CRÍTICA: O pop e a versatilidade de Gloria Groove em “Lady Leste”

Em seu novo álbum, artista aposta em uma mistura de gêneros e cria repertório inspirado em suas raízes

Amanda Bier
Redação Beta
7 min readMar 18, 2022

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Capa do álbum “Lady Leste”, de Gloria Groove. (Foto: Reprodução/Instagram)

Que os recentes trabalhos de Gloria Groove ajudaram a consolidar uma nova era para a cantora e para o pop nacional ninguém pode discordar. A drag queen, que nasceu e cresceu na Vila Formosa, em São Paulo, vive hoje um dos melhores momentos de sua carreira. Com o novo álbum Lady Leste — que chegou no dia 10 de fevereiro, após os singles “Bonekinha”, “A Queda” e “Leilão” — Groove provou, mais uma vez, que é uma artista completa, ao mostrar toda sua versatilidade em um disco que exalta suas origens e mistura diferentes estilos musicais.

Em um total de 13 faixas, com beats envolventes que permeiam do funk ao pop, passando por rap, pagode e rock, o álbum Lady Leste é o segundo trabalho de estúdio da artista. Depois da era R&B do EP Affair (2020), Gloria Groove retorna, com toda a sua autenticidade, em um projeto que mistura uma linha romântica e melodiosa com uma vibe agressiva e hostil, reafirmando tanto o seu lado “lady” quanto às suas origens do lado “leste”, zona onde nasceu em São Paulo.

Sem dificuldade de transitar entre um gênero musical e outro, logo na abertura do álbum já temos uma amostra da ousadia de Gloria ao unir funk e rap com alguns solos de guitarra na música “SFM”, sigla para “sexta-feira maluca”, feita em parceria com o MC Hariel. A letra, que fala sobre bebida, festa e diversão, contém ainda, de maneira explícita, algumas provocações sexuais. Neste caso, ter uma drag queen sendo cortejada com tanta naturalidade por uma figura masculina é um ponto extremamente positivo por desconstruir, mesmo que de forma sutil, preconceitos enraizados na sociedade.

Logo na sequência, temos o primeiro single dessa nova era de Gloria Groove. A faixa “Bonekinha”, lançada em junho de 2021, é um pop dançante que mistura funk com rock e ainda conta com o rap marcante de Mirella, uma menina de 12 anos, irmã da rapper Drik Barbosa. A voz da jovem, que contrasta com o potente vocal de Gloria, deixa a música com uma atmosfera de “quebrada”. É impossível ouvir e não ficar com o refrão na cabeça.

E para compor visualmente esse hit, “Bonekinha” recebeu um clipe com uma produção digna de cinema, repleto de referências à adolescência da artista e aos anos 2000. Nas primeiras cenas, Gloria aparece em um quarto rosa cheio de CDs, adesivos, pôsteres, fitas K-7, disquetes e um rádio. Com uma superprodução e efeitos visuais impecáveis, o clipe conta ainda com uma variedade de cenários, como uma clássica lan house e um banheiro público todo pichado.

Ou seja, apesar de muito bonitinha, a boneca quer mesmo é fazer pirraça. No clipe, Gloria abusa da imagem de “patricinha”, mas não deixa de lado o estilo roqueiro. A prova são os sons de guitarra e o Blink-182 escrito na parede. Além disso, os figurinos, que variam do rosa ao preto a todo momento, parecem reforçar ainda mais o contraste que existe entre o título infantil e a sonoridade pesada.

Poucos são os cantores que têm a coragem de sair da zona de conforto dessa maneira. Atualmente, Gloria Groove está colhendo os frutos dos mais de 20 anos de carreira que o brilhante e talentoso Daniel Garcia, responsável pela personagem, construiu. O álbum, que pode ser considerado um divisor de águas na trajetória da artista, tornou Gloria um dos principais nomes do pop no país. A cada faixa, sempre quando achamos que GG não vai conseguir mais surpreender, ela chega e se supera, mostrando que desconhece o significado da palavra limite.

Neste novo trabalho, a cor vermelha também chama bastante a atenção e recebe um espaço muito significativo no álbum por ser o nome do quarto single lançado. Se antes Gloria Groove já queria mostrar suas origens para o mundo, na música “Vermelho” isso fica ainda mais evidente. A faixa, que faz uso do sample de “Mina de Vermelho” de MC Daleste, assassinado em 2013 durante um show, é uma homenagem direta ao funkeiro — coincidentemente também chamado Daniel — que colocou a zona leste de São Paulo nos holofotes da mídia.

Além da música apresentar um funk bem raíz, o instrumental também é marcado por um batidão eletrônico, que comprova, mais uma vez, a versatilidade da artista. Com muita dança e looks cheios de glamour, o clipe de “Vermelho” também entrega uma produção de muita qualidade, com Gloria sensualizando em um bar, ostentando dentro de uma limousine e percorrendo as ruas à noite, sempre em ambientes escuros que deixam as roupas e as luzes vermelhas em destaque. Apesar de demonstrar todo seu potente timbre grave, a cantora não abandona, em nenhum momento, tanto na voz quanto na atuação, o seu lado sedutor e a imagem de garota mais desejada do baile.

