Das pinturas nos becos para as artes nos prédios

Jackson Brum e a consolidação do grafite como arte e expressão cultural contemporânea

Murilo Dannenberg
Redação Beta
17 min readNov 21, 2020

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Apaixonado pelo trabalho e de personalidade forte, Jackson não hesita em se posicionar (Crédito da foto: Instagram/Jackson Brum)

A cultura de rua e o movimento hip-hop são mais do que simples expressões culturais. São parte de uma filosofia de vida. Quem diz isso é o grafiteiro, designer e bailarino Jackson Brum. Conversamos com o artista porto-alegrense de 38 anos, que desponta como um dos expoentes da cultura de rua no Rio Grande do Sul e tem trabalhos por diversas cidades pelo Estado.

Brum tem mais de 20 anos de carreira e atualmente mantém um estúdio no complexo Vila Flores, na Capital. De uma geração do começo dos anos 1980, ele se vê como integrante da velha guarda gaúcha da cultura hip-hop. Durante quase duas horas de entrevista, o grafiteiro falou sobre suas origens, trabalho, família e o que é ser artista.

Quem é Jackson Brum?

Eu sou uma pessoa bem tímida, na real. Não sou de muitas palavras. Sou aquele cara que, acredite se quiser, estou muito feliz. Mas não fico de sorrisos ou “hahaha”, sou bem tranquilo. Por isso acho que o desenho e as artes me fizeram muito bem, porque é uma forma de comunicação, né? Eu trabalho há bastante tempo com isso. Nas palestras eu sempre falo: grafite em uma palavra é expressão. Ponto. O que o diferencia de outras artes é que ele está na rua.

Quando eu tinha uns 11 anos, meus pais compraram um terreno na Restinga e fomos pra lá. Foi onde eu conheci a URT [União Rap da Tinnga] que eram reuniões da galera do Rap, que se encontrava para discutir, falar e treinar. E eu, molequezão, cheguei nessa história. Pra mim foi um prato cheio. Eu era um cara que fui sempre das artes, dos esportes, do desenho. E aí comecei com a dança. Lá formei meu primeiro grupo de rap que foi até meus 20 e poucos.

Na sequência, eu descobri que tinha o grafite na cultura hip-hop. Aí eu brinquei que na real essa parada eu já faço. Porque é desenho, né. A única diferença é que é na rua.

O artista fala de seu estúdio com orgulho. O local específico para trabalho representou virada na postura profissional de Jackson (Crédito da foto: Instagram/Jackson Brum)

Teve referências ou incentivos em casa?

Em casa, particularmente, não tinha ninguém das artes não. Eu sou o único que terminou o estudo de forma regular, que fez faculdade, que saiu desse meio de não ter carteira assinada. Fui funcionário público até 2007, quando pedi as contas para viver da arte mesmo. No geral, o pessoal é mais certinho. E a mãe nunca me disse que sim e nem que não. Não incentivava, simplesmente deixava. Acho que isso, de certa forma, era o incentivo da forma dela.

Na real nunca teve uma referência. Minha parada era muito de mim mesmo. Gosto de fazer as coisas e sou sempre a mil. Na época de fundamental ainda, eu estudava de manhã e, de tarde, eu não saia da escola. Naquela época não tinha projetos de contra-turno, mas tinham os clubes, né. Eram projetos de esportes, e eu estava sempre lá, até quando eram técnicas domésticas, agrícolas, qualquer coisa. Qualquer coisa que eu pudesse aprender algo eu estava envolvido. O que envolvia o corpo e a criação eu gostava de estar envolvido.

Quando não era isso, eu gostava de estar com o meu grupo de rap ensaiando. Aí a gente passava a vida inteira treinando, discutindo e falando sobre isso. Minha adolescência foi muito nesse meio. Foi aí que eu acabei crescendo, né. Porque as artes, na verdade, te dão a possibilidade de se comunicar com as outras pessoas, né. É isso que ela faz. Eu, por ser uma pessoa tímida, tinha essa possibilidade de conversar. Era isso. Me obrigava a conversar com as outras pessoas, e até hoje é isso. Tanto pelo grupo de rap quanto pelo grafite, muita gente me conhecia, o que eu achava muito massa.

E lá, nesses grupos, tu tivestes contato com algumas referências?

