Dados são aliados de comentaristas em jogos de futebol

Gustavo Fogaça se vale de estatísticas para complementar a análise de uma partida de futebol

Ivan Júnior
Redação Beta
9 min readOct 8, 2020

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Jornalista defendo o uso de dados na análise das partidas de futebol, a exemplo do que ocorre nas coberturas de esportes norte-americanos. (Foto: Reprodução/LinkedIn)

Quando comentaristas analisam jogos de futebol em transmissões de canais de televisão ou emissoras de rádio ou redigem textos para portais e jornais, cada profissional imprime seu estilo. Enquanto jornalistas esportivos focam as críticas em aspectos perceptíveis a olho humano, como os movimentos táticos e o desempenho do atleta, outros têm estendido os comentários observando as estatísticas do jogo. Além de visualizar o número de finalizações da equipe, por exemplo, buscam compreender se aqueles números se repetem ou são melhores quando comparados à média da equipe em outros confrontos.

Gustavo Fogaça é analista de desempenho com licença da CBF e comentarista da plataforma de streaming esportivos DAZN e do portal Goal e realiza a análise de dados para complementar as percepções sobre partidas de futebol. Ele justifica a utilização das estatísticas de jogos nas análises como uma tentativa de identificar e traduzir de forma didática a visão de jogo dos treinadores. “Os números nas análises impedem que trabalhe com achismo, pois tudo que falo é baseado em ciência, em estudo. A minha opinião pode ser aceita ou não, mas toda informação está embasada em dados para que eu não fale qualquer coisa”, argumenta.

O comentarista enumera que em jogos de futebol ocorrem, em média, entre 3 mil e 4 mil ações, tais como passes, cabeceios, finalizações, interceptações, sendo humanamente impossível os olhos captarem cada situação. Os dados oferecem subsídios para que o profissional que analisa uma partida possa comprovar algumas situações, revelando, por exemplo, se determinado atleta está errando muitos passes, conforme explica Fogaça.

Em transmissão pela rádio Gaúcha, ele recorda de um jogo do Grêmio em que muitos torcedores reclamavam dos erros de passes do volante Ramiro. Na ocasião, Fogaça acessou as estatísticas com o intuito de verificar a média de erros de passes por partida, quantos tinham a direção da defesa ou do ataque e constatou que a percepção dos torcedores estava equivocada. “Se quisesse ficar bem com a torcida do Grêmio, diria que o Ramiro estava errando muitos passes, que era melhor substituí-lo. A torcida ficaria feliz, mas não posso fazer isso. Os números estão me dizendo o contrário e tenho a obrigação de dizer a realidade, mesmo que isso seja o que não querem escutar”, afirma.

Alguns comentaristas parecem resistir à utilização de dados nas análises e outros viram motivo de chacota por se valerem de números para descrever os acontecimentos protagonizados em campo. “As percepções de futebol são muito individuais e não existe uma regra única sobre como analisar os jogos. Tem comentarista para todos os públicos”, expõe.

Para Fogaça, o futebol é um jogo democrático, possibilitando ser visto por diferentes vieses, com base nos critérios de cada analista.

Confira a entrevista feita pela Beta Redação com Gustavo Fogaça, via WhatsApp, no dia 1°de outubro.

Beta Redação: Como os dados de uma partida podem auxiliar na hora de falar dos acontecimentos do jogo? Aliás, quais principais dados de uma partida devem ser observados e como irão interferir nas análises?

Os dados ajudam a ver as coisas que a gente não vê, ajudam a firmar sensações que nós temos. Vou dar um exemplo bem prático. Num jogo do grêmio que estava transmitindo na rádio Gaúcha, via que os torcedores do grêmio nas rede sociais estavam reclamando que o Ramiro estava errando muitos passes e que também dava muitos passes para trás. Fui ver as estatísticas do Ramiro, ver qual era a média dele na temporada, quantos passes errava em média por jogo, quantos passes dava para frente ou para trás e me dei conta que era uma percepção errada dos torcedores. O Ramiro naquele jogo estava errando menos do que na média. Estava acertando mais passes e dando mais passes para a frente.

