitter. A novela retrata histórias de violência contra mulheres e idosos, o perigo nas ruas com os riscos da flexibilização do porte de armas, episódios de homofobia e outros assuntos que sustentam a importância da reexibição da trama 18 anos depois.

Não há quem não lembre de algum pequeno trecho ou acontecimento da trama: tem a Santana (Vera Holtz), “a maluca que era ciumenta”; “a mulher que toma um tiro no Leblon ao som de Linkin Park”; essas e outras referências marcam o imaginário das pessoas.

A Helena (Christiane Torloni) escolhida por Manoel Carlos para protagonizar a trama, casada com Téo (Tony Ramos) e que termina a trama com César (José Mayer) se sobressai como uma personagem prestativa, atenta aos problemas dos outros e sempre buscando uma maneira de ajudar. Cansada da rotina, é comum ouvir Helena falar que “está cansada e quer viajar”. Talvez precisasse de mais tempo para si para poder viver melhor.

Hilda (Maria Padilha), Helena e Heloísa (Giulia Gam) são três irmãs que vivem realidades bem diferentes ao longo da trama. (Foto: Reprodução/TV Globo)

A violência doméstica protagonizada por Raquel (Helena Ranaldi), que frequentemente é agredida pelo marido Marcos (Dan Stulbach), revolta e traz sinais de um amor doentio. Na época, a abordagem repercutia as punições para agressores no tempo em que não contávamos com a Lei Maria da Penha — sancionada somente em 2006. A personagem de Helena Ranaldi é professora de educação física na Escola Ribeiro Alves.

Quando Marcos aparece na trama, começamos a (tentar) lidar com as frequentes cenas do psicopata agredindo a professora. O jeito gentil esconde as atrocidades de que ele é capaz. Nós, que já conhecemos, não caímos no conto do vigário nem por um segundo sequer. Entre as piores cenas de agressão sofridas por Raquel, uma acontece no dia de seu aniversário, quando Marcos a agride com uma raquete, nua, sem possibilidade de defesa. A cena é terrível, desoladora.

Marcos ameaçava denunciar o romance de Raquel e Fred aos jornais. A professora tinha medo dos ataques por ter uma família renomada e sofrer com represálias. (Foto: Gianne Carvalho/TV Globo)

Em momentos como esse, é impossível não se colocar no lugar de uma mulher vítima de violência. Sempre que Raquel aparecia sendo agredida, eu evitava assistir. Em alguns casos, era só o som de Raquel gritando, pedindo por ajuda: a TV então, vai para o mudo. O coração fica apertado.

A cena emblemática de Raquel chegando em uma Delegacia Especializada no Atendimento a Mulher (Deam) causa comoção e serve como um alerta. Era o momento pelo qual todos torcíamos. Manoel Carlos foi sensível e trouxe um toque didático para a cena: em todo o momento, perguntava-se o que acontecia com o agressor após a denúncia.

Na época, a pena máxima era a prestação de serviços comunitários. A mensagem, no entanto, teve sucesso: após a procura de Raquel, somente a delegacia especializada do Rio de Janeiro teve um aumento de mais 40% dos registros de casos de violência doméstica.

Denúncia feita por Raquel mobilizou outras mulheres a procurarem a DEAM no Rio de Janeiro (Foto: Twitter/Reprodução)

O Canal Viva também não deixou que a abordagem ficasse apenas no passado: em todas as sequências em que Raquel sofreu violência doméstica, utilizava a #ViolênciaContraMulherÉCrime no cantinho da tela. Um vídeo em que mulheres explicavam as formas de violência e como procurar ajuda também era transmitido sempre na sequência dos ataques vividos por Raquel.

Na primeira vez que vi a hashtag, senti uma emoção e tive a certeza do quão importante está sendo transmitir esse recado, principalmente em tempos de pandemia, quando o isolamento social aumentou os casos de violência doméstica por todo o Brasil.

Vídeo exibido pelo Canal Viva sempre que Mulheres Apaixonadas aborda a violência doméstica (Vídeo: Youtube/Reprodução)

O momento mais aguardado

Curiosa, eu ia nos resumos ver quantos capítulos faltavam para o 150. simplesmente o mais esperado por quem já assistiu duas vezes a novela — na primeira vez, com apenas cinco anos de idade. Eu precisava reviver em detalhes o primeiro passo para a morte da Fernanda (Vanessa Gerbelli) depois de tantas percepções sensitivas de Salete (Bruna Marquezine), que temia pela morte da mãe após encontros com um anjo, que aparecia nos seus sonhos durante a noite. Quando ela apareceu “com a roupa da morte”, pensei: “tá chegando”. Era só o começo.

Fernanda estava na carona de Téo, que ia para um almoço com Helena para contar sobre a paternidade do filho do casal, Lucas (Victor Cogulo), fruto de um envolvimento do músico com Fernanda no passado. Helena pensava que Lucas era adotado.

O momento mais aguardado é aquele tiroteio no Leblon após uma tentativa de assalto. Téo se dá conta do pedido da Salete para salvar sua mãe da morte, e tenta tirar Fernanda do carro durante o momento mais perigoso. Ao som de Faint — Linkin Park, os dois são baleados.

A cena da morte de Fernanda é considerada uma das mais marcantes do folhetim de Manoel Carlos. (Foto: Reprodução/Twitter)

Era só disso que me lembrava. Na época em que assisti à trama no Vale a Pena Ver de Novo, em 2009, prometi que ia parar, porque não queria chorar com Salete. Depois de tantos momentos nostálgicos, enfim, um momento inédito para esta telespectadora: os próximos passos de Fernanda e da filha. Me senti preparada para chorar com Salete se fosse preciso. Assim, conheço a trilha sonora mais triste de Mulheres Apaixonadas. A personagem morre após contar para Helena sobre a maternidade de Lucas e se despedir de Salete.