Era outra realidade, na real. Parecia outro mundo em 92. Não existia internet. Às vezes era difícil saber o que tinha na outra rua, em outro bairro. Não se conhecia. Eu lembro que as primeiras fitas cassetes demoraram muito pra chegar, a gente ficava catando e vendo mil vezes as coisas que chegavam. Lembro de Backstreet Boys e essas coisas que acabavam chegando, mas de forma muito pequena.

Só não foi pior porque naquela época, a Restinga era um lugar muito massa. Ainda é, culturalmente, mas naquela época era muito mais foda. Não era só o Carnaval, tinha de tudo. Rap, pagode, samba, tudo era muito bacana. Tinha uma certa organização e, por sorte ou azar, eu estava naquele meio.

Da dança, eu lembro de uma galera do rap (sou péssimo com nomes) e isso foi minha referência, e a essência, que era coletiva, era o meio. Não de grupos especiais. Todo mundo fazia alguma coisa. Depois que apareceram outros grupos que eram mais próximos do que a gente fazia, como o Backstreet Love, Independentes, Big Boys, que eram os grupos mais "bam bam bam". Era uma galera que já era nego véio e a gente era moleque e víamos eles ensaiando. Mas nunca foi um processo de alguém nos ensinar, a gente aprendia meio que por osmose.

Demorou muitos anos pra eu conseguir ter aquele link de que tem mais gente que faz isso. Até meus 20 anos a gente não fazia pra ganhar dinheiro. Até hoje pra mim é meio esquisito ganhar dinheiro com grafite. Porque a gente não fazia pra isso. A gente fazia porque tinha que fazer. Era tipo isso. Fazíamos porque gostávamos muito. Ponto.

Com portfólio eclético, instituições como o Hospital Moinhos de Vento já contrataram o artista (Crédito da foto: Instagram/Jackson Brum)

Tu achas que isso acontecia porque não tinha o interesse de se comercializar, mas sim de se manifestar?

Acho que é isso, na verdade. Eu sou um cara que muito tempo fez eventos, projetos e confesso que cansei. Porque eu ligava para um moleque que começou ontem a pintar pra participar de um evento meu e o moloque me perguntava o que ia ganhar com isso.

Eu me lembro que quando eu tinha 15 anos e achava um evento, eu fazia das tripas coração pra estar sentado nesse lugar só pra aprender e pra conhecer outras pessoas que faziam as mesmas coisas. Aquelas pessoas não pintavam pra ganhar dinheiro ou pra aparecer. Pintavam porque queriam, ponto.

O grafite sempre foi uma desculpa pra estar junto com a galera. Sempre foi a ação, o momento, trocar uma ideia com as pessoas. Fazer trocas. Era isso. O trabalho era meio que consequência. Tanto que era normal a gente pintar em becos, vielas, porque era isso, nunca foi pra aparecer.

Eu vejo bastante hoje e acho ridículo, o cara faz o grafite e bota o telefone dele. Já quer ganhar dinheiro. O pessoal começa a fazer grafite, pintura, rap pra ganhar dinheiro. Mostra o que as rádios tocam hoje de rap, que é uns trap ridículo, que de rap não têm nada. Mas a galera começa a fazer isso porque é um emprego, é uma forma de ganhar dinheiro. Sabe aquela frase da galera antiga? “Esses aí não são de verdade?” Eu acho que é um pouco disso aí.

Hoje em dia é fácil qualquer coisa. É fácil fazer grafite, é fácil fazer rap, é fácil fazer beat, dançar, ou se tem essa ilusão.

Desde o tempo que tu começou até hoje, tu desenvolveu algum tipo de processo criativo?

Quando eu vou pintar uma rua, eu tenho que saber o que é essa rua. Eu tenho que saber quem passa nela, quem mora, como as pessoas vão ver esse desenho. Com o tempo eu fui aprimorando muito isso e foi uma coisa que eu faço quase que instintivamente. Foi uma coisa que eu sempre me preocupei muito.

Com o design eu aprendi a ter uma metodologia, e hoje eu tenho uma pra conseguir trabalhar e mostrar isso.

Não gosto de dizer que eu tenho referências de outros artistas, apesar de gostar de muitos. Eu gosto de viver e aprender muitas coisas e depois eu somo isso de algum jeito isso aparece no meu trabalho através da minha metodologia, que é bem simples.

