CRÍTICA: Punpun, a história de um menino-passarinho
Sob ótica da infância, autor aborda temas como saúde mental e depressão
Se eu tivesse que desenhar a depressão, que diabo eu faria?
Foi assim que percebi o quanto essa história impressiona. Boa Noite, Punpun (Oyasumi Punpun, do original) me fez varar algumas noites. Não conseguia dormir, pois era sempre o mesmo pensamento: com mais cinco minutinhos, eu descobriria como o capítulo acabava. Inio Asano, mangaká japonês e autor da obra, basicamente me presenteou com um par de olheiras novas, e eu agora ando por aí exibindo a nova aquisição. De certa forma, é como se eu me tornasse uma de suas ilustrações. Mesmo estando do outro lado do mundo, ele foi capaz de desenhar no meu rosto. Agora me sinto a prova viva de que sou parte de uma obra — não como protagonista, mas como espectador angustiado.
Boa Noite, Punpun é uma história gatilho, e sim, eu me refiro ao gatilho emocional, aquele que aparece em conversas sobre ansiedade e depressão. Ele é perigoso, pois tem o poder de reviver algumas de nossas batalhas internas.
Essa é uma história classificada como “para maiores de 18 anos”, e isso já implica que os temas nela tratados não são um pãozinho de açúcar, especialmente quando se trata da representação visual. A capacidade de Asano em criar imagens sinistramente reais é um dos grandes pontos positivos na obra. É por isso que penso nela como “história gatilho” — não exatamente por ter a capacidade de te fazer reviver o passado, mas sim por te jogar em um abismo de questionamentos como aquele com que iniciei o texto.
Se eu tivesse que desenhar a depressão, que diabo eu faria?
O protagonista desse mangá, Punpun Onodera, é uma criança tímida, introspectiva, que quase não fala (quem conta a história é um narrador onipresente) e é obrigado a viver uma realidade permeada por uma mistura de problemas de criança com problemas de adulto. A forma com que o autor desenha Punpun tem relação com essa descrição. Mesmo sendo um ser humano, a aparência do protagonista em nada se assemelha à nossa. Ele nunca é retratado visualmente como alguém, mas como algo. Dependendo do quadro, ele parece um pássaro ou até um fantasma. De qualquer forma, essa aparência é a maneira como ele se vê — alguém deslocado, diferente.
O Punpun sofre por amor — infantil, sim, mas nem por isso menos verdadeiro — , sofre por ter que dizer adeus aos amigos, sofre por ver a família se desintegrando, sofre por conta da decepção, do abandono e da violência. Perceberam quantas vezes eu usei a palavra sofrer? Não é falta de vocabulário, infelizmente.
Essa é uma história que fala sobre a dor de viver.
Não significa, obviamente, que tudo seja uma espécie de fundo do poço. Existem momentos felizes, cômicos, de união e amizade, mas o foco de Boa Noite, Punpun está em ser um slice of life ou coming-of-age story. Esses são termos estrangeiros que categorizam obras com o tema do amadurecimento, especialmente num estágio de vida que vai da infância aos 20 e poucos anos.
Punpun é uma criança que vem de uma família sem a melhor das fichas médicas no quesito mente. Boa Noite, Punpun aborda solidão, medo, depressão e, dependendo da interpretação, há possibilidades de esquizofrenia. Inio Asano, o autor, trabalha visualmente todos esses conceitos, e o resultado são sequências de quadrinhos que, sem dúvida, mexem com o nosso espírito. Talvez por curiosidade nossa sobre o tema, talvez por excesso de precisão no detalhamento — o que nos assusta.
De qualquer modo, essa obra não poupa esforço quando o assunto é se aproximar da realidade. Tanto que pode ser considerada polêmica, mas não pelas questões mentais. Ao longo da história, acompanhamos o crescimento do Punpun. No primeiro volume, ele é uma criança que, em comparação ao Brasil, estaria no fundamental — em termos de nível escolar. Por se tratar dessa fase de transformação tão peculiar na vida, Boa Noite, Punpun tem uma série de imagens que mostram, sem tabu, o protagonista sentindo seus primeiros desejos sexuais. Ele assiste pornô com os amigos da escola, sente tesão pela colega de classe e se masturba pensando em mulher pelada. A gente acompanha ele até pela experiência da primeira ejaculação.
A combinação de tudo isso é o que torna a obra +18, e, sem dúvida, tem o poder de fazer da história uma pauta de muita polêmica. Já adianto que discordo, e vejo a arte de Asano sob a ótica de alguém que busca, através da imagem, aproximar o leitor do que é a realidade de um garoto no auge de suas primeiras descobertas sobre sexualidade. Apesar de existir a parte gráfica, ainda assim, boa parte das imagens carregam um tom de subjetividade — inclusive, considero a abordagem artística do que seriam os hormônios e a química cerebral por trás da paixão um dos pontos altos do material.
Boa Noite, Punpun é um mangá violento e invasivo, ao mesmo tempo que se permite, através de ótimos personagens, criar um magnífico enredo visual sobre descoberta e crescimento. Em suma, é uma história sobre viver.
Informações Gerais
Pra quem curte desenho e quer conhecer mais do processo criativo do Asano, neste vídeo ele fala sobre técnicas, materiais de apoio e o próprio estilo artístico.
*Essa crítica se baseia apenas no primeiro volume de Boa Noite, Punpun. Em português, há um total de 7 livros.