CRÍTICA: O verdadeiro horror em “Lovecraft Country”

Série da HBO, que estreou em agosto, aborda racismo, segregação racial e referências a mestres do terror e suspense

Guilherme Pech
Redação Beta
5 min readSep 11, 2020

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Racismo é um problema histórico que ainda assombra nossa sociedade. Este ano, com a morte do afro-americano George Floyd pelas mãos de policiais brancos, o assunto voltou a gerar debates no mundo todo — nas ruas, na mídia e até em eventos esportivos. E é por isso que Lovecraft Country, a nova série da HBO, veio no momento certo.

A série é baseada no livro “Território Lovecraft”, de Matt Ruff, lançado em 2016. (Foto: Reprodução)

Estreada no dia 16 de agosto e com quatro episódios lançados até então, a série traz muito mais do que o puro horror ficcional inspirado no trabalho do escritor H. P. Lovecraft — na verdade, o verdadeiro horror é o social: o racismo e a segregação racial dos Estados Unidos na década de 1950. A produção, que é baseada no livro Território Lovecraft (2016), de Matt Ruff, é integrada por Jordan Peele, um dos nomes atuais mais promissores do gênero.

Para termos ideia, Peele ganhou um Oscar em seu primeiro longa como diretor, o elogiado suspense Corra!, de 2017. Em 2019, o cineasta nos presenteou com Nós. Suas obras abordam várias camadas ao combinar terror e crítica social, abrindo espaço a múltiplas interpretações com metáforas sobre o racismo institucionalizado. Em Lovecraft Country, ele retoma o debate, com narrativa, figurino e trilha sonora de peso que receberam, não por acaso, 100% de aprovação da audiência no site especializado Rotten Tomatoes.

Um dos produtores de “Lovecraft Country”, Jordan Peele, destaca-se por seu trabalho de crítica social ao racismo. (Foto: The Twilight Zone (2019)/CBS All Access/Divulgação)

O horror em Lovecraft (e de Lovecraft)

A obra do escritor estadunidense Howard Phillips Lovecraft (1890–1937) é o principal pano de fundo da série. (Foto: Reprodução/Internet)

Não é novidade que o escritor estadunidense Howard Phillips Lovecraft (1890–1937) é um dos expoentes na literatura de horror de todos os tempos. Sua obra revolucionou o gênero ao criar seu próprio universo, povoado de mitos desconhecidos e sonhos terríveis. É, por isso, o pai do Horror Cósmico moderno. Sua principal inspiração, como a de muitos, foi ninguém menos que Edgar Allan Poe (1809–1849). Contudo, o livro Território Lovecraft, que traz o nome do autor, tem sua razão de ser não somente pela questão do horror.

Salvo a riqueza e a importância de sua produção literária para o gênero de horror, Lovecraft tinha horror a pessoas diferentes e a estrangeiros — era racista e xenófobo. Exemplos estão em relatos pessoais e também em seus contos, como O Chamado de Cthulhu e Reanimator. Há teorias que acreditam, inclusive, que os seres degenerados e monstruosos das histórias de Lovecraft sejam uma alusão ao modo com que o escritor via as pessoas negras. E é no famoso poema, a seguir, que a visão racista e discriminatória é escancarada:

Sobre a Criação dos Negros:

Quando, há muito tempo atrás, os deuses criaram a terra

À imagem de Júpiter, o homem foi moldado,

As bestas foram criadas para tarefas menores;

Ainda assim elas estavam muito distantes da raça humana.

Para preencher esse vazio e juntar o resto ao homem,

Os anfitriões do Olimpo elaboraram um plano astuto.

Uma besta seria forjada, em uma figura semi-humana,

Preenchendo assim o vazio, e chamando a coisa de Negro.

O monstruoso território de Lovecraft

No enredo de Lovecraft Country, somos apresentados a Atticus Freeman (Jonathan Majors), um antigo militar que se junta à sua amiga de infância Letitia (Jurnee Smollett) e ao seu tio George (Courtney B. Vance) para embarcar em uma viagem pelos Estados Unidos dos anos 1950 em busca do pai desaparecido (Michael K. Williams).

A mistura entre realidade e ficção criada por H. P. Lovecraft é um dos panos de fundo da série. Estamos falando de um território povoado de mundos oníricos, livros com saberes proibidos, casas mal-assombradas, ocultismo e seres mágicos e mitológicos desconhecidos. São, acima de tudo, elementos clássicos da literatura gótica. Durante a série, vários autores referências no gênero são citados — mestres que inspiraram Lovecraft em sua escrita, como Algernon Blackwood e William Hope Hodgson.

Nesse território, além disso, tudo o que é diferente tende a ser segregado. A visão dos habitantes brancos sobre o povo afrodescendente parece ser a mesma de Lovecraft. O racismo institucionalizado e estrutural está em todos os lugares, nas ruas, nos olhares, nos comentários, nas propagandas, nos outdoors. Inclusive nas autoridades. A segregação é expositiva e agressiva. Uma cena, bastante simbólica, mostra um grupo de homens brancos com um cachorro preso, acoando como uma fera para Atticus, que expressa medo e desconfiança.

Na sinopse, Atticus Freeman é um ex-militar que, junto com a amiga Letitia e seu tio George, partem em busca do pai desaparecido. (Foto: HBO/Divulgação)

É por isso que os verdadeiros monstros da série não têm tentáculos, não são desconhecidos e nem estranhos. No segundo episódio, por exemplo, uma casa em que assassinatos brutais ocorreram é assombrada, a princípio, pelos espíritos dos negros ali massacrados. Não demoramos a perceber que na verdade o inimigo é apenas um, e presenciamos um encerramento catártico quando os negros — vivos e mortos — se unem para enfrentá-lo, liderados por Letitia, personagem com traços feministas e à frente de seu tempo.

Este é outro elemento forte na série. O horror “catártico” é aquele que horroriza, mas que representa uma descarga emocional, uma vingança contra um opressor, como em Carrie, a Estranha (1974), de Stephen King. Como é o caso, também, do primeiro episódio, quando policiais brancos que humilhavam os protagonistas negros são surpreendidos por um inimigo inesperado.

Sendo monstros sobrenaturais ou humanos, o ódio ao negro é o mesmo. O que parece estar construído é uma inversão da conotação racista: os negros são os heróis e não estão relacionados a nenhuma criatura lovecraftiana. Até mesmo porque os inimigos gerais da narrativa, os magos, são brancos, loiros e com olhos claros.

Outro detalhe é que o protagonista Atticus, como ex-militar que serviu ao país, não parece se sentir parte da nação nem tampouco recompensado pelo seu esforço. O horror cósmico e ficcional é só um pano de fundo, mas o verdadeiro horror é o social, representado pela forma desumana como negros eram tratados nos Estados Unidos no auge da segregação racial.

O mais assustador de Lovecraft Country, infelizmente, é real, está infiltrado em nossa sociedade às sombras, nos detalhes, no imaginário. Está, também, de modo explícito, materializado. Parafraseando Stephen King, monstros e fantasmas existem. Vivem dentro de nós e, às vezes, vencem.

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