Para fechar a seção de funk, a música “Fogo no Barraco”, com a participação de MC Tchelinho, apesar de adicionar um ritmo de samba, parece seguir a mesma linha de “SFM”, o que soa muito repetitivo e, consequentemente, acaba sendo umas das canções menos inovadoras do álbum.

Esse cenário muda completamente com a faixa “Tua Indecisão”, que surpreende por ser um pagode romântico, típico dos anos 2000, que tira a artista de sua zona de conforto. Nessa segunda parte do álbum, vemos uma Gloria mais sensível, cantando em um ritmo suave, junto com o grupo Sorriso Maroto. É possível que a participação em Lud Session tenha influenciado na construção dessa música, o que é ótimo, já que ainda temos poucos cantores LGBTQIA+ no pagode.

Permanecendo na linha de se aventurar em um ritmo muito apreciado no Brasil, “Apenas um Neném”, sexta canção do álbum, em parceria com Marina Sena, é praticamente um arrocha que, apesar de ser muito bem trabalhado, acaba perdendo destaque em meio a tantos outros fortes candidatos a hit. Já a música solo “Jogo Perigoso”, com um reggaeton marcante e uma pegada latina, faz a gente relembrar porque estávamos ouvindo o álbum e explicita o traço mais dançante que pulsa em praticamente todo o projeto.

O álbum, lançado no dia 10 de fevereiro de 2022, marca primeira grande era de Gloria Groove no pop nacional. (Foto: Reprodução/Instagram)

Nas próximas duas faixas, “Greta” e “Pisando Fofo” — esta última em parceria com as rappers Tasha & Tracie — temos o lado mais hip hop e os flows que ainda estavam um pouco desaparecidos no álbum. Além das batidas lembrarem a urbanidade da quebrada paulista, a segunda canção remete muito ao ritmo de “O Proceder”, música do início da carreira de Groove.

Ainda com uma sonoridade mais próxima do hip hop e do rap, “Leilão” chega como o terceiro single do álbum Lady Leste. Lançado em novembro de 2021, carregado de mensagens, o hit faz uma crítica sobre a falta de valorização do trabalho de uma drag queen no mercado da música e denuncia o sistema capitalista vivido dentro do mundo artístico. Com muito deboche, a letra ainda serviu como uma indireta para as grandes empresas que só demonstraram interesse na artista agora, depois da fama.

O clipe, também cheio de referências, mostra Gloria Groove atuando em diferentes personagens, desde leiloeira a uma criatura de outro mundo. Essa pegada mais fantasiosa, de uma figura incomum dominando o local, faz uma analogia muito interessante de uma drag queen chegando na indústria e exigindo reconhecimento à altura do seu sucesso.

A seguinte faixa do álbum, “LSD”, sigla para “luxo, sexo e drama”, também aborda a indústria musical e faz uma reflexão sobre os obstáculos que o sucesso e a notoriedade trazem. Contudo, dessa vez, ao invés do deboche, Gloria utiliza um tom mais dramático e melancólico para falar sobre os perigosos vícios encontrados em uma vida luxuosa. Com influências do R&B, a faixa oferece uma densidade mais sombria e relembra muito a fase do EP Affair.

Para expor ainda mais o lado negativo da fama, “A Queda” — segundo single lançado e o mais marcante até então — chega com tudo no final do disco falando sobre a cultura do cancelamento, um tema forte da atualidade. Com um sucesso explosivo, a música, divulgada em outubro de 2021, no mês do Halloween, tem a pegada de um pop rock mais agressivo que encaixa perfeitamente com a mensagem que a letra carrega. Em versos como “Extra! Extra! Logo, logo o show começa. Melhor do que a subida, só mesmo assistir à queda”, a artista faz uma crítica à sociedade do espetáculo que está sempre esperando pelo fracasso de figuras públicas.

Com um aspecto de filme de terror e visuais de tirar o fôlego, a faixa também acompanha um dos clipes mais impactantes da carreira de Gloria Groove. Em relação à estética, o cenário “circo dos horrores” é uma excelente representação dos linchamentos que acontecem na internet, onde todos assistem e aplaudem a queda de um artista. Assim como em “Bonekinha” e “Leilão”, o clipe foi dirigido por Felipe Sassi que, neste trabalho, usou como referência o personagem Zé do Caixão, o filme “A Noiva Cadáver” e a série “American Horror Story”.

Para fechar as 13 faixas, “Sobrevivi”, gravada em parceria com Priscilla Alcantara, cumpre muito bem o papel de última canção do álbum ao falar sobre persistência e perseverança, além de projetar um futuro de mais paz e amor. Com uma melodia que mistura pop rock com um toque de gospel, Gloria encerra o projeto com muita classe e comprova, mais uma vez, que possui segurança, personalidade e talento para transitar nos mais diversos estilos e permear as mais variadas bolhas.

Mesmo que não se amarre de maneira convencional, Lady Leste é um trabalho extremamente potente, completo e inovador, que consolida não só a evolução da artista, mas também um novo momento para a música pop brasileira. Sem se prender a um rótulo e sem medo de unir todas as suas referências, que vão do funk ao rock, Gloria Groove conseguiu construir algo único e ampliar o cenário da música para que outros artistas também pensem “fora da caixa”. Com letras marcantes, sonoridade impecável e clipes bem produzidos, o álbum é uma obra de arte que representa uma grande vitória para a cantora e para todos que gostam de pop.

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