CRÍTICA: “O Ano da Cólera” ajuda brasileiros a cumprirem obrigação histórica com a América Latina

Livro conduz leitores pela história de cinco países da região a fim de explicar tensões recentes — ou a falta delas — nesses locais

Émerson Santos
Redação Beta
3 min readSep 3, 2021

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Narrativa construída pela jornalista Sylvia Colombo é capaz de apresentar aos brasileiros contextos antes pouco observados. (Foto: Emerson Santos/Beta Redação)

Autora: Sylvia Colombo

Editora: Rocco

Páginas: 256

Para além do que se lê nos jornais diários, no Brasil pouco se sabe sobre o que acontece nos demais países da América Latina. Ou pior, mesmo quando um pouco se sabe, em quase nada se compreende esses eventos, sejam eles políticos, econômicos ou sociais. Em O Ano da Cólera, a jornalista Sylvia Colombo, correspondente da Folha de S. Paulo para a região, tenta solucionar o problema, agora com mais espaço à disposição. No que lhe permitem as 256 páginas do livro, ela consegue cumprir essa missão.

No Chile, uma nova Constituição será redigida nos próximos anos. O fato, entretanto, não explica o que realmente vive o país, como tampouco resolveria saber apenas que quase 80% dos eleitores optaram por essa decisão em plebiscito nacional. A resposta também está além dos protestos que tomaram as ruas do país em 2019. Sylvia Colombo, historiadora formada pela USP, sabe disso. No livro, mais do que limites geográficos, o leitor atravessa fronteiras históricas para entender o momento chileno.

O mesmo acontece nos capítulos em que são abordadas as situações recentes protagonizadas por bolivianos, venezuelanos e argentinos. Ainda assim, não é só o registro de fatos históricos que torna a leitura importante. As experiências vividas pela jornalista, e que muitas vezes não aparecem nas páginas dos jornais, também estão no livro.

O que melhor explicaria a personalidade de Evo Morales, ex-presidente da Bolívia, do que saber que, para dar entrevista, em 2019, às vésperas da eleição para um contestado quarto mandato, o político pedia aos jornalistas que lhe acompanhassem em seus voos diários pelo território boliviano e o vissem sendo adorado por civis e militares, de Oruro a Trinidad?

Na Venezuela, no mesmo ano, a situação política do país é melhor assimilada quando se descobre que, para entrevistar Juan Guaidó, controverso líder da oposição venezuelana, a jornalista precisou ser levada até o local da conversa sem saber previamente onde o encontro ocorreria. Depois, teve de jurar que não publicaria a localização da entrevista, revelação esta que faz nas páginas do livro.

Há 10 anos baseada em Buenos Aires, ninguém melhor do que a correspondente da Folha para falar aos brasileiros sobre a Argentina. Ela faz isso no capítulo mais longo de O Ano da Cólera. No entanto, pelos complexos e tensos anos recentes vividos nesses quatro países, apenas mais páginas seriam capazes de evitar algumas simplificações, admitidas pela autora em determinados momentos, mas que em quase nada diminuem a capacidade da obra em apresentar um novo mundo aos leitores.

Nem só de tensões, porém, se faz o livro. No Uruguai, quinto e último país abordado por Sylvia Colombo, uma transição pacífica de poder tornou indispensável estudar o momento uruguaio. A resposta, novamente, estava no passado. A autora encontrou-a e a compartilha em O Ano da Cólera.

As descobertas mostram ao leitor que se trata de uma região onde a trajetória de cada povo apresenta características que tornam únicos os episódios experimentados por cada país. Isso deve eliminar um preconceito comum aos brasileiros, que é o de achar que, para o lado de lá da fronteira nacional, tudo se resume à mesma coisa.

Outro aspecto importante da leitura é o de que esta oferece condições para que os brasileiros, a partir do entendimento dessas particularidades, rompam com alguns medos, como o de achar que, sob um governo posicionado à esquerda do espectro político, o Brasil poderia “virar uma Venezuela”.

Além dos protestos e tensões de 2019, a jornalista também invade 2020 e descreve o quadro inicial do combate à pandemia nesses países, numa narrativa que, apesar de trágica em muitos momentos, prende o leitor até o fim da obra.

No momento em que se completam 50 anos desde que Eduardo Galeano descreveu as “veias abertas” da América Latina, nada seria mais oportuno do que ler O Ano da Cólera, de Sylvia Colombo, e perceber as novas conjunturas sob as quais segue lutando o povo latino-americano.

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