Homenagear a ditadura deve ser proibido?

Incentivo do presidente Jair Bolsonaro (PSL) para comemoração do aniversário do golpe militar nos quartéis abriu debate sobre a questão na política e na sociedade

Stephany Foscarini
Redação Beta
5 min readApr 12, 2019

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Na mesma semana do aniversário de 55 anos da instauração da ditadura militar, o vice-líder do PCdoB e deputado federal pelo Maranhão, Márcio Jerry, apresentou um projeto de lei na Câmara dos Deputados que visa criminalizar apologias ao retorno da ditadura militar e à pregação de novas rupturas institucionais no país. A iniciativa de Jerry é apenas mais um capítulo na polêmica que se estabeleceu após o presidente Jair Bolsonaro (PSL) conclamar as Forças Armadas a comemorar o aniversário do golpe militar de 1964 — diante da má repercussão, ele voltou atrás e disse que havia pedido somente que o fato fosse “rememorado” nos quartéis. Mas a proposta de proibir a celebração da ditadura também não é consenso: afinal, é legítimo punir esse tipo de manifestação na sociedade?

Deputado Márcio Jerry. (Foto: Governo do Estado do Maranhão)

Jerry sugeriu a alteração no artigo 287 do Código Penal Brasileiro, com o intuito de punir qualquer tipo de manifestação a favor do regime militar. A regra é simples: punir com multa ou detenção, de três a seis meses, responsáveis por declarações ou conclamações públicas que se dirigem a fatos criminosos, tortura ou que estimulem golpe ou quebra do sistema político vigente.

“Apologia a 64 fez com que repúdio ao golpe fosse mais eloquente”

A jornalista e colunista política do jornal Valor Econômico Maria Cristina Fernandes acredita que a proposta mexe com duas cláusulas pétreas da Constituição.

De acordo com ela, uma é a que prevê o voto direto, secreto, universal e periódico como direito garantido. Portanto, o golpe atinge esse direito. A outra cláusula afetada pelo projeto é a que prevê a livre manifestação de pensamento. A proibição a manifestações de apologia ao golpe fere esse direito. Consequentemente, para ela, não há uma resposta trivial.

Maria ressalta que não é constitucionalista, mas opina que a Câmara deve rejeitar esse projeto, baseado no direito da livre manifestação das pessoas. “A apologia a 1964 encabeçada pelo presidente da República fez com que o repúdio ao golpe fosse mais eloquente este ano do que jamais vira em meus 30 anos de jornalismo”, salienta.

“Passou-se a uma nova República sem o devido balanço das atrocidades do regime”

Para a professora de História no Brasil na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Carla Simone Rodeghero a ditadura atentou contra os direitos individuais como liberdade de expressão, de reunião, de ir e vir, de imprensa e de organização sindical. “Também infringiu os direitos sociais na medida em que nós tivemos um período de crescimento econômico acompanhado pelo aumento da desigualdade social”, comenta.

Na opinião da professora, o arrocho salarial foi uma das grandes características do período, pois o salário mínimo perdeu o seu poder. Também houve uma política de repressão baseada em prisões, desaparecimentos, assassinatos e torturas que atingiram centenas de brasileiros. Além das pessoas que foram afetadas pela política econômica e educacional ou pelo processo de abertura de estradas na Amazônia, por exemplo, onde as comunidades indígenas foram afetadas. “Nós tivemos diferentes categorias de pessoas que foram atingidas pela ditadura”, ressalta.

Conforme Carla, o fim da ditadura não foi de forma bruta, mas sim aos longo dos últimos 10 anos daquela época, em que o propósito do regime era afrouxar a repressão ao mesmo tempo em que controlava as sessões da oposição. “Nós não tivemos uma retirada abrupta dos militares no poder. Isso trouxe consequências no período posterior à ditadura na medida em que prevaleceu uma visão de que simplesmente se passou para uma nova República sem o devido balanço a respeito das atrocidades que o regime tinha cometido”, realça.

Mas, afinal, o que foi a ditadura militar brasileira? Confira a explicação da professora Carla Simone Rodeghero:

“Pensamentos não podem ser criminalizados“

No ponto de vista do coordenador do curso de Filosofia da Unisinos, Clóvis Vitor Gedrat, ao falar em liberdade de expressão se entra em um campo de ótimos diálogos de cunho conceitual e filosófico, isso porque a palavra “liberdade” não é tão simples de definir — o que, por si só, é uma demonstração epistemológica do próprio termo. Vale aqui lembrar que a palavra “liberdade” em sua essência traz a ideia de ousadia e franqueza.

No entanto, para Gedrat, deixando de lado a questão mais conceitual, é possível dizer, de modo simples e geral, que a liberdade de uma pessoa está no fato de essa pessoa poder agir segundo seu próprio e livre arbítrio na tomada de decisões. Obviamente, segundo princípios ético-morais que não lesem ou prejudiquem outras pessoas.

Quando perguntado se criminalizar pensamentos políticos, mesmo que autoritários, é democrático, Gedrat afirmou que a primeira palavra está diretamente ligada à justiça, onde os direitos devem ser respeitados a partir de uma ótica republicana. No entanto, a criminalização de algo está no ato intencional que se tornou efetivo na vida pública.

“Pensamentos não podem ser criminalizados por uma simples questão: os pensamentos são a expressão da máxima liberdade de um ser racional, isto é, o ser humano”, completa.

Conforme o coordenador, criminalizar pensamentos, sejam eles políticos, ideológicos ou religiosos, significaria a necessidade de se instituir um código de pensamentos. “Assim podem ser pensados para instituir uma força policial que pune os infratores que ousarem pensar de outro modo. Lembro que aí está embutida uma fina ironia de reflexão filosófica, pois os estados autoritários fazem exatamente isso”, acrescenta.

Gedrat pontua que, contraditoriamente, o ser humano dispõe de uma ferramenta tecnológica excepcionalmente democrática como internet, mas a utiliza com intencionalidade autoritária. Isso quer dizer que a internet não faz a menor diferença pois a reprodução do sistema autoritário, que pune quem pensa ou se expressa a partir de uma argumentação contrária à que é autoritariamente ditada, somente é ampliada pela internet, mas não difere em nada de um pensamento autoritário e ditatorial do passado.

O coordenador destaca que é necessário frisar a história dos povos do planeta, que estão cansados de governos que não conseguem ver e trabalhar pelo coletivo, pelo povo e pelas gentes. “Vivemos um tempo em que o excelente instrumento de comunicação e expressão que é a internet deve ser colocado a serviço da paz e de uma construção humana real e efetiva, fruto de uma inteligência que se supera na busca de uma felicidade virtuosa para todos”, enfatiza.

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