Primeiro, eu gosto de entender o objetivo da coisa. Assim tu sabe o que ela tem que ter como solução. O meio disso é todo o processo que tu tem que fazer pra chegar até lá. Às vezes eu já tenho tudo o que preciso pra chegar até lá, todo o repertório, todo o material. Às vezes não, então eu sempre tenho uma média de 30 dias pra trabalhar em um layout. Os primeiros 15 ou 20 dias são pra estudar e entender o assunto.

Falando sobre o trabalho na rua, como é o processo para fazer um grafite ou uma pintura na rua hoje?

Então, o grafite como o pessoal estudou ou como uma grande galera dos grafiteiros entende, é o ilegal na história, sabe. Eu concordo em partes com isso.

O grafite como a gente entende hoje, tem aquela estética linkada ao hip-hop, final de 60 e início de 70, pintando trens, Nova York, Brooklin. Essa a visão que a grande maioria da galera tem. Se a gente entende isso, a gente tem que entender o que era o hip-hop naquela época e local. E depois transportar pra cá e ver se rola. Às vezes o pessoal pega aquilo a seco e diz que tem que ser ilegal. Naquela época tinha que ser porque era transgressão, a ideia era justamente dizer que eu tenho que agredir pra poder aparecer.

No meu caso, desde sempre, trabalhei com autorização. Porque a minha ideia com o grafite era trabalhar e contar umas ideias, na real. Me comunicar com outras pessoas. Eu sempre tive o respeito ao meio, entende. Eu não gostaria de acordar de manhã e ver minha parede toda pintada, mesmo que fosse um trabalho lindo pra caramba. Então, por mais que eu entenda e me incomode essa ideia de propriedade, é uma coisa que eu entendo, um sistema que a gente vive e eu respeito.

Por eu ter essa questão do rap, eu conhecia muita gente. Pra mim era relativamente fácil pedir. E era muito engraçado. Eu ia com uns cadernos, umas revistas e dizia: “bah, estou afim de pintar a tua parede.” E as pessoas perguntavam o que eu ia fazer, e eu dizia: “na verdade eu não sei, estou cheio de desenhos e quero fazer uns aí”. Nove diziam não e um dizia sim, e eu passava um mês inteiro pintando. Naquela época não existia material bom, e eu queria fazer as coisas legais.

A questão de trabalhar na rua era isso aí. Eu me acostumei a trabalhar com autorização, por essa lógica de pensar coletivo, no meu trabalho e como atingir a sociedade. Como designer eu amo a tipografia, e acho linda a pichação. Por uma coisa bem óbvia, na verdade. A grafia e algumas coisas da pichação eu uso no meu trabalho porque eu acho bonito, mas ir lá e ficar pichando e fazer uns bombs de madrugada e tal, eu não perco meu tempo pra isso.

No Instituto Rio Grandense do Arroz, em Porto Alegre, Brum fez uma pintura de mais de 200m². Seu foco, no entanto, se volta para os espaços menores (Crédito da foto: Instagram/Jackson Brum)

Tu traz temas que inspiram as pessoas a se aproximar da cultura, do pensamento. Tu acredita que é algo que tu sempre leva no teu trabalho ou é algo específico, como vimos nos trabalhos do Sesc, por exemplo?

Novamente são duas coisas. Qualquer trabalho meu que tu for ver, nas entrelinhas eu vou estar falando de amor de algum jeito. Que é um pouquinho de como eu vivi e como eu faço as coisas. Essa questão do trabalho coletivo, do respeito, de como trabalhar e porque trabalhar. Então hoje tu vê muitas palavras, muitas coisas que fazem a pessoas pensar sobre alguma coisa. Eu não obrigo você a ter a mesma visão que eu, mas quem sabe eu te instigo a pensar alguma coisa com a tua própria cabeça. O meu trabalho é um pouco disso. Eu sempre tento mostrar alguma coisa bacana, o amor, respeito, ser melhor. Porque eu acredito que se cada um fizer o seu melhor, no final das contas, a gente vai ter um mundo melhor. A gente tem a missão no mundo de conseguir ser melhor, de mudar o nosso meio. E mudar o nosso mundo não é mudar o mundo, é mudar o nosso bairro, nossa casa, mulher, filhos.

