CRÍTICA: “Pulse” — somente sabe por que chora aquele que sabe por que ri

Exposição no MARGS traz a chance de refletir sobre o contraditório na existência humana

Paola De Bettio
Redação Beta
4 min readApr 14, 2023

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Ao entrar na maior sala da exposição, o visitante encontra o imenso mural feito com arte postal e várias impressões surrealistas. (Paola Tôrres/Beta Redação)

“Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia”, disse uma personagem de José Saramago na peça “A Segunda Vida de Francisco de Assis”. O coração de ferro pode ser aquele que esconde o que sente, que se reprime, que joga água fria em si e encerra em si mesmo. O coração que sangra todo dia é aquele de quem se permite a fruição da vida, dos sentimentos, dos pensamentos. Sentir é a única coisa que garante estarmos vivos. E um coração que sangra pulsa.

“Pulse” é um convite à reflexão de que o ser humano é contraditório, cheio de incertezas e vazio de respostas definitivas. Mas, se o coração humano pulsa, aqui o coração de chumbo também é possível, por aguentar tanto, por ser duro como as pedras, inabalável, mas também carregado delas. A exposição é um recorte da obra da dupla de artistas Rogério Nazari e Telmo Lanes, com obras realizadas por ambos de 1976 até 2022. São pinturas, xerografias, fotografias e registros de performances espalhados por quatro espaços diferentes no Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS): no saguão e mais três salas do segundo andar.

Os diferentes significados que um coração pode trazer são bastante explorados na exposição (Paola Tôrres/Beta Redação)

Nazari e Lanes fazem parte de um grupo de artistas que foram influenciados pelo estilo gótico, dark e pós-punk dos anos 1980. “Pulse” é um verbo imperativo, mas também um convite — como diz o texto da curadora convidada Ana Albani de Carvalho. Ao analisar o conjunto de obras, ela afirma que os artistas “não se rendem a um olhar apressado por respostas rápidas ou significados precisos e fechados”.

As obras foram feitas em modo colaborativo, e não por acaso ambos os artistas se muniram de referências, como imagens de obras históricas — algumas, inclusive, ganharam releituras por eles — e muito da cultura popular. Misturando linguagens e técnicas, a dupla comprova algo que se estende ao longo de gerações: o denso choque de várias correntes do pensamento; o conflito moral e ético, entre tantos outros embates humanos, reafirmando a ideia de que a essência do ser humano é o contraditório.

Toda essa junção de embates conceituais se torna muito produtiva, e acaba traçando uma série de questionamentos, de várias ordens, desde brincadeiras com elementos da rotina até a função da arte na sociedade. Tudo isso com muitos toques de ironia, provocação e subversão. Como também dizem os curadores Francisco Dalcol e Cristina Barros: “Uma sofisticação aprofundada e erudita, porém tensionada por elementos distópicos, niilistas, ‘decadentes’ e até por manifestações da dita baixa cultura como o kitsch”.

Além de tudo, as obras — repletas de texturas, olhares, informação — suscitam e aguçam os sentidos, como se fizessem cócegas nas mãos, como se estivéssemos tocando em algo ou trouxessem cheiros e sons. O conjunto de xerografias de Nazari, feito com arte postal e arte xerox, destaca com ironia e provocação muitas questões da vida em sociedade, construindo fragmentos poéticos e tensionadores, como a representação da homoafetividade (imagem abaixo). São dele também as obras que trazem a figura do coração: “Relicário” (2021) é um conjunto de sete imagens que traz no centro de uma cruz deitada a fotografia de um coração humano (imagem acima). Também é dele a imagem de um coração pintado sobre a madeira com um prego fincado ao meio.

Parte do conjunto de xerografias de Nazari. (Paola Tôrres/Beta Redação)

As fotografias com tom surrealista e as fotomontagens são outro ponto forte da exposição. “Aventura Inerte” (1977) é um conjunto de quatro fotos de Lanes com caráter performático e experimental e que explora o corpo humano como uma linguagem. Além disso, parte da produção realizada em conjunto para 19ª Bienal de São Paulo, em 1985, está resgatada ali, assim como há uma sala dedicada para reproduzir dois registros audiovisuais de uma performance misturada com instalação e música, chamada “Porquê choras”, feita também em 1985. Junto à sala, estão expostos elementos que inspiraram os artistas naquele ano.

Parte das obras expostas na 19ª Bienal de São Paulo são pinturas simbolistas. (Paola Tôrres/Beta Redação)

As transições entre o popular e o erudito, a cultura de massa com conceitos sofisticados, os temas religiosos confrontados com o olhar niilista, abraçam uma vasta camada de interpretações. E é por meio de diferentes técnicas e suportes que criam linguagens diferentes que o contraditório se desenha pela exposição.

“Afinal, por que choras? Somente sabe por que chora aquele que sabe por que ri. Então pulse”, diz a curadora Ana Albani de Carvalho. O ser humano pulsa enquanto caminha pelos destroços de civilização e sabe que, apesar disso, existe a melodia.

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