CRÍTICA: “O Novo Czar” é leitura indispensável, ao menos, até 2036

Biografia de Vladimir Putin apresenta a trajetória rumo ao poder de um dos líderes mais importantes do mundo atualmente

Émerson Santos
Redação Beta
5 min readSep 17, 2021

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Escrito pelo jornalista Steven Lee Myers, livro foi publicado em 2015, mas oferece as bases para a compreensão cada vez mais necessária das ações do presidente russo. (Foto: Emerson Santos/Beta Redação)

Autor: Steven Lee Myers

Editora: Amarilys

Páginas: 624

Em abril de 2021, Vladimir Vladimirovich Putin assinou uma lei que o permite seguir como presidente da Rússia até 2036. É importante dizer, neste momento, que os russos foram consultados previamente sobre o fato em referendo constitucional, quando quase 80% aprovaram reformas constitucionais, entre elas a permissão para que o atual presidente dispute mais dois mandatos.

Putin se tornou líder da Rússia em 31 de dezembro de 1999, após renúncia de Boris Yeltsin. Não é preciso entender muito sobre política internacional para saber que, a partir da publicação da nova lei, ele completará 36 anos, ao menos, como o homem mais poderoso do país. Josef Stalin comandou os russos, em tempos de União Soviética, por 29 anos (1924–1953). Apenas Pedro, o Grande, liderou por mais tempo — quase 43 anos (1682–1725). Pedro foi o último czar da Rússia.

O jornalista americano Steven Lee Myers, entretanto, afirma que as proporções do reinado de Putin permitem dizer que há, entre os russos, três séculos depois, um novo czar. Ele fez essa afirmação em 2015 e não poderia ter sido mais assertivo. Como na época dos czares, não se imagina, hoje, Putin deixando o poder por outro meio que não seja a morte. É isso o que torna indispensável entender quem é Vladimir Putin, afinal, ele lidera o maior país em extensão, a segunda maior potência nuclear e uma das principais economias do mundo — e assim o fará por muito tempo.

Em O Novo Czar, Steven Lee Myers descreve a ascensão e o reinado do presidente russo. O jornalista do The New York Times atuou durante sete anos como correspondente para o jornal em Moscou, onde começou a juntar informações para escrever a extremamente detalhada biografia de Vladimir Putin. Para tanto, ele organiza depoimentos, entrevistas, reportagens e documentos oficiais, reconstruindo a história de um homem que chegou ao poder por acaso. Os leitores não encontrarão melhor definição do que essa ao descobrir o momento em que Yeltsin informa Putin sobre a intenção de renunciar ou, antes ainda, o que ele queria ser quando crescesse.

O trabalho é tão minucioso que começa ainda antes de Putin nascer. O início da narrativa retoma a participação do pai do atual presidente na Segunda Guerra Mundial, fato que impactou diretamente sua criação. O autor avança, em seguida, para a entrada e a trajetória de Putin na KGB, o serviço secreto da União Soviética, e o posterior colapso do regime. É intrigante perceber como um agente que defendeu o regime soviético até o último momento se tornou o líder que há mais de 20 anos controla a democracia herdada pelos russos.

O livro poderia ter sido lido pelo presidente Jair Bolsonaro. Espero, ao menos, que o desfecho da história não seja o mesmo no Brasil.

As condições que tornaram possível a ascensão de Putin ao cargo de primeiro-ministro poucos meses antes da renúncia de Yeltsin estão bem documentadas pelo autor. A primeira transferência democrática de poder em território russo na história, curiosamente, marcava o início de um reinado implacável. A partir daí, o jornalista remonta os fatos que impulsionaram Putin para as eleições de 2000 e 2004, tais como uma guerra e ataques aos grupos de mídia independentes do país. O livro poderia ter sido lido pelo presidente Jair Bolsonaro. Espero, ao menos, que o desfecho da história não seja o mesmo no Brasil.

Os leitores acessam também detalhes da relação pragmática de Putin com a religião, como ele aniquilou a oposição política e governou o país pelo medo, sempre nomeando um inimigo comum aos russos, numa narrativa que parece ter saído das páginas de um roteiro de filme de espionagem e que inclui, até, suspeitas de envenenamento.

Aleksander Litvinenko, opositor do governo, foi assassinado em 2006, no que parece ser um método que, mesmo após a publicação do livro, segue alcançando os rivais do Kremlin. Em agosto de 2020, Alexei Navalny, o mais proeminente opositor de Putin, foi envenenado e se encontra, hoje, preso em território russo. Navalny, aliás, é parte da narrativa construída por Steven Lee Myers, que descreve o surgimento do adversário em meio aos protestos do início da década passada.

Antes de Navalny, entretanto, os leitores passam pela eleição de 2008, da qual Putin não poderia participar e na qual ele orquestra a estratégia política que lança Dmitri Medvedev à presidência. Mas Vladimir Putin não lidera o país desde 31 de dezembro de 1999? Sim. Em O Novo Czar, o autor leva os leitores para dentro das salas do Kremlin e os apresenta os acordos que condicionaram a eleição de Medvedev à indicação do agora ex-presidente ao cargo de primeiro-ministro. Medvedev não sabia, mas ajudou a criar as bases que perpetuaram Putin no poder.

Foi no governo Medvedev que uma reforma constitucional estendeu de quatro para seis anos o período de um mandato presidencial no país. Foi no governo Medvedev, ainda, que Putin preservou para si a lealdade da estrutura governamental e, como Steven Lee Myers aponta, foi quem de fato governou. As circunstâncias do anúncio de que o ex-presidente disputaria as eleições de 2012 darão aos leitores a dimensão de onde de fato residia — e ainda reside — o poder russo.

Vladimir Putin foi eleito em 2012, reeleito em 2018 e, agora, abriu caminho para disputar as eleições de 2024 e 2030. O Novo Czar apontou um homem implacável e que seguiu derrotando seus adversários mesmo após a publicação do livro. A narrativa biográfica do presidente termina com a invasão e a posterior anexação da Crimeia, território originalmente ucraniano, por parte da Federação Russa, em 2014. Desde então, as tensões entre o governo russo e da Ucrânia nunca cessaram, tendo quase resultado em guerra em 2021, novamente por disputas territoriais.

O Novo Czar, escrito por Steven Lee Myers, portanto, se mostra ano após ano uma leitura cada vez mais necessária, e assim o será, ao menos, até 2036. O referendo constitucional de 2020, o envenenamento de Navalny e o aumento das tensões com a Ucrânia atestam isso. Mas é melhor não esperar até o final da próxima década para lê-lo, afinal, a história segue acontecendo e para compreendê-la é preciso conhecer o novo czar russo.

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