Confira aqui um teaser do trabalho do artista no Sesc de Montenegro (Crédito do vídeo: Youtube/Jackson Brum)

No Sesc, em especial, sabe aquele casamento lindo? Era isso. A frase-mote do briefing deles era “cuidar e emocionar”. Cara, são outras palavras, mas é a mesma coisa do “amar e do respeitar” [lema do artista]. A ideia daqueles painéis do Sesc era sempre não mostrar um produto. Foi isso que eu vendi pra eles. Acho que é por isso que deu tão certo. Era pra fazer e acabamos fazendo muitos. Eles queriam primeiramente fazer um desenho, pintura que vendesse uns produtos e eu disse: Na real vocês são muito mais do que os produtos, vocês são a essência do que são os produtos. As oficinas e cursos são o resultado final. Vocês fazem isso porque vocês acreditam no poder de transformação das pessoas. Por que a gente não mostra isso?

Por isso que sempre tem os rostos coloridos, multicores, que vão se transformando porque é isso. A gente é um monte de energia, somos formados por muitos conceitos, desejos e valores, e é isso que eu mostro nessa pintura. É um pouquinho do que eles fazem. As coisas [rostos e formas da pintura] não se fecham porque é isso, as pessoas estão em eterna transformação.

Apesar da visibilidade dos grandes painéis, Brum destaca que é um dos trabalhos que menos o motivam (Crédito da foto: Instagram/Jackson Brum)

E como foi trabalhar na Igreja São Francisco [de Sapucaia do Sul]? Como foi essa proximidade entre o grafite e uma instituição como a igreja?

Quando aquele trampo chegou pra mim, foi muito massa. Tanto que é que eu fiz das tripas coração pra conseguir atendê-lo. Tanto por ser uma igreja quanto por fazer toda a frente dela. Aquilo ali partiu do grupo de jovens deles. Eles queriam trazer uma coisa mais moderna pra eles, mas que não fosse assustar, que mantivesse essa lógica. E aí o mais complicado ali foi fazer uma coisa moderna e ao mesmo tempo mais contida, mas sem ser aquela “pinturinha” normal.

Com cores quentes e traços suaves, o trabalho de 2016 na Igreja São Francisco é um dos mais representativos na carreira do grafiteiro (Crédito da foto: Jackson Brum)

Só na criação, foram três ou quatro meses, entre vai e volta. Fizemos um briefing bem bom, e o representante da igreja tem um trabalho bem massa, pra frente. Por isso a questão dos tons terra, dos mais amarelados, para passar essa sensação do aconchego, de trazer essa questão da luz, do esplendor.

E tu vê esse trabalho como uma quebra de paradigma?

Com certeza. Se não foi um marco, pelo menos foi muito legal, tanto pra eles quanto pra mim. Pra mim foi um desafio, porque tem que ter um certo cuidado. Tinham certas restrições, por ser uma igreja, tem essa questão de ser tudo certinho. O objetivo deles com aquela pintura não era só fazer uma pintura moderna. Eles tinham um volume de jovens muito grande dentro da igreja, que, de certa forma, estavam perdendo. Então o objetivo era mostrar que: “a gente continua fazendo o nosso trabalho como tem que fazer, mas a gente pensa também em ser atual, pra frente”. Era a ideia de mostrar a ideia de pensar no futuro e pensar no passado sem ser nenhum nem outro, mas sim os dois ao mesmo tempo.

No seu canal no YouTube, Jackson mantém alguns vídeos mostrando seu método de trabalho (Crédito do vídeo: YouTube/Jackson Brum)

Além desses trabalhos, existe algum que tu gostaria de fazer?

Não tem nenhum lugar específico. Sempre valorizo ao máximo o meu próximo trabalho. Tanto que é que se tu perguntar pra mim qual é o meu melhor trabalho, eu vou dizer o próximo. Ou nem sempre, pois eu não sei um terço do que eu deveria saber. Por isso estou sempre buscando aprender e aceitar uns briefings diferentes.

