CRÔNICA: Tudo é para o público

Marina Salazar
Redação Beta
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4 min readJun 15, 2018

Lembro de todas as peças teatrais que assisti, mas em detalhes as que me marcaram mais. Mãe Coragem, uma montagem de uma companhia alemã onde eu não compreendia uma palavra do que era falado. Fuerza Bruta, uma companhia argentina que pisava em todos os lugares espaciais do Pepsi on Stage, menos o palco — aquele de madeira que fica na frente de muitas filas de cadeiras e geralmente na altura dos nossos olhos. E não posso deixar de contar que a Biblió, uma traça toda cor de rosa e que comia papel enquanto contava suas histórias, me ensinou quem foi Mario Quintana e seus belos poemas.

Ah! Eu não sei falar alemão, nem pretendo, e não precisei para assistir Mãe Coragem. Fixei no olhar de quem estava contando aquela história com o corpo, com as expressões mais sutis dos olhos ou de um sorriso e que, vestindo figurinos típicos do tempo, compunham o cenário.

Falando sério, vocês já sentiram um espetáculo? Já ficaram hipnotizados por Marias se passando por Joanas, por inocentes se passando por vilões? Já pensaram cada detalhe do que está no palco, iluminado ou não, cada palavra pronunciada e trilha sonora que te pega de surpresa entre atos?

Fico pensando que eu posso ser tu e viver a tua vida nos palcos de Porto Alegre. Ou, talvez, tu esteja passando em alguma praça no centro da cidade, escute o teu nome e te reconheça em mim. Bom, alguns acham que arte é um Absurdo!, já eu prefiro achar que o teatro jornal foi criado para denunciar mesmo e representar a exploração para quem estiver passando por aqui ou por aí. E digo mais: não acho besteira que o teatro seja para o oprimido uma ferramenta que dá voz e que a tragédia seja uma forma de rir da nossa própria desgraça. Aliás, você acha que é fácil fazer você rir?

Ensaio do grupo de processo criativo Cia/Estúdio Stravaganza (Marina Lehmann|Beta Redação)

Faz um tempo que estou um pouco afastada das salas de teatro, mas na noite da segunda-feira, 11 de junho, acompanhei um ensaio da turma de Processo Criativo da Cia/Estúdio Stravaganza, que fica nas imediações da Avenida Ipiranga com a Rua Santana, em Porto Alegre. Passava das 19h, um cheiro forte de incenso se espalhava por todo o espaço, enquanto eu escutava páginas sendo viradas por quinze pessoas que, sentadas em roda, passavam o texto que haviam criado, fala por fala.

“Tem nude agora!”, brinca o diretor enquanto ajuda a montar as cenas. Todos caem na risada.

Rapidamente a montagem Quem tem medo de Odete Roitman vai se desenhando. “Tem mais coisas nas cenas”, completa uma das atrizes. Verdade! A peça traz elementos e acontecimentos marcante dos anos 80 no Brasil.

Logo o diretor convida:

— Vamos aquecer?

Uma música calma começa a tocar e ele orienta:

— Vão enchendo o corpo! Alongando! Pensem em alongar o corpo, ocupar mais espaço! Tragam a energia de vocês para cá!

Os movimentos ainda eram lentos quando o diretor começa a apelar para os sentidos e coloca para tocar, na voz de Elis Regina, a música em que o Milton Nascimento conta que é da América do Sul e aconselha que não é preciso temer, que todo dia é dia de viver. Alguém desliga as luzes gerais e o espaço começa a ficar mais aconchegante.

Novamente o diretor conduz:

—Vai trazendo o olhar, olho para fora, olho vivo! Vai saindo do lugar trazendo o olho e o corpo, buscando o olho do outro!

E, de repente, os movimentos e passos estão no mesmo ritmo e embalo. O diretor grita pedindo que mais sentimento fosse trazido para o corpo na medida que as músicas fossem mudando. Sem precisar pedir duas vezes, todos se divertem. “ Oh! Eu te amo! oh! Eu te amo, meu amor! Oh! Eu te amo!
E o meu sangue ferve, por você!”, cantam alto em coro Sidney Magal.

Passa para uma baladinha que embala os corpos e nada parece que vai para-los.

— Estátua!

O grito do diretor é para que todos prestem a atenção. “Agora vocês vão trabalhar as cenas e mostrar o que ainda não foi mostrado”.

O suor começa a escorrer sob a luz dos holofotes e ainda faltam duas horas de ensaio. Após uma rápida pausa, trios e duplas se formam.

“A gente tem que bater mais o texto, né?”, conversam dois atores.

Enquanto os diálogos se entrelaçam, alguns dão risadas, outros exploram o espaço gesticulando com a boca, mãos e braços, um trio lá no fundo passa o texto em voz alta. “Não grita! Eu não sou surdo! Eu já falei que não sou surdo!”, encena o ator lendo o roteiro.

Na cena que era ensaiada no meio da sala surgem dois bambolês. Mas é a cena que acontece na minha frente que prende a minha atenção. Dois atores, sérios, um deles desconfiado, falam juntos o texto. “Estive sozinho! Mas nunca vivi sozinho”, concluem.

O girar dos bambolês acaba por me hipnotizar. De repente, desperto. “Não precisa gritar! Eu não sou surdo! Já falei!”, repete a cena o trio do fundo. E o diretor que os observa, provoca: “Vocês vão trazer mais o que? Quero que mais elemento dos anos 80 apareçam”.

Mais para a direita, uma atriz compartilha uma ideia tocando com a mão esquerda entre o pescoço e o seio. “Tu pode estar com um beijo, uma marca de batom aqui”, expressa.

Quando vou percebendo que cada cena começa a dar forma ao espetáculo, o diretor avisa que em cinco minutos uma por uma das cenas será apresentada. Eu já faço parte do grupo e percebo que vários olhares se direcionam para mim. Troco de lugar, sento na plateia. Toca a última campainha quando eu escuto o diretor.

“Atenção! Intenção! A partir de agora, tudo é para o público.”

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