Da campanha à eleição: a necessidade de uma política com igualdade de gênero

Cristina Bieger
Redação Beta
Published in
10 min readApr 8, 2022

Apesar de ocuparem apenas 15% das cadeiras no parlamento, as mulheres apresentam 40% mais proposições e aprovam até três vezes mais que os homens

Da esquerda para direita: Gisele Agnelli, Isabela Rahal, Bruna Fagundes e Larissa Alfino. Grandes referências que se dedicam ao trabalho de eleger mais mulheres para a política brasileira. (Arte: Cristina Bieger/Beta Redação)

Faz apenas 90 anos que o direito mais básico de participação cidadã foi adotado no Brasil para as mulheres, e ainda assim, de forma restrita: apenas para viúvas ou quem pudesse comprovar sua independência financeira. Até então, grupos feministas eram ridicularizados e considerados incapazes de ocupar espaços políticos. Se comparado ao voto masculino, somam-se 400 anos de intervalo, consolidados pela organização da vida política e pública, e com consequências refletidas ainda hoje.

Durante essas nove décadas, as mulheres evoluíram na política, mas a passos curtos e lentos. É possível perceber isso comparando a evolução da eleição na Câmara dos Deputados e no Senado Federal entre os anos de 1982 e 2014. A quantidade de mulheres eleitas veio subindo até 2002, quando apresentou uma tendência de queda. O dado aparece na 2º edição do livreto Mais Mulheres na Política, publicado pelo Senado Federal.

Evolução das eleições de mulheres na Câmara dos Deputados e Senado Federal. Fonte: 2º edição do livreto mais mulheres na política (Arte: Cristina Bieger/Beta Redação)

Apesar do espaço político ainda ter pouca igualdade de gênero, e as mulheres ocuparem um baixo percentual de cadeiras — mesmo sendo 52% da população — , estudos mostram que a presença feminina na política é fundamental e eficiente.

Em termos de resultados, as mulheres apresentam 40% mais projetos que os homens e aprovam até três vezes mais que eles, especialmente em temas de Saúde, Educação, Direito da Família e Direitos Humanos. E esses resultados num contexto em que elas representam apenas 15% do parlamento.

Outros dados importantes obtidos através de pesquisas revelam que, quanto maior a participação feminina nos governos, menores são os índices de corrupção. Empresas com maior diversidade de gênero em cargos de liderança apresentam 25% mais lucratividade, o que se reflete, de forma geral, em um maior desenvolvimento econômico.

Linha do tempo apresentando a evolução das mulheres na política. Fonte: 2º edição do livreto mais mulheres na política (Arte: Cristina Bieger/Beta Redação)

Países liderados por mulheres apresentaram melhores resultados no combate à pandemia da Covid-19, com menor números de casos e de mortes. O fato evidencia que é impossível falar em saúde sem incluir as mulheres no debate.

A democracia só será verdadeira se for plural, plena e diversa. Não existe democracia quando a maior parte da população está fora dos processos de decisão. Pensando nisso, a Beta Redação ouviu mulheres envolvidas politicamente e dedicadas ao trabalho de promover mais candidaturas femininas, a fim de tornar esse espaço de poder mais igualitário e justo. Engana-se, no entanto, quem acredita que o trabalho termina após a eleição: a luta pela conquista de respeito político é diária e ainda se mostra longe do ideal.

Um lugar necessário, mas falta representação e apoio

“Quando as mulheres não ocupam esses espaços de poder por tanto tempo, elas não se veem neles. É como se as mulheres acreditassem que esse espaço não é para elas. Um lugar onde só tem homens brancos e de uma certa faixa etária. É assim que a gente cresce vendo os políticos no Brasil, e isso tem um impacto”, afirma a socióloga com especialização em Ciências Políticas pela PUC-SP, Gisele Agnelli.

Hoje, Gisele se dedica à luta pelos direitos das mulheres, educação e controle social da gestão pública. É ativista e faz parte de iniciativas como o Grupo de Mulheres do Brasil, fundadora do Vote Nelas e conselheira do Instituto Política Viva. Ela ressalta a importância que foi a eleição de uma mulher como presidente do Brasil, e o quão fundamental foi para meninas e mulheres terem uma referência de que esse espaço de poder pode ser para elas.

Para Gisele, o Brasil se desenvolveu com uma estrutura machista e um sistema de patriarcado — sistema social baseado em uma cultura, estruturas e relações que favorecem os homens, em especial o homem branco, cisgênero e heterosexual -, fator que, aliado às duplas jornadas, corrobora ainda mais para afastar as mulheres do meio político.

Situações de estresse, dificuldades emocionais, falta de apoio familiar e abuso psicológico também fazem parte do pacote de desafios enfrentados por quem deseja assumir e declarar que quer ser candidata. “Essa estrutura machista impacta muito mais a campanha de uma mulher do que a de um homem”, complementa.

Devemos ter em mente, principalmente para combater discursos preconceituosos, que mais mulheres na política não é mero preenchimento de cota, mas uma questão de eficácia e de trazer para perto um olhar que hoje não é muito presente na construção de políticas públicas.

Larissa Alfino, formada em Relações Públicas pela Cásper Líbero, de São Paulo, é diretora de projetos do Instituto Vamos Juntas há dois anos. Para ela, a importância da igualdade de gênero se expressa na sensibilidade do olhar de quem sente na pele as dificuldades. “Quem pensa na mãe periférica que trabalha e não tem onde deixar o filho? Quem pensa na licença maternidade ou paternidade? Quem tá pensando nos direitos trabalhistas, ou olha para o combate à violência doméstica, para o combate ao estupro e ao feminicídio? Não são os homens, porque não são eles que passam por isso”, explica.

Gisele Agnelli complementa com um exemplo prático dessa realidade ao relembrar direitos que demoraram a ser conquistados.

“A própria Lei Maria da Penha só conseguiu acontecer no Brasil através de instituições internacionais. A Maria da Penha foi diversas vezes à Justiça e não conseguiu nem justiça para o seu caso de violência. Por isso, as mulheres precisam ocupar assentos, para participar do processo de criação de políticas públicas que nos interessam”, enfatiza.

Arte: cristina Bieger/Beta Redação

Quando falamos da construção de políticas públicas, inserir o contraditório é uma experiência que não pode ser ignorada e que impacta positivamente o Brasil inteiro. O diálogo plural é um meio importante e crucial, principalmente em um país continental como o nosso.

“É um olhar igualitário e necessário se quisermos fazer desse país um lugar mais justo e desenvolvido, com mais foco em Educação e Saúde”, complementa Larissa.

Bruna Fagundes, articuladora do Movimento Mulheres Negras Decidem, formada em Gestão Pública pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Assessora Técnica na Secretaria Especial de Políticas e Promoção da Mulher na cidade do Rio de Janeiro, acredita que, enquanto população, elegemos homens brancos e ricos para nos representar e eles tendem a defender, por essência, seus próprios interesses.

“Se o sistema democrático deve representar a população, acredito que o primeiro passo para diminuir as desigualdades existentes é deixar os espaços políticos com a cara real do povo brasileiro. É preciso ter pessoas que conheçam e sintam a realidade do país”, completa.

Uma política de cotas falha

A Lei Eleitoral em vigor hoje no Brasil prevê que 30% das candidaturas dos partidos ou coligações em eleições proporcionais (vereador, deputado estadual e deputado federal) devam ser destinadas a mulheres. Entretanto, no dia 30 de março de 2022, a Câmara dos Deputados aprovou a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que anistia os partidos que descumprirem a cota mínima de recursos para candidaturas de mulheres e negros nas eleições. A matéria segue agora para sanção presidencial.

Ruim e ineficiente

Para Gisele Agnelli, a PEC representa um desrespeito e uma ameaça aos direitos conquistados pelas mulheres. “A gente vive um momento em que aumenta de forma pífia a quantidade de mulheres na política de uma eleição para outra, e mesmo assim comemoramos muito, mas no fundo, está sendo muito lenta essa passagem e agora as cotas estão ameaçadas”, complementa.

Bruna comenta que, como os partidos são obrigados a cumprirem a cota de gênero, usam pessoas ou dados aleatórios de mulheres para justificarem o cumprimento da lei. “Por não termos uma legislação que seja efusiva ao acompanhar, denunciar e punir esses casos, os partidos admitem publicamente o uso de candidaturas laranjas e nada acontece”, explica.

Para ela, “a lei de cotas não é suficiente para a mudar nossa realidade, mas possivelmente, se não a tivéssemos, não haveria nenhuma pessoa preta disputando eleições ou dialogando sobre política”.

Para Isabela Rahal, coordenadora legislativa no gabinete da deputada Tabata Amaral (PSB-SP) na Câmara dos Deputados e diretora de Articulação Política na ONG Elas no Poder, a política pública brasileira para a inclusão de mulheres é ruim e ineficiente.

“A gente tem partidos que não dão apoio nem recursos. Eles cerceiam essas mulheres, que sofrem violência em todas as fases do processo, desde que elas decidem se candidatar ou quando entram em algum órgão político até o final”, explica.

Segundo ela, faltam mulheres nas diretorias dos partidos, onde é decidido quais candidaturas vão receber mais apoio ou não. “Esses 30% para candidaturas não são efetivos, porque os partidos vão procurar candidatas de última hora para preencher o mínimo, e muitas vezes, são candidaturas laranjas”, completa Isabela.

Em resumo, o termo candidatura “laranja” é utilizado quando alguém assume uma função no papel, mas que não será exercida de fato. Ou seja, o partido político faz uso do nome do candidato apenas para se auto-beneficiar e burlar a lei. Desse modo, as candidaturas laranjas não prejudicam somente a mulher, mas o país inteiro. É comum as pessoas que passam por essa situação não saberem que sua candidatura foi usada como laranja, ou sequer que eram candidatos na eleição.

Uma pesquisa publicada pela BBC apresenta que 35% de todas as candidaturas de mulheres para a Câmara dos Deputados, na eleição de 2018, não alcançaram 320 votos. Ou seja, ao que tudo indica, sequer fizeram campanha, o que sugere que foram usadas apenas para cumprir formalmente a lei de cotas.

O estudo apresenta que, 20 anos após a introdução da lei de cotas, em 1998, pouco se avançou na representatividade de mulheres na Câmara. De lá até 2018, o percentual de deputadas passou de 5,6% para 15%. Entre os critérios adotados para uma candidatura ser classificada como laranja está receber menos de 1% dos votos obtidos pelo candidato eleito menos votado no Estado.

Os dados indicam que o PSL, antigo partido do atual presidente Jair Bolsonaro, foi o que apresentou maior disparidade na competitividade entre homens e mulheres, o que para as pesquisadoras, é um forte indicativo de uso de candidaturas laranjas. Das candidatas para a Câmara dos Deputados, 16% podem ter sido laranjas.

Isabela explica que “tem uma série de maneiras de você transformar a candidatura de uma mulher em laranja, do grau mais absurdo dela não saber, até o grau absurdo também que é ela receber recursos e ter que repassar para um homem, porque foi coagida. Essa mulher que passou por isso vai pensar um milhão de vezes antes de se candidatar de novo. Então está sendo criando um fim na carreira política dessa mulher”.

Ela complementa dizendo que não existe espaço vazio na política. "Não existe cadeira vazia, tem sempre alguém sentado nela. Então para uma mulher sentar na cadeira, um homem tem que perder a dele. Então eles estão realmente em uma posição muito confortável”, acrescenta.

Gisele ainda completa dizendo que “se as cotas fossem cadeiras, a gente teria uma realidade muito diferente no Brasil. E pulando de uma eleição para outra se consegue a paridade, mas isso ainda é muito discutido no Brasil, ainda patina e tem muita gente contra”, explica.

Para ela, a mulher pode ter a pauta ou agenda que ela quiser, pode deliberar sobre qualquer assunto, mas existe uma cultura nos partidos de jogar as mulheres em uma caixinha. “A caixinha da mulher é a primeira, porque mulher é cota. Eles têm essa cultura de ver a mulher como cota, como não competitiva e a restringi-la a pauta das mulheres”.

Quem está junto nessa luta

“Os desafios da mulher não acabam nunca. A mulher, por mais competente e especializada que seja, precisa sempre provar sua competência e seu profissionalismo”, comenta Bruna.

Apesar de todos os dados, as mulheres ainda batalham para serem reconhecidas como autoridades — figura ainda relacionada a homens. Um exemplo disso é o relato da ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Cármen Lúcia.

As mulheres ouvidas nesta entrevista participam de coletivos e organizações que lutam por uma maior participação feminina na política. O trabalho é voluntário e ajuda as candidatas em todos os processos que envolvem a candidatura. Conheça o trabalho:

VOTE NELAS: fundado em 2018, é um coletivo suprapartidário formado por mulheres, organizado de forma independente, voluntária e colaborativa. O trabalho é voltado para que as mulheres possam se reconhecer como força política, e lutam para eleger mais mulheres para o legislativo brasileiro.

VAMOS JUNTAS: Criado em 2019, o instituto tem como objetivo incentivar mulheres que já ocupam posições de lideranças em suas comunidades a se candidatarem a um cargo eletivo. O Vamos Juntas auxilia a desenvolver as candidaturas para tornar as campanhas mais competitivas. Através de um processo seletivo nacional (esse ano são 200 vagas), busca-se mulheres no Brasil inteiro para serem ajudadas em dois pilares: um mais técnico, onde ela recebe todo o suporte em termos de capacitação, conta com um mentor político, para olhar e ajudar com as estratégias de campanha e serviços. E um pilar socioemocional, onde ela recebe voluntários para a campanha dela. O instituto busca voluntários pelo Brasil para trabalhar com essas candidatas, gerando uma rede de troca de experiências. É um projeto que dá recursos indiretos, não é valor em dinheiro, mas todo o resto é oferecido.

ELAS NO PODER: a história começa em 2018, quando as sócias e amigas Karin Vervuurt e Letícia Medeiros fundaram uma empresa de pesquisas e consultoria política em Brasília. No ambiente político, elas perceberam que as mulheres não tinham espaço para obter recursos para as suas campanhas. Somente candidatos homens, em sua maioria brancos e com conexões dentro de seus partidos, que conseguiam acesso à serviços de inteligência de campanha eleitoral. O Elas no Poder nasce para tornar as campanhas femininas mais competitivas e preparadas, quebrando barreiras que impediam elas de chegar ao poder. Em 2019, a ação torna-se oficialmente uma ONG e começa a expandir a atuação para todo o Brasil. Hoje, são 61 voluntárias espalhadas pelo país e pelo mundo.

MULHERES NEGRAS DECIDEM: desde 2018, qualificam e promovem agendas lideradas por mulheres negras na política institucional, a fim de fortalecer a democracia brasileira e superar a falta de representatividade de mulheres negras nas instâncias de poder. Hoje, o movimento conta com mais de 200 articuladoras em 20 Estados do Brasil.

--

--