Eu, particularmente, sempre fiz coisas grandes, prédios e tal, mas cada vez mais eu estou me encaminhando para fazer coisas menores, como os interiores. Paredes de 10m² até 20m², que são trabalhos que desgastam menos e eu consigo levar muito mais energia. E eu acredito que a minha entrega é um pouco maior, e o retorno também. Tu consegue ver que aquelas pessoas daquele meio conseguiram entender e de fato aquilo fez diferença pra elas. De certa forma, tu visualiza como se tivesse mudado o mundo daquelas pessoas. E pra mim isso acaba sendo muito mais prazeroso, além de ser bom financeiramente.

Não apenas de cores fortes são feitas as pinturas do artista. (Crédito da foto: Instagram/Jackson Brum)

Cada vez mais estou jogando pra isso, porque eu não gosto de altura, nunca gostei de altura. Pra mim, passou de dois metros, é complicado. Mas beleza…vou, tem que fazer. Mas eu prefiro fazer as coisas menores por causa disso, e do contato direto com o cliente e as técnicas que eu estou aprimorando, como usar os dedos, texturas. Em espaços maiores isso fica demais.

Fora que uma pintura eu levo um dia, dois pra fazer. Se passar de três ou quatro dias, eu já fico: putz, vamos terminar essa merda de uma vez, sabe? E eu não gosto disso, pois eu acredito que essa minha energia de desapego acaba ficando na pintura.

Como é o teu espaço no Vila Flores?

Então, o espaço aqui é lindo pra caramba. Eu falo que o Vila tem uma energia muito massa. Uma que estou aqui há uns três anos e ele se formou com essa ideia do trabalho mais coletivo. Aqui não chega a ser um espaço de aluguel, apesar de ser. A ideia da família proprietária sempre foi fazer um espaço cultural.

As coisas aqui vão se desenhando de forma muito natural e não tem aquele ar de comércio. São todos artistas, na real. Tem uma energia muito bacana. Aqui eu tenho uma galeria de arte. Com a pandemia estou revendo se continuo com ela ou não, e se vou para um espaço menor.

Como tu enxerga a arte de rua como sustento e o que tu diria para as pessoas que querem trabalhar com isso?

Nesse ponto eu sou muito crítico, principalmente quando se fala de arte urbana. Eu entendo a questão de termos que viver e ganhar uma grana, e defendo que podemos viver da arte e temos que valorizar o que a gente faz. Só que a grana nunca pode vir na frente do trampo. Isso é ser artista. Ser artista, de fato, é ter que fazer. Acreditar naquilo e fazer, a grana é consequência.

O artista tem que se preocupar em criar e ponto. Mas entendo que isso não é o suficiente. Tu tem que vender. Tu tem que saber o que tu quer. A galera urbana é muito “chucra” nesse ponto, acha que não pode se vender ao sistema, e acaba que a grana não vem. Aí acaba trabalhando num Zaffari a vida toda.

Se tu está num jogo, tu tem que saber jogar. Se tu tem um produto, tu tem que saber como isso vai chegar no cliente e como vender. Eu sempre fui metido a esperto. Aí entra aquela coisa de pedir autorização. Por que eu vou fazer escondido se eu posso pedir e de repente ainda ganhar um refri ou um bolo da tia? E ficar uma semana lá pintando sem me estressar.

Já a questão de quantificar, é complicado. Essa semana mesmo perguntaram como eu faço e eu disse: cara, cada artista tem seu sistema. Não tem como ter um padrão. Pra conseguir calcular o valor do teu trabalho, tem vários fatores. Não tem como comparar.

Não dá pra comparar um cara que tem 22 anos, que está começando agora, com um cara que tem 20 anos pintando, graduação, duas pós, viajei o Brasil inteiro, meia Europa. Já perdi as contas de quantas telas, quantas coisas, quantas merdas já passei. Isso é valor agregado para o meu trampo. Às vezes o pessoal entende isso como arrogância, mas não é arrogância, é simplesmente ser. O meu valor agrega todos os meus trampos, faculdades, vida, tudo. Para a galera que está começando, a pior coisa é se basear em uma galera mais velha.

Não apenas nas paredes são encontrados os traços de Brum. Para capitalizar seu estúdio, uma das apostas é a criação de telas. (Crédito da foto: Instagram/Jackson Brum)

Quais as tuas experiências pelo Brasil e também para fora?