É incompreensível o fato de Fernanda ter deixado a trama justo em um momento que lhe colocava tão em evidência. Não falo apenas dos sonhos de Salete, mas a personagem também estava mudando de vida, o que torna o momento ainda mais triste.

Durante a recuperação de Téo, histórias que revelam a alta do crime nas ruas mobilizam uma passeata. O movimento “Brasil Contra Armas” levou à ficção a batalha do país contra a violência e as armas de fogo. Situação esta que não foge muito do que enfrentamos atualmente, mas que acomete jovens da periferia, vítimas de tiroteio e ataques policiais, além da discussão a respeito da flexibilização do porte de armas no Brasil.

Dóris, na verdade, maltratava a todos nós
Sempre achei o avô de Dóris muito parecido com o meu avô, então, já me emocionava com qualquer coisa que fazia mal para o casal de velhinhos. Mas não teve quem não se revoltou com o tombo de seu Leopoldo (Leopoldo Duarte), as tantas notas de R$ 50 ou R$ 100 roubadas por Dóris da carteira dos avós e o desmaio de dona Flora (Carmem Silva) com o ataque de fúria da neta, que só sabia dizer que os dois eram velhos caquéticos que precisavam morar em um asilo para não dar mais trabalho a ninguém.

De tanto maltratar os avós com ofensas e empurrões, Dóris acabou se envolvendo em uma briga com seu pai, Carlão (Marcos Caruso) e terminou apanhando de cinta. A primeira surra de Dóris exibida no Canal Viva em 2020 mobilizou os fãs e alcançou, ao menos, 778 mil indivíduos. Nas redes sociais, #CoçaDaDórisNoVIVA e a já tradicional #MulheresApaixonadasNoVIVA foram parar nos trending topics do Twitter.

É impossível falar sobre a surra da personagem de Regiane Alves e não se recordar de que começamos falando sobre violência doméstica. Hoje em dia, me pergunto se o problema seria tratado da mesma forma. A alta mobilização do público para assistir ao capítulo em que Dóris apanhou aumentou ainda mais os questionamentos. Será que todos se sentiram vingados por Carlão e não pensaram na violência que estava sendo retratada, ou o fato de um pai bater em uma filha é tão naturalizado assim?

Dona Flora e seu Leopoldo moravam na casa de Carlão e dormiam no antigo quarto de Dóris. (Foto: CEDOC/TV Globo)

Em 2003, durante a primeira exibição da trama, a abordagem ultrapassou os limites da dramaturgia e virou projeto de lei: uma proposta criada pelo então deputado Paulo Paim, do PT gaúcho, discutia a criação do Estatuto do Idoso. Regiane Alves foi até Brasília, na Câmara dos Deputados, falar sobre a sua sua personagem Dóris. O projeto foi aprovado pelo Senado e sancionado pelo então presidente Lula durante a exibição de Mulheres Apaixonadas. Notícia essa comemorada por Dona Flora e Seu Leopoldo quando já haviam deixado a casa do filho e se mudado para o Retiro dos Artistas, em Jacarepaguá-RJ.

As outras apostas de Manoel Carlos

Mulheres Apaixonadas ainda aborda os ataques homofóbicos Margareth (Laura Lustosa), com o romance da filha Clara (Alinne Moraes) com Rafaela (Paula Picarelli), ataque também praticado pela colega das duas, Paulinha (Roberta Gualda).

O sonho de Margareth era que a filha “fosse normal”. Paulinha chamava as colegas de “machinha” e até saía no tapa com Clara, que se revoltava com a situação assim como seus colegas. Ninguém passava pano para a jovem que só sabia destilar preconceito porque não se contentava com a vida que levava.

A personagem Paulinha é preconceituosa, não aceita a família e pratica ataques homofóbicos contra Clara e Rafaela na escola. (Gif: Twitter/Reprodução)

Em 2003, a homossexualidade era aceita nas tramas televisivas, mas o beijo gay não. Manoel Carlos se contentou com um selinho. Mas poderia ter ido além. O público questiona porque a homossexualidade ainda é tabu na telinha, já que é algo tratado há bastante tempo. Em 2015, a novela Babilônia, da TV Globo, também apresentou um beijo gay, entre as renomadas Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg.

De todas as Mulheres Apaixonadas de Manoel Carlos, talvez Hilda, irmã de Helena e Helô, seja a mais realizada das três: vivia um amor incondicional ao lado de Leandro (Eduardo Largo) e teve forças para vencer um câncer de mama que trouxe uma discussão importante na trama a respeito do autoexame.

Protagonizada por diversas mulheres apaixonadas pela vida, a trama sustenta, sim, uma certa atemporalidade. Existem algumas questões ultrapassadas, mas que se secundarizam com tantos assuntos importantes para a atualidade, como a violência doméstica, por exemplo. Embora já exista leis mais rígidas, ainda convivemos com a impunidade e um alto índice de crime de gênero.

O fato é que não estamos mais acostumados com folhetins nesse estilo, com longa duração e tantos núcleos completos. A novela de Manoel Carlos prende justamente pelo fôlego de poder debater tantos temas importantes.

A trama termina nos próximos dias no Canal Viva e dará lugar à novela Da Cor do Pecado, de João Emanuel Carneiro. Por aqui, já estou com saudades dos fundos solares de Manoel Carlos ao som de De Bem com a Vida, de Alberto Rosenblit, e da melhor trilha sonora da teledramaturgia.

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