Demorou quase dois séculos: mulher negra assume cadeira no Parlamento do Berço da Colonização Alemã
Em 175 anos, Câmara de Vereadores de São Leopoldo elegeu oito mulheres — contrastando com uma população majoritariamente feminina na cidade
Apesar das eleições municipais de 2020 terem sido mais exitosas para as mulheres no Brasil, ainda há muito o que percorrer para se ter igualdade nos espaços de poder. Tanto é que São Leopoldo testemunhou, em 2021, um fato histórico: a primeira mulher negra assumiu uma cadeira no Legislativo capilé. Nadir de Jesus é apenas a oitava mulher eleita na cidade.
De acordo com o levantamento disponibilizado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), as eleições de 2020 outorgaram mandatos para mais de 9 mil parlamentares mulheres— número maior que em 2016. Porém, a soma ainda muito inferior se comparado aos 48,2 mil vereadores eleitos. Para as mulheres negras, o caminho é ainda mais difícil.
Em janeiro deste ano, a vereadora do Partido dos Trabalhadores (PT) Nadir Maria de Jesus, 59 anos, passou a ocupar um dos assentos na Câmara de Vereadores de São Leopoldo. Com 723 votos, ela ficou na segunda suplência, mas assumiu após a licença de dois vereadores convidados para integrar o Governo Municipal.
“Tenho certeza que esta é uma cadeira legítima, eu a conquistei”, reforça Nadir.
Professora aposentada, ela iniciou sua trajetória política há mais de 30 anos e pautas como educação e luta por direitos raciais sempre estiveram em seu discurso. “Comecei a trabalhar muito cedo, com dez anos, para ajudar nas despesas e pagar meus estudos. Fui empregada doméstica, diarista, educadora social, conselheira tutelar e chefe do departamento de Igualdade Racial da Secretaria Municipal de Direitos Humanos”, recorda.
Conhecida como Berço da Colonização Alemã no Brasil, São Leopoldo comemorará os 200 anos da imigração em 2024. Contudo, antes dos alemães chegarem, as terras já eram habitadas por indígenas e pela população negra. Para Nadir, esse fato é fundamental para entender a participação destas populações na construção do município.
“Eu tenho muito respeito pela chegada dos imigrantes alemães, mas temos que salientar esses fatos. Não queremos excluir, só queremos incluir e dar a devida importância que essas pessoas tiveram e têm em São Leopoldo. A Casa do Imigrante foi uma senzala antes de abrigar os alemães em 1824”, explica.
A luta por direitos e visibilidade ao povo negro
Conforme Nadir de Jesus, o preconceito sofrido pela população negra começa desde o primeiro dia que é preciso sair de casa e, muitas vezes, é preciso combatê-lo dentro de seus próprios lares.
“Havia uma falta de conhecimento sobre o preconceito e sobre o racismo dentro de casa, diversas situações eram tratadas como ‘normais’. É um racismo estrutural que devemos combater desde cedo. Na maioria das vezes, só vamos nos reconhecer como negros quando há a discriminação e vivemos em um país extremamente racista”, conta Nadir.
Para a vereadora, sua presença na Casa Legislativa simboliza a quebra de preconceitos e mostra a importância da representatividade para as jovens negras. “Eu costumo sempre dizer para todo mundo que eu sou a primeira mulher negra eleita, mas não sou a última, nem a única. Tenho certeza que esse mandato abrirá as portas para várias Nadir”, diz. Segundo a parlamentar, população negra em São Leopoldo, com base no Censo realizado em 2010, representa de 14% a 17% do total de habitantes do município. “São dados que devemos saber para construirmos políticas públicas e de saúde para a nossa população”, explica.
Alguns dos projetos da vereadora são pensados para trazer mais visibilidade e mostrar a ancestralidade ao povo negro. “Eu acredito que o essencial, em primeiro lugar, é nos reconhecermos e termos orgulho de sermos negros”, afirma. Em setembro, foi sancionada pelo Executivo a Lei 9389/2021, de autoria de Nadir de Jesus, que institui o dia 25 de julho também como Dia de Tereza de Benguela e Dia da Mulher Negra no calendário oficial de São Leopoldo. Tradicionalmente, a cidade comemora a data devido à chegada dos imigrantes na região.
Para a vereadora, este é um passo muito importante para que se trabalhe nas escolas figuras da história do povo negro, como Tereza de Benguela. “Também elaboramos o projeto de lei que cria o Banco de Empregos para mulheres negras e mulheres vítimas de violência. Outro projeto que estamos pensando e queremos construir é a Casa de Cultura Negra. É importante mostrarmos a todos de onde viemos e quem realmente somos. Temos que conhecer a nossa ancestralidade, nos reconhecer e se sentir parte da sociedade”, afirma Nadir.
Apenas oito mulheres na Câmara em 175 anos
Um dos pontos que a parlamentar pretende abordar é a baixa representatividade feminina no Legislativo capilé. Em 175 anos, apenas oito mulheres fizeram parte do Parlamento de São Leopoldo. “Isso mostra o quanto o nosso município ainda é muito machista”, define Nadir.
Conforme o Censo Demográfico de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as mulheres representam mais de 51,3% da população leopoldense. Ainda assim, o fato não se reflete nos espaços de poder. Atualmente, a Câmara de Vereadores do município é representada por dez homens e apenas três mulheres.
Para a presidente da Câmara, Ana Affonso, este é um reflexo da grande diferença que ainda existe em relação às mulheres ocuparem espaços de poder. “O número de participação de mulheres nos poderes legislativos é um indicador do grau de amadurecimento das democracias: quanto mais postos as mulheres ocupam, mais igualitário tende a ser aquele município, aquele estado ou aquele país”, afirma Ana.
A primeira mulher a fazer parte do Legislativo capilé foi a Maria Emília de Paula, em 1940. Ela também foi a primeira a exercer o cargo de prefeita no Rio Grande do Sul, em 1959. Após isso, somente 48 anos depois outra mulher passou a fazer parte da Câmara, sendo ela Necca Steffen. Seguida de Iara Cardoso, Ana Affonso, Inês Becker, Edite Lisboa (Cigana), Dolores Pessoa e Nadir Maria de Jesus.
De acordo com a presidente do Legislativo, a presença de mulheres nesses espaços impacta diretamente na criação de políticas públicas com o objetivo de equidade de gênero. Affonso salienta ainda, que é necessário um trabalho amplo para a quebra destas barreiras. “O desequilíbrio que existe no que diz respeito a participação na política também é resultado de um ambiente doméstico e privado que afasta as mulheres destes espaços”, conclui.
Paulete Souto: primeira mulher eleita para o Executivo
Nas eleições municipais de 2016, Paulete Terezinha Souto, 63 anos, professora estadual aposentada, portoalegrense que mora há mais de 45 anos em São Leopoldo, fez história ao se tornar a primeira mulher eleita ao Executivo Municipal. Autodeclarada negra, e atualmente titular da SEDHU, Paulete destaca que sua eleição em 2016 como vice-prefeita foi histórica e, através dela, foi possível construir uma narrativa diferente para o município.
Segundo Paulete, aos poucos as mulheres estão ocupando mais espaços de poder, possibilitando a criação de políticas públicas que busquem a equidade de gênero. “Eu vim de uma família de mulheres muito independentes, mulheres guerreiras. Milito na União Brasileira de Mulheres (UBM), então esse empoderamento sempre esteve comigo. A mulher ainda tem muito a lutar, mas na medida que chegamos em espaços como esse conseguimos dar visibilidade e puxar outras mulheres”, conta Paulete.
Para a ex-vice-prefeita, como mulher negra, sua luta política representa todo o resgate histórico da vida das mulheres. Sempre ligada aos movimentos de busca por direitos sociais, raciais e das mulheres, Paulete fez parte do Partido Democrático Trabalhista (PDT), do PT e, atualmente, é filiada ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB).
“A representação política de mulheres e mulheres negras está maior do que em alguns anos, mas ainda é muito pequena. A lei tem auxiliado na busca por espaço na luta e temos que continuar fortalecendo isso”, diz Paulete.
De acordo com Paulete, ela demorou para se reconhecer como mulher negra, contudo, entende que esse foi um processo importante em sua vida. “Me reconheci como, de fato, uma mulher negra há uns 30 anos. Eu nunca sofri algum preconceito direto. Eu sempre me empoderei, nunca deixei me intimidar e me diminuir. Um diretor de uma escola, na qual dei aula, foi quem me deu o ‘clique’ para esse reconhecimento”, conclui Paulete.