Participei de três projetos Pontos de Cultura, na época do Governo Lula. Era muito foda. Era uma grana que entrava para projetos culturais. E tinham encontros nacionais, que juntavam projetos do país inteiro. Foi uma experiência muito massa. Não era só cultura, era fazer uma política de cultura, e ver acontecer. Eu tive a oportunidade de conhecer muita coisa, pintar muito e viajar pelo Brasil.

Em 2013, eu fiz uma correria e participei do Meeting of Styles, um dos maiores encontros de grafite no mundo. Participei de algumas edições na Europa. Eu fui e fiquei dois meses lá. Fui na França, Alemanha e na Polônia. Tinha mais o da Grécia, mas eu não tinha mais perna pra ir pra lá. Como as datas eram espaçadas, recebi convites e acabei viajando por lá. Acabei indo pra Holanda, Itália, Espanha e Portugal. Eu brinco que minha vida mudou naquele 2013.

Eu só voltei para o Brasil porque tenho dois filhos. Mas foi um tapa na cara. Não por eles serem melhores que a gente, mas pela cultura ser diferente. Lá eles valorizam o trabalho. Aqui no Rio Grande do Sul, se eu gosto da tua pessoa, o trabalho é bom. Se eu não gosto de ti, tu é ruim. Lá fora não tem isso.

Aproveitando o gancho da família, como é tua relação com a família?

Não sou um cara muito família não. Tenho dois filhos do primeiro casamento. Sou um cara apaixonado pelos meus filhos, mas minha primeira filha eu tive com 20 anos. Hoje eu não tenho mais filhos e não quero mais filhos. Sou eu e a minha companheira.

Eu sou muito pelo meu trabalho. Eu passo 24 horas trabalhando. Quando eu vou para as férias, eu sempre tenho meu material pra trabalhar de algum jeito, porque eu gosto. Nesse ponto, família acaba sendo meio complicado. Eu digo que eles devem ser bem tristes comigo. Por mais que eu tente estar sempre presente, eu acabo ficando muito ausente, por essa questão de trampo.

No mais, família eu tenho relação ok. Com a minha mãe eu tenho uma relação muito boa, a gente tá sempre falando pelo telefone. Ela é guarda municipal, e na verdade é pior que eu. Está sempre trabalhando, é uma mulher super nova. Já os meus irmãos, eu não tenho muito saco. Eles são uma galera de uma geração mais nova, que estão chegando nos 18.

Investimento com material de trabalho é alto. Jackson procura estar preparado para todos os tipos de briefings (Crédito da foto: Instagram/Jackson Brum)

Para concluir, tu faz o teu trabalho pela experiência ou pelo resultado final e o desejo de deixar um legado?

É tudo, na verdade. Essa é a matemática que todo o artista tem que fazer. Tu vive por uma utopia que tu almeja chegar, mas tu tem que viver o momento. A tua vida é a passagem, o destino sempre vai estar lá. O que existe é a caminhada, o destino sempre vai estar lá. Meu objetivo é mudar o mundo e é por isso que eu sempre falo que o amor está nas entrelinhas. Eu brinco que se minha vida acabar hoje, pra mim show de bola. Eu vivi todos os dias, ao contrário do que sistema quer que a gente faça.

Tu nasce, tu se bitola, assina uma carteira, trabalha toda a tua vida para lá quando tu estiver morrendo, tu desfrutar disso. Isso eu acho ridículo, na real. Tu tem que viver tua vida plenamente e continuamente. Não é aquela história de vou trabalhar e vou descansar. Teu trabalho tem que ser teu descanso. Trabalho pra mim não é um trabalho. Trabalho pra mim é foda. Eu preciso dele. Ele me gera uma renda, mas ele é a essência do que eu vivo. Eu fico triste pelo resto da população não chegar nesse meio. Mas às vezes é pela falta de coragem de ir, sabe. E trabalhar. Agora que eu comecei a ganhar grana. Mas o pessoal fala: pra ti é fácil, tu tem o dom. Não, nunca foi fácil e nunca é fácil. A diferença é que eu gosto muito do que eu faço.

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Murilo Dannenberg
Redação Beta

Jornalista. Curioso sobre como as coisas funcionam, com ideias de porque vemos o mundo tal como o percebemos e o que o futuro nos reserva.