CRÍTICA: Sem rapsódia, mas com alguns recados para dar

Deslizes, polêmicas e convencionalismo marcam “Bohemian Rhapsody”, mas dão espaço à voz adormecida de Freddie Mercury

Leonardo Ozório
Redação Beta
4 min readNov 16, 2018

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Prepare-se, pois o concerto Live Aid foi recriado. (Foto: Divulgação/21st Century Fox)

Quando Freddie Mercury entoou ao mundo, em outubro de 1991, já adoecido, que “o show precisava continuar”, seus companheiros de jornada Brian May e Roger Taylor fizeram questão de mostrar aos fãs do Queen que ainda havia ineditismo a ser extraído da histórica banda britânica. Mesmo após 27 anos.

Os altos e baixos das turnês conseguintes, decorridos a partir das distintas personalidades que assumiam o vocal, mas, principalmente, a zona do insubstituível Mercury, concederam espaço às telonas do cinema. A experiência, no entanto, também vive em uma montanha-russa.

A começar pelo enredo, que, causando frustração, não é uma rapsódia — uma música que foge do convencional, como Bohemian Rhapsody, que dá nome ao filme sobre a biografia do vocalista do Queen. Pelo contrário, não se desprende da vala comum biográfica de artistas. Você não vai deixar de ver, por exemplo (alerta de spoiler!), aquele cantor que enfrenta a resistência do pai pelo rumo profissional escolhido, conhece os parceiros de banda após uma performance amadora ou confronta, em época de vacas magras, aquele produtor musical que futuramente irá se arrepender pelos milhões de dólares que deixou de ganhar.

Além do mais, a história perpassa por grande parte das situações de maneira muito rasa. Isso traz certa incomodação na medida em que as mentes vivas de May e Taylor — que foram produtores musicais do filme — poderiam ter sido capazes de proporcionar mais aprofundamento e especificidade às cenas. Quando isso ocorre, alguns apontamentos são imprescindíveis — tanto pelas polêmicas quanto pelas precipitações (inclusive conosco, brasileiros!).

A questão da homossexualidade de Mercury, sempre quando acionada pelo filme, ganha doses de indelicadeza e ignorância. Pois o jovem sonhador que promete a fidelidade eterna à amada Mary Austin se torna a personificação da selvageria pelas simples demonstrações afetivas por homens. Em uma das cenas, o músico está cercado pelo excesso de bebidas e abatido pelas drogas consumidas na presença de homens interesseiros, longe dos amigos que abandonou pelos investimentos na carreira solo. Como se tudo isso fosse um sintoma de sua orientação sexual. A própria lição de moral aplicada por Mary, ao se deparar com o estado deplorável de Mercury, desqualifica a sua escolha íntima como se ele estivesse no caminho errado.

Em relação aos deslizes, dois puxões de orelha na produção se fazem necessários. O primeiro, inclusive, 100% brasileiro. Afinal, você deve saber que Love of my Life é o carro-chefe do Queen em nosso país, devido ao coro ensurdecedor do público durante o saudoso Rock in Rio de 1985 — aliás, esteja preparado para se arrepiar! Mas a menção ao show é feita em 1980. Pois é, bola fora.

A segunda, por sua vez, ocorre na origem do single We Will Rock You, em meados de 80, segundo a linha do tempo do filme, que já exibe Freddie com o seu segundo visual emblemático — à base do bigode e do cabelo curto. Porém… a música foi lançada em 1977, época em que ele ainda ostentava o “primeiro visual”, como mostra o próprio clipe:

O que faz do filme especial é, sem sombra de dúvidas, a fidelidade aos traços e características dos componentes da banda, algo que o admirador mais assíduo do Queen certamente irá fiscalizar. O extravagante Mercury, o pacífico May, o playboy Taylor e o silencioso John Deacon são perfeitamente interpretados. O figurino e os cenários são elementos que conseguem inserir o espectador mais jovem nas décadas de 70 e 80 — podendo, ainda, propiciar momentos de nostalgia aos mais velhos.

“Muito já usei wrangler”, comenta uma senhora de 50 anos, durante a sessão, referindo-se à calça que Mercury utilizava enquanto se apresentava no Live Aid.

A trama também dá as devidas proporções aos momentos-chave da banda, como os bons minutos destinados à apresentação no Live Aid — aperte os cintos da emoção! — , além de justificar as declarações ácidas e irônicas que o cantor concedia, em determinado momento da vida, à imprensa. Glória Maria, por exemplo, deve estar se sentindo menos culpada.

A experiência de compreender os anos finais e tortuosos de Mercury por meio de um filme presta contas a um fã que precisou, durante décadas, engolir especulações e informações de caráter duvidoso. Ainda por cima, materializa um coração com certeza sobre o futuro e intensidade em relação ao presente. Quem deixa a escuridão do cinema sabe que a maquiagem escorria, mas o sorriso permanecia.

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Leonardo Ozório
Redação Beta

Graduando eterno em aprendizagem — em Jornalismo, até o final de 2018. Nas horas vagas, um assíduo por literaturas esportivas, históricas e bibliográficas.