Talvez tenha sido um passe que chamou muito a atenção ou que encheu o saco da galera ou que gerou uma chance de perigo para o adversário, dando a sensação de que o Ramiro estava errando muitos passes. Mas não estava. Preciso ser justo com o que os números mostram na análise do atleta e daí uso os dados. Qualquer comentário que faço na TV, no rádio ou na escrita, sempre olho tudo antes para ver se não estou falando groselha. Os números nas análises me impedem que trabalhe com achismo, pois tudo que falo é baseado em ciência, em realidade, em estudo. A minha opinião pode ser errada ou não, ser aceitar ou não, mas toda informação estará embasada em dados para que não fale qualquer coisa.

Beta Redação: Por que é relevante olhar para os dados na hora de analisar um jogo de futebol?

Os dados dão embasamento, trazem a possibilidade de não falar qualquer nota ou não deixar levar pela minha percepção ou pela minha paixão ou pela vontade que tenha de confirmar uma tese. Os números me impedem de mentir, e isso é muito importante, pois me impedem de enganar o espectador. Hoje todo mundo tem acesso a tudo. Voltando para a situação do Ramiro, se quisesse ficar bem com a torcida do Grêmio, diria: o Ramiro tá errando muitos passes, melhor tirar o Ramiro. A torcida ficaria feliz, mas não posso fazer isso. Os números estão me dizendo o contrário. Tenho obrigação de dizer a realidade, mesmo que isso seja o que não querem escutar.

Beta Redação: Qual o cenário do uso de dados para análises de jogos no Brasil?

Vejo que as pessoas usam de forma muito errada as estatísticas. Não colocam em contexto, não analisam se tem a ver com a média do time. As pessoas pegam os números frios e metem num balaio a posse de bola, as finalizações, número de passes e não colocam em contexto. Tem uma frase que digo sempre: os números nunca mentem, mas não nos dizem toda a verdade. A gente precisa saber ler, precisa saber colocar em contexto, senão vira qualquer nota. É pegar os números a seu favor, só para manter uma tese, não falar a verdade. Isso tem acontecido muito na mídia. Porém, prefiro que as pessoas usem os números de maneira errada do que não usem nada. Usar abre portas para que as pessoas comecem a aceitar um pouco mais esse tipo de narrativa, o que me favorece. Quem sabe daqui a 20 anos tenhamos mais qualidade na análise de dados no jornalismo brasileiro. Por hoje, não é bom. São pouquíssimos os jornalistas que usam de forma correta as estatísticas do jogo para leitura, mas têm muito interesse. Não critico. Prefiro que as pessoas façam errado e sigam se interessando.

Beta Redação: Desde quando se interessa por análise de desempenho? Como se preparou para exercer a função e quais dados costuma observar? Qual a origem do interesse neste aspecto?

Comecei a me interessar pelo uso de dados na análise esportiva porque gosto muito dos esportes norte-americanos e o jornalismo norte-americano sempre usou muito estatísticas. Sei também que usam demais. Pessoalmente, até acho que passa da conta. Eles criam muitas estatísticas sem o menor sentido, somente para ter. Sempre me interessei por essa narrativa e sempre pensei o motivo do futebol não usar a ciência. Não só os números, mas mapa de calor, mapa de passe, tudo que seja científico no futebol, nunca houve. Me formei no curso técnico de análise de desempenho na Espanha, depois tirei a licença de analista de desempenho na CBF, com o intuito de trabalhar como analista de desempenho, não propriamente como comentarista, mas como comecei a trabalhar com comentário trouxe essa visão de analista de desempenho para os meios de comunicação. Foi o que fiz e o que me interessou em trabalhar assim nos meios, tentando contar do ponto de vista de quem faz o esporte, que é bem diferente de quem assiste.

Beta Redação: Quais atributos como mapa de calor, movimentação no jogo, índice de acertos de passes, finalizações, chances reais de gol, entre outros, considera mais importante observar ao longo de uma partida de futebol? O que podemos tirar de cada um deles na hora de analisar o jogo?

Aqui precisamos diferenciar. Existem dados de eventos e há índices de performance. Dados de evento são os números frios e separados, como posse de bola, número de passes, finalizações, número de desarmes. Os índices de performance são a união de vários dados de eventos dentro de um algoritmo, dentro de uma fórmula, para achar um índice mais profundo que fale mais do desempenho coletivo e individual. Por exemplo, você tem os gols esperados, a rede de mapa de passes, o PPDA que mede a intensidade defensiva. Eu já criei índices de performance que posto nas minhas redes, como o Justix, que mede o índice de justiça nos resultados, outro índice que mede qualidade e competência defensiva e o que mede ações que levam a gol. Já é um padrão estabelecido por todos analistas de dados que trabalham com futebol em alto nível que os índices de performance falam muito mais do jogo do que os dados de eventos frios. Então, você consegue falar muito mais o que aconteceu na partida falando do índice de performance, do que usar simplesmente os dados de evento. É claro que os dados de evento servem, embora os índices de performance deem uma visão mais profunda.

Comentarista usa o twitter para postar análises baseadas no índice de perfomance Justix. (Foto: Reprodução/Twitter)

Beta Redação: Como vê o desenvolvimento do uso de dados nos clubes brasileiros? Ainda estamos muito distante do padrão e da profissionalização na Europa? Como os clubes europeus, e até mesmo analistas, trabalham com dados na análise do futebol?

Ainda estamos muito longe do que se faz na Europa, do que se faz nos Estados Unidos e do que se faz em lugares como China ou Japão. No Brasil, se paga muito mal o analista de desempenho. Se paga muito mal o auxiliar técnico. Se paga muito mal o analista de dados. Começa por aí. É uma cultura de desprezo das gestões por esse tipo de profissional. Para que vou trazer um nerd que nunca jogou futebol na vida, que nunca pisou num gramado, para que ele diga o que estou fazendo de certo ou errado? Os egos masculinos são muito difíceis e não aceitam esse tipo de situação. Levará muito tempo até a gente ter análise de dados nos clubes brasileiros como parte de uma comissão técnica linear, horizontal, com a mesma hierarquia ou com peso interessante, como acontece na Europa.

O chefe de análise de dados do Liverpool tem o mesmo poder de decisão na comissão técnica que o Klopp, só que o Klopp é o treinador, o cara que para fora é o chefe, mas dentro da comissão tem o mesmo peso do preparador físico, do médico, do preparador de goleiros. E o analista de dados é um cara importante na comissão. Isso aqui no Brasil vai levar muito tempo ainda, talvez os meus netos vejam isso. Os clubes europeus estão num estágio bem avançado de tracking data, que são dados que permitem um acompanhamento e uma análise muito mais profunda de movimentações e ações de jogo e criação de índices de performance mais complexos. O futebol está numa evolução muito veloz na questão de análise de dados lá fora e isso está fazendo com que os clubes europeus, que há algum tempo estão muito mais avançados, sigam crescendo em escala exponencial em relação ao estado lento e atrasado que nós temos aqui.

Beta Redação: Como posso começar a observar os dados quando for analisar uma partida de futebol, olhando para um time ou um jogador específico?

Antes de tudo a pessoa precisa entender de futebol. A gente tem aquela ilusão de que nós entendemos porque a gente joga futebol com os amigos desde criança. O futebol profissional é uma sequência de repetição de padrões que são internalizados na mente de jogadores, comportamentos coletivos e individuais que respondem em campo de forma sistêmica a tudo que é feito, não somente correr atrás de uma bola. Quando vamos jogar uma pelada com os amigos, não ficamos nos preocupando com posicionamento, com recomposição, onde preciso ir. Queremos nos divertir e correr atrás da bola. A gente analisa o futebol profissional por essa ótica. Não funciona assim.

Antes de saber trabalhar com dados, o que aconselho é que leiam livros sobre futebol e entendam o futebol como como um treinador, como um auxiliar técnico, como uma analista de desempenho. Não como torcedor ou como um cara apaixonado. A paixão vai continuar e até vai crescer, porque irá entender como é feito. Isso serve para qualquer profissão. Trabalho com filmes há muito tempo, escrevo roteiros e dirijo. Se as pessoas soubessem como são feitos os filmes, as séries, as novelas, iriam enlouquecer. A partir daí, estudar essa parte mais estatística, matemática aplicada, inteligência artificial, enfim, mil vertentes que podem e estão sendo usadas no futebol profissional, olhando para o que cabe mais na visão e no gosto de cada um.

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Ivan Júnior
Redação Beta

Jornalista em formação. Me interesso pelo acontecimento cotidiano. Ademais, tenho uma paixão por ler e discutir